A nova lei de licitações (14.133/21) considera o procedimento de manifestação de interesse (PMI) um procedimento auxiliar às licitações e contratações. Em suma, o poder público pode divulgar edital de chamamento com o objetivo de solicitar à iniciativa privada a manifestação de interesse na apresentação de “estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública” (art. 81).
À semelhança do PMI conhecido no setor de infraestrutura nos chamados contratos de parceria (concessão comum, parcerias público-privadas e negócios congêneres), regulamentado pelo decreto Federal 8.428/15, os estudos poderão ser utilizados para abertura de licitação e o autor será ressarcido pelo vencedor, vedada a cobrança de valores do poder público.
Uma importante disposição está no §2º do art. 81. Segundo ele, a realização de estudos e projetos pela iniciativa privada em decorrência da manifestação de interesse não atribuirá ao realizador direito de preferência no processo licitatório. A observação autoriza, implicitamente, a participação do autor do projeto aproveitado em PMI na licitação ou na execução das respectivas obras e serviços, exceto se houver disposição em contrário no edital de chamamento.
No entanto, em outro momento a mesma lei estabelece uma vedação expressa à participação do autor do projeto de engenharia em licitação para a contratação da execução de obras, serviços ou fornecimento de bens a ele relacionados. É o que dispõe o art. 14, I e II, ao proibir a participação na licitação ou na execução do contrato: (i) do autor do anteprojeto, do projeto básico ou do projeto executivo, pessoa física ou jurídica; ou (ii) da empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo.
A disposição preserva a clássica segregação entre os mercados de empresas projetistas, de um lado, e de empresas executoras de obras e serviços, de outro, existente sob o regime da lei 8.666/93 (art. 9º, I e II). A regra tem um certo caráter protetivo da competição e da higidez da licitação. Ela busca evitar situações de conflito de interesses ou de informação privilegiada em proveito do autor do projeto ou empresa a ele vinculada. A participação direta ou indireta dele na disputa da execução do objeto poderia prejudicar a isonomia no certame, colocando-o em situação de vantagem em relação aos demais competidores, ou mesmo poderia abrir campo para manipulações ou distorções intencionais do projeto em razão do interesse em vencer a licitação futura da execução1.
O detalhe relevante aqui é que a proibição do art. 14 da lei 14.133/21 não está restrita ao autor do projeto básico ou executivo, como estava na lei 8.666/93 (art. 9º, I e II). Ela abarca também o autor do “anteprojeto”, característico de empreendimentos contratados sob o regime de contratação integrada (art. 46, §2º da NLLC). Esse detalhe é relevante pois afasta uma eventual interpretação de que seria possível a uma empresa autorizada entregar no PMI de uma obra pública o “anteprojeto de engenharia” e, ainda assim, participar da licitação de contratação integrada.
Aqui a lei parece não ter seguido a mesma lógica do PMI dos contratos de parceria, em que a empresa realiza os investimentos e assume a maior parte dos riscos de sua execução e exploração. Nas concessões, o PMI pode envolver a entrega pela empresa autorizada dos estudos e projetos, que ficarão à disposição de todos os interessados. Em termos objetivos, nunca se questionou a possibilidade de elaboração de projetos de engenharia pelos autorizados no PMI de infraestrutura. Até porque, pelo art. 31 da lei 9.074/95, os autores ou responsáveis econômicos pelos projetos básico ou executivo são autorizados a participar da licitação ou da execução de obras ou serviços.
Entretanto, no âmbito da lei 14.133/21, ainda que o anteprojeto se refira à “contratação integrada” de obras e serviços de engenharia, na qual a elaboração e os riscos do projeto básico são assumidos pela contratada, há proibição explícita da participação do “autor do anteprojeto” na licitação desse tipo de objeto (art. 14, I). Diferentemente do PMI das concessões, o tratamento conferido pela nova de lei de licitações à elaboração de projetos de obras e serviços de engenharia foi mais restritivo2.
O curioso é que essa proibição parece ir na contramão do procedimento de manifestação de interesse tratado no art. 81 da mesma lei, como visto acima. Enquanto o art. 14 impede a participação do autor dos projetos de engenharia (anteprojeto, básico ou executivo), o art. 81, §2º, I, por outro lado, autoriza implicitamente a participação do autor dos projetos elaborados em sede de PMI na futura licitação do empreendimento, ao ressalvar apenas que ele não terá direito de preferência no processo licitatório.
Permanece então a dúvida: afinal, as empresas de engenharia podem elaborar projeto de engenharia em procedimento de manifestação de interesse (anteprojeto, projeto básico ou executivo) e, ainda assim, são autorizadas a participar da licitação ou da contratação da execução das respectivas obras, serviços e fornecimento de bens a ele associados? Como resolver a aparente contradição existente entre os dispositivos legais citados?
A nosso ver, a resposta está nas diferentes acepções do vocábulo “projeto” nos mencionados dispositivos da nova lei de licitações. Ao regulamentar o uso do PMI, o art. 81 não se refere especificamente a anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo. Refere-se apenas a “projeto” em sentido amplo, no sentido não-técnico ou fora dos conceitos mais precisos da engenharia de projetos. No sentido mais genérico, “projeto” pode se referir a qualquer ideia que se pretenda ver implantada no futuro. No dicionário a definição é ligada ao “propósito de executar algo” ou ao “plano detalhado de um empreendimento a ser realizado” (Michaelis, Ed. Melhoramentos, 2023).
É preciso então diferenciar expressões genéricas como “estudos, investigações, levantamentos e projetos”, de um lado, de expressões específicas e técnicas do campo da engenharia, de outro, como “anteprojeto, projeto básico e projeto executivo”, que são inclusive definidas com maior precisão no art. 6º, incisos XXIV, XXV e XXVI da nova lei de licitações.
Nessa leitura rigorosa e tecnicamente precisa, o PMI da nova lei pode envolver a apresentação de todo e qualquer estudo, levantamento, investigação ou projeto de solução inovadora (assim genericamente considerados), inclusive projetos de engenharia em sentido amplo. Aqui a lei não impediu ou restringiu a apresentação de projetos pelos interessados que queiram colaborar com a Administração Pública na oferta de soluções inovadoras e de relevância pública.
Não obstante, se uma empresa autorizada no PMI oferece à Administração Pública a confecção de projetos de engenharia de que trata o art. 14, I e II (anteprojeto, projeto básico ou executivo), e os entrega à Administração no âmbito do PMI, o aproveitamento desse projeto de engenharia pelo órgão licitante traz uma consequência imediata para o seu autor: o impedimento de disputar a licitação ou participar da execução do contrato relacionado àquele projeto, direta ou indiretamente. Isto porque há regra de proibição específica que se sobrepõe à menção ampla e imprecisa de “projetos” do art. 81.
A proibição assim explícita, aliás, elimina qualquer possibilidade de participação do autor de projetos de engenharia na execução do futuro empreendimento. Não importa se o autor do projeto de engenharia foi contratado pela Administração ou se foi uma pessoa física ou jurídica autorizada a elaborar o projeto no âmbito de um procedimento de manifestação de interesse. Se a empresa é autora do projeto de engenharia entregue à Administração e utilizado no edital de licitação, essa empresa está automaticamente impedida de participar da execução do empreendimento que ajudou a formatar, por força do art. 14, I e II da NLLC.
A única possibilidade de o autor de projetos de engenharia participar do empreendimento é na condição de “apoio das atividades de planejamento da contratação, de execução da licitação ou de gestão do contrato, desde que sob supervisão exclusiva de agentes públicos do órgão ou entidade” (art. 14, §2º). Não há na lei qualquer possibilidade de admitir a participação do autor do projeto de engenharia na condição de licitante ou contratado para execução das obras, serviços e fornecimento de bens a ele relacionados.
Por tal razão, diante da objetividade da norma nesse ponto, não há como acolher – com todo o respeito – opiniões que admitem alguma possibilidade de o autor de projetos de engenharia no PMI participar da licitação para execução do objeto por ele projetado. A ideia de que tal participação poderia ser admitida quando o projeto de engenharia entregue no PMI apresentar “solução inovadora” capaz de contribuir com questão de “relevância pública”3 não subsiste à mera literalidade do dispositivo legal de vedação, que se refere de maneira ampla a todo e qualquer autor de anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo.
Até porque o PMI, em si mesmo, é todo ele restrito na nova lei de licitações a apresentação de “soluções inovadoras”, pois tal requisito faz parte da definição legal do próprio instrumento (art. 81, caput). Ou seja, quando não visar solução inovadora e relevante ao interesse público o PMI nem sequer pode ser admitido4. Esse fator, por si só, tornaria um contrassenso admitir situações de autorização para estudos de projetos ordinários ou comuns em que a proibição de participação do autor do projeto teria lugar. Tal raciocínio resultaria, na prática, em admitir a participação do autor de projetos de engenharia sempre que o PMI for admissível, em confronto direto com o art. 14, I e II da mesma lei.
Além disso, não há razão suficiente para sobrepor-se a ideia abstrata de “inovação” ou “relevância pública” do projeto de engenharia – conceitos, aliás, de difícil determinação jurídica –, para afastar proibição legal cujo propósito é afastar ou impedir o conflito de interesses, a quebra de isonomia, o prejuízo à competitividade e a eventual falta de seriedade na elaboração de projetos e na execução de obras e serviços de engenharia. Não se descarta a possibilidade, inclusive, do componente inovador ser utilizado exatamente com este viés.
E nem se diga que a interpretação mais permissiva se alinharia ao objetivo de fomento à inovação (art. 11, IV) – por mais meritório que fosse esse tipo de previsão legal, se existente –, pois a lei novamente foi expressa ao estabelecer, de maneira ampla e sem exceções, que em qualquer caso o autor dos estudos e projetos no procedimento de manifestação de interesse não poderá ter direito de preferência na licitação (art. 81, §2º, I). Se a intenção fosse premiar aquele que oferece solução inovadora de engenharia, a regra certamente comportaria redação diferente.
A reforçar o argumento, lembre-se que a lei das Estatais (lei 13.303/16) já havia autorizado o PMI no âmbito das contratações destas empresas (art. 31, §§ 4º e 5º)5. Ela admite a possibilidade do autor ou financiador do projeto participar da licitação para execução do empreendimento, ao mesmo tempo em que veda a participação nas licitações para obras e serviços de engenharia de pessoa física ou jurídica que tenha elaborado o anteprojeto ou o projeto básico da licitação (Art. 44).
No âmbito da lei das estatais não há qualquer possibilidade de participação do projetista na licitação das obras, assim como não há qualquer menção ao uso do PMI para apresentação de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública. Na prática, não se cogita admitir a participação do autor do anteprojeto de engenharia, do projeto básico ou do projeto executivo nas contratações de obras, serviços e fornecimentos a ele relacionados sob o regime da lei das estatais.
Ao que tudo indica – inclusive o seu texto expresso –, a intenção da nova lei de licitações foi seguir o mesmo caminho. Em outras palavras, o que se busca é abrir a possibilidade de colaboração da iniciativa privada no planejamento e na fase preparatória de licitações (daí a relevância da previsão do PMI nessas normas), sem abrir espaço para os perigos já conhecidos de “misturar” a elaboração do projeto de engenharia a ser licitado com a sua efetiva execução.
A conclusão é relativamente simples: no regime da lei 14.133/21, embora as empresas agora possam colaborar na etapa dos estudos que informarão a futura licitação, inclusive com apresentação de estudos, projetos, documentos ou até minutas de editais e contratos, a empresa ou grupo econômico que entregar no PMI projeto de engenharia (anteprojeto, projeto básico ou executivo) ficará automaticamente impedida(o) de participar direta ou indiretamente da licitação das obras, serviços e fornecimento de bens a ele relacionados, ainda que a solução seja inovadora e de relevância pública.