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A teoria da cegueira deliberada

O sujeito finge não enxergar o potencial ilícito da conduta criminosa para se beneficiar da própria torpeza. Ele assume o risco consciente do resultado normativo da omissão, ou seja, age com dolo eventual.

15/5/2023

A teoria da cegueira deliberada ou da ignorância deliberada tem sido aceita pelo STJ e, em linhas gerais, é aplicada nos casos em que o sujeito tenta enganar a própria consciência, colocando-se em posição deliberada de voluntária ignorância, para justificar a conduta ilícita em suposto desconhecimento da norma:

Para que ocorra a aplicação da teoria da cegueira deliberada, deve restar demonstrado no quadro fático apresentado na lide que o agente finge não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.

(AgRg no REsp 1.565.832/RJ, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 6/12/18, DJe de 17/12/18.)

O sujeito finge não enxergar o potencial ilícito da conduta criminosa para se beneficiar da própria torpeza. Ele assume o risco consciente do resultado normativo da omissão, ou seja, age com dolo eventual:

In casu, aplicável ao caso a teoria da cegueira deliberada, segundo a qual pune-se o agente quando restar demonstrado que este, ciente ou suspeitando seguramente que esteja envolvido em negócios escusos ou ilícitos, deliberadamente toma medidas para se certificar de que não irá adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso, assemelhando-se ao dolo eventual.

(AREsp 2.157.427, Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe de 10/2/23.)

Com efeito, quando não há nexo de causalidade entre o crime e o agente, não é possível aplicar a teoria da cegueira deliberada, uma vez que o ordenamento jurídico vigente impede a responsabilidade penal objetiva ou por presunção:

(...)Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro impede a responsabilização penal objetiva ou por presunção de conhecimento de fatos e da possibilidade de impedi-los pela ocupação de posição específica em estrutura empresarial.

(...) Não há o demonstrado e exigível nexo de causalidade entre o crime e o agente, nenhuma circunstância que vincule o réu, no campo fático e probatório, à ação delituosa investigada

(...) Em resumo, o Tribunal local elencou diversos fatos que, realmente, geram alguma suspeita sobre o procedimento adotado pelo réu; não obstante, à míngua do apontamento de provas especificamente relacionadas à prática de alguma conduta específica de sua parte, é necessária a absolvição do acusado, por ausência de comprovação da materialidade delitiva.

(AREsp 2.247.534, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 9/2/23.

No julgamento de admissibilidade da denúncia na APn 940/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 6/5/20, DJe de 13/5/20 foi reconhecida a possibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada a fatos imputados à pessoas que se utilizavam da advocacia e da magistratura para blindar atividades criminosas:

O recebimento de vultosas quantias a título de remuneração pelo exercício de atividade advocatícia pode configurar indício da prática de lavagem de dinheiro quando incompatível com o grau de especialização do profissional e das tarefas praticadas e quando presentes evidências de que os pagamentos se deram em decorrência de atividades ilícitas.

O empréstimo do nome e da posição jurídica de pretenso proprietário das terras configura, no caso, indício suficiente de autoria dos delitos imputados, sendo inverossímil a alegação de ausência de dolo, direto ou eventual, especialmente considerando a possibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada.

Em decisão monocrática proferida no AREsp 2.240.102, Ministro, DJe de 6/2/23 foi aplicada a teoria da cegueira deliberada em caso que envolveu estupro de vulnerável contra menor de quatorze anos por omissão dolosa do dever de cuidado do infrator:

Em prosseguimento, o acusado afirmou que não pode ser condenado, na medida em que não tinha conhecimento da idade da adolescente.

Entretanto, pelo próprio desenrolar dos fatos, entendo que este tesa não se sustenta, uma vez que o réu era professor da vítima, morava em uma cidade bastante pequena e conhecia os familiares e amigos da menor, não sendo crível que não soubesse (ou suspeitasse) da idade desta.

Aliás, ainda que fosse o caso de se admitir a ignorância, a escusa do art. 20 do Código Penal não se aplica ao sujeito que intencionalmente se omite em cercar-se de cuidados para averiguação de uma possível ilegalidade.

Em outro caso que envolveu a apreensão de bem de origem ilícita na posse do agente, a intencional ignorância foi utilizada para criminalizar a conduta do sujeito que assumiu o risco de adquirir bem de origem duvidosa:

A apreensão de bem de origem ilícita na posse do agente gera a presunção de responsabilidade, invertendo, pois, o ônus da prova, incidindo, também, na espécie a Teoria da Cegueira Deliberada, referida pelo Ministro Celso de Mello na Ação Penal 470/MG, cuja origem advém da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, e que estabelece que a intencional ignorância acerca da ilicitude e da gravidade do caso não pode elidir a responsabilidade penal, na medida em que, ainda que não almejasse diretamente a prática de receptação, certo é que agiu de modo a admitir a possibilidade concreta e muito provável, diante das circunstâncias que envolveram toda a conjuntura fática.

(HC 714.415, Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 1/2/22.)

Essa mesma interpretação foi feita em relação ao delito de contrabando, onde o acusado não adotou as medidas de cautela necessárias à averiguação do potencial ilícito da conduta criminosa:

Na hipótese em apreço, restou evidenciado que os réus tinham plena ciência e consciência da ação delitiva ou que, no mínimo, assumiram a responsabilidade pelo cometimento dos resultados delituosos, na medida em que restou configurado o dolo ou, pelo menos, o dolo eventual nas suas condutas, tendo praticado o crime na forma do art. 29 do Código Penal.

Por essas razões, tenho como plenamente demonstrado o dolo delitivo na conduta dos acusados, uma vez que, com vontade livre e consciente, assumiram o risco de transportar mercadorias sem o comprovante de internalização e pagamento dos impostos, agindo, senão com dolo direto, então com dolo eventual.

(AREsp 2.094.289, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 1/7/22.)

No julgamento do HC 641.343, Ministra Laurita Vaz, DJe de 9/8/22, os sócios administradores de uma corporação tentaram se desvincular da acusação criminal colocando-se em posição deliberada de voluntária ignorância:

 “De mais a mais, não se pode alegar que a ré Rute não tinha conhecimento da administração da empresa. Segundo consta da 3ª Alteração Contratual, fls. 204/210 da NC 1.523/17 - quarta cláusula -, ela e Antônio Devides são os sócios administradores da empresa, podendo praticar todos os atos em seu nome, o que atrai, no mínimo, a incidência da teoria da cegueira deliberada.”

Para realçar, se transcreve trechos de decisão onde foi aplicada a teoria da cegueira deliberada em caso que envolveu a aceitação de risco previsível: 

Não é crível que um sujeito que se propõe a invadir um clube, no meio da noite, com outro elemento já conhecido por suas atitudes desviadas, fora surpreendido pelo uso de uma arma de fogo.

Aliás, mesmo que esta circunstância não fosse de pleno e total conhecimento do apelante, certo é que assumiu o risco da existência e uso do artefato. Cuida-se de genuína hipótese de incidência da Teoria da Cegueira Deliberada, referida pelo Ministro Celso de Mello, ao proferir voto na Ação Penal 470/MG (v. Informativo 684/STF), em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.

(AREsp 2.089.882, Ministro Humberto Martins, DJe de 2/5/22.)

Como visto, a teoria da cegueira deliberada pode ser aplicada em inúmeros casos que envolvam a voluntária ignorância para justificar a conduta ilícita em suposto desconhecimento da norma. Isto é, a omissão voluntária sobre a elevada probabilidade criminosa da conduta permitirá a responsabilização criminal por dolo eventual.

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AgRg no REsp 1.565.832/RJ, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 6/12/18, DJe de 17/12/18

AREsp 2.157.427, Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe de 10/2/23

AREsp 2.247.534, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 9/2/23

APn 940/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 6/5/20, DJe de 13/5/20

AREsp 2.240.102, Ministro, DJe de 6/2/23

HC 714.415, Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 1/2/22

AREsp 2.094.289, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 1/7/22

HC 641.343, Ministra Laurita Vaz, DJe de 9/8/22

AREsp 2.089.882, Ministro Humberto Martins, DJe de 02/05/2022

(AgRg no AREsp 2.095.009, Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe de 14/10/2022.)

(REsp 1.972.602, Ministra Laurita Vaz, DJe de 30/08/2022.)

(HC 737.631, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, DJe de 02/05/2022.)

(RHC 163.700, Ministra Laurita Vaz, DJe de 03/05/2022.)

(AgRg no AREsp 1.838.712, Ministro Felix Fischer, DJe de 02/08/2021.)

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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