“Não tem como a pessoa ir para casa porque eles prendem a gente de uma forma que ou a gente fica ou, se não quiser ficar, vai morrer. Se a gente quiser sair, quebrar o contrato, sai sem direito a nada, nem os dias trabalhados, sem passagem, sem nada. Então, a gente é forçado a ficar.” A dor, angústia e o sentimento de “ coisificação” dessa citação não são apenas dimensões da fala de um trabalhador resgatado em condição análoga à escravidão, em 2023, em vinícolas do Rio Grande do Sul. Simbolizam, sobretudo, o nosso atraso civilizatório diante da inaceitável realidade de ainda encontrarmos anualmente dezenas ou centenas de seres humanos submetidos a condições de trabalho análogas à de escravizados. Trata-se de crime que sobrepuja fronteiras geográficas, econômicas, étnicas, culturais ou religiosas, e revela-se, muitas vezes, instrumento para a acumulação de riqueza, com a busca do lucro construída à custa da dignidade da pessoa humana.
Em 2021, mais de 50 milhões de pessoas no mundo eram vítimas da escravidão moderna, segundo a mais recente pesquisa sobre a temática, capitaneada pela Organização Internacional do Trabalho, Walk Free e Organização Internacional para as Migrações. Desse quantitativo, que registra trajetória ascendente, 3,3 milhões eram crianças.
Comprometidos com o combate dessa mazela, trabalhadores, empregadores e governos do mundo inteiro, reunidos na OIT, produziram no passado recente mais de uma dezena de normas internacionais para enfrentar o trabalho compulsório ou em condições degradantes. Bons exemplos são as Convenções relativas à Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura; da Abolição do Trabalho Forçado; e da Fixação de Salários Mínimos.
No plano interno, além da aprovação, ratificação e promulgação das convenções, trilhamos caminho próprio nesse combate. O Código Penal brasileiro, em seu art. 149, caracteriza o trabalho análogo ao de escravo aquele feito por meio da submissão forçada ou com jornadas exaustivas, pela sujeição a condições degradantes de trabalho e pela restrição de locomoção do trabalhador. A pena é de dois a oito anos de reclusão, além da pena correspondente à violência, com aumento da punição caso o crime seja cometido contra criança, adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Localmente, no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, também lutamos para extirpar esse mal. A lógica que nos move, além dos normativos internacionais e nacionais, é a coalizão de forças. Apenas com a formação de redes sólidas compostas por órgãos públicos, empresas e sociedade civil será possível fazer retroceder o trabalho escravo moderno, que infelizmente tem crescido. Também pautamos nosso trabalho pela atuação multidisciplinar, pois se trata de crime com fortes conexões com exploração sexual e tráfico de pessoas, com o racismo, com as desigualdades sociais e com as lacunas de políticas públicas efetivas, capazes de alcançar aqueles que historicamente foram negligenciados.
Como coordenador do Comitê para a Erradicação do Trabalho Escravo Contemporâneo, do Tráfico de Pessoas, da Discriminação de Gênero, Raça, Etnia e Promoção de Igualdade do TRT-15, acostumado a lidar com os processos trabalhistas que enfrentam essa temática, afirmo que o trabalho escravo contemporâneo é o sinal mais visível da decadência moral de parte da humanidade. O êxtase que experimentamos com os avanços tecnológicos não pode - jamais - nos fazer esquecer que são os progressos rumo à substantiva dignidade da pessoa humana que nos fazem caminhar adiante. Não o contrário.
Precisamos, além disso, compreender que o ápice das normas internacionais ou nacionais, sobretudo as sancionantes, é o seu desuso. Quando já não há mais o que punir, é sinal de que vencemos como humanidade. A fala do trabalhador resgatado em manufatura que produz o que simbolicamente nos representa o sangue de Cristo indica que ainda estamos longe do cume civilizatório. É urgente a luta imarcescível por parte dos órgãos públicos, privados e sociedade civil enquanto perdurar esse grave problema social.
Nosso Comitê, por meio de encontros e seminários periódicos, tem buscado sensibilizar a população do interior de São Paulo sobre a importância de identificar, combater e denunciar situações de trabalho escravo ou tráfico de pessoas e a discriminação. Além dos debates extramuros, procuramos dar o exemplo dentro de nossas unidades.
Em 30 de junho de 2015, assinei o Ato Regulamentar 6/15 do TRT-15, que no âmbito dos TRTs pioneiramente instituiu para negros reserva de 20% das vagas nos concursos públicos para servidores e juízes do trabalho substitutos. Tratou-se de medida atenta à necessidade de consecução do disposto na lei 12.288/10, que dispõe sobre o Estatuto da Igualdade Racial, e na lei 12.990/14, a Lei de Cotas. Em 2016, firmamos parceria com a Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Sociocultural (Afrobras) passando a estimular a adesão de empresas à chamada Iniciativa Empresarial voltada à Igualdade Racial, que destaca dez ações afirmativas para o primeiro emprego dos afrodescendentes. Em encontro realizado no TRT-15 naquele mesmo ano com o apoio da Universidade Zumbi dos Palmares, assinamos a Carta de Campinas pela Iniciativa mobilizando 50 empresas da região. Atualmente, mais de 140 grandes empresários trabalham pela inclusão social.
Assim seguiremos até que os trabalhadores em condições análogas à de escravos - estejam eles em vinícolas, tecelagens ou joalherias - desapareçam das páginas de jornais e sejam apenas capítulos de livros de história.