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A retroatividade do acordo de não persecução penal e o princípio do promotor natural

A possibilidade jurídica de proposição do acordo de não persecução penal aos processos em fase recursal exige um novo olhar sobre o promotor natural e a violação do duplo grau de jurisdição.

10/5/2023

Apesar da forte resistência no início, a retroatividade do acordo de não persecução penal parece ser controvérsia superada. Não apenas os tribunais, mas os próprios órgãos do Ministério Público, reconhecem a aplicação do acordo a processos já iniciados e até com decisão condenatória transitada em julgado. Afinal, as regras do ANPP trazem uma causa de extinção da punibilidade quando as condições são obedecidas.

Após a consolidação sobre a retroatividade do ANPP, um dos problemas mais importantes é a quem cabe analisar a proposta. Se o processo estiver na fase recursal, quem deve decidir sobre o acordo, o órgão do Ministério Público atuante no respectivo tribunal ou aquele que havia oferecido a denúncia? O tema está diretamente relacionado ao princípio do promotor natural, que ainda não alcançou a mesma importância do juiz natural em nossa doutrina e jurisprudência.

E qual seria a repercussão prática desse debate? Quando o processo estiver em fase avançada, no aguardo do julgamento do recurso, a devolução dos autos para proposta de acordo, em nossa opinião, deve ser dirigida ao órgão do Ministério Público que ofereceu a denúncia e poderia ter optado pelo ANPP caso o instituto jurídico existisse à época do exercício da ação penal.

1. Da retroatividade do ANPP para os casos que já se encontram em grau de recurso.

A norma que instituiu o acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro é de natureza processual mista. Há regulamentação de procedimento não previsto anteriormente em lei, bem como a ampliação de hipóteses de extinção da punibilidade. Sob o aspecto de uma substancial paridade de tratamento, não seria racional ofertar o acordo para quem está sendo investigado e negá-lo a quem foi denunciado, condenado ou já foi definitivamente sentenciado1. 

Não há impedimento constitucional para aplicar retroativamente o acordo. Ao contrário, o art. 5.°, XL, da Constituição Federal, impõe que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Nesse caso, não restam dúvidas de que a natureza da norma que institui o ANPP tem caráter material. O cumprimento das condições contratadas tem por consequência a extinção da punibilidade. Como bem explicam Guimarães e Guaragni, “trata-se de uma regra processual com conteúdo material e, nessa medida, deve ser interpretada como se fosse apenas uma regra de direito penal material”2. Sendo lei material, a retroatividade é garantia constitucional3, além de encontrar amparo na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 09, in fine).

Nesse caso, não faz sentido interpretar o art. 28-A de maneira literal, restringindo sua aplicação apenas a quem é investigado. A lei penal deve ser interpretada restritivamente apenas para conter o poder punitivo do Estado. Concorda-se, aqui, com Rodrigo Rios, para quem uma nova fisionomia constitucional do direito penal deve ser concebida como uma tarefa incessante e aberta. A interpretação conforme a Constituição é forma de fiscalização de todo o ordenamento jurídico-penal vigente, além de meio hábil a fornecer à sociedade uma segurança jurídica democrática. Há um duplo sentido nas técnicas interpretativas capazes de permitir a realização do princípio da supremacia da Constituição: por um lado, se reconhece aos direitos fundamentais um efeito irradiante no direito ordinário; por outro, se impõe uma interpretação do direito ordinário conforme à Constituição, ou seja, enquanto possível, as normas devem ser compreendidas sem contradizer a Constituição.4

Vale expor decisão do E. Tribunal Regional Federal da 4.ª Região: “Não vejo obstáculo para a oferta de ANPP na inexistência de confissão nos processos já sentenciados. A questão não pode ser colocada, aprioristicamente, como óbice ao benefício. Isto porque não existia, até então, a regra que previa esse incentivo ao réu que confessasse. (...) Com a novidade legal, é razoável que se oportunize ao réu rever sua estratégia processual, inclusive considerando a possibilidade de confessar e receber o benefício. As pessoas agem mediante incentivos e desincentivos, sendo que o novo instituto consiste em vantagem adicional ao acusado, que passa a dispor de benefício até então não existente. E, com base nesse novo arcabouço jurídico, pode avaliar se deve, ou não, confessar o ilícito, de modo a obter o favor legal” (COR: 5009312-62.2020.4.04.0000, Rel. João Pedro Gebran Neto, 8ª Turma, DJ 13/5/20).

2. Da necessidade de uma resposta negativa fundamentada exclusivamente no art. 28-A do CPP, afastando um por um dos requisitos, e não uma resposta genérica que faz alusão apenas à não retroatividade.

De acordo com o dispositivo legal, “não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. A recusa, portanto, deve ser fundamentada na inexistência nos requisitos e na impossibilidade de cumprimento das condições.

A resposta deve ser motivada porque é direito do acusado recorrer a instância superior do Ministério Público para reapreciação do pedido. Conforme dispõe o art. 28-A, § 14, “no caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código”. Ou seja, a celebração do acordo não é reconhecida como direito subjetivo, porém, a resposta motivada é garantia constitucional extensiva às decisões administrativas que impliquem restrição de direitos (CF, art. 5.°, LV, c/c art. 93, IX).

Atentando-se ao disposto no final do art. 28-A (desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime) percebe-se que a negativa do acordo deve ser motivada por critério de exclusão, ou seja, o representante do Parquet deve explicar os motivos pelos quais a ação penal e posterior pena atendem às finalidades de reprovação e prevenção, e não o acordo. Em síntese, o acordo de não persecução penal, para ser recusado, deve ser menos eficaz que a pena e essa fundamentação é obrigatória na decisão.

Não foi à toa que o legislador fez referências às finalidades de reprovação e prevenção. Esse tema sempre foi objeto da teoria da pena, que há alguns séculos vem se ocupando de legitimar a sanção penal de acordo com sua função. Por isso, só é legítima a recusa ao acordo se ficar comprovado, por decisão do Ministério Público, que eventual pena futura se mostra mais apta a reprovar o fato praticado e prevenir futuros ilícitos.

3. A necessidade de que a proposta seja encaminhada a outro órgão do MPF para apreciação, ainda que a resposta seja negativa, porém, fundamentada.

Não restam dúvidas de que os órgãos do Ministério Público possuem autonomia funcional, ou seja, devem agir de acordo com suas convicções, sem pressão de superiores. Essa autonomia é protegida pelas garantias orgânicas e pelas garantias individuais. As garantias orgânicas, na lição de André Ramos Tavares, são a capacidade de autogoverno, autonomia financeira e capacidade normativa. Por seu turno, as garantias individuais são a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos. Tais garantias, também previstas aos membros do Poder Judiciário, têm por finalidade permitir o livre desempenho de suas atividades com a maior independência possível5.

Não se pode ignorar que essas garantias possuem previsão constitucional. Entretanto, há outros direitos fundamentais também previstos na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. A dignidade humana é um dos mais importantes desses direitos e não pode sofrer qualquer tipo de atentado. Um direito fundamental só pode ser restringido por algum motivo muito relevante, melhor dizendo, quando colidir com outro direito de mesma importância.

Ao lado da independência funcional está o princípio da unidade, segundo o qual “o Ministério Público se constitui de um só organismo, uma única instituição. Quando um membro do Parquet atua, quem na realidade está atuando é o próprio Ministério Público. (...), isto é, não é possível dissociar o órgão da instituição; aquele faz esta atuar. Assim como não se pode dissociar o membro do órgão, aquele é parte integrante deste; juntos formam um só todo”6. Ainda que um integrante do Ministério Público discorde de posição institucional, paira a liberdade de encaminhar o caso a outro órgão para apreciação e eventual adoção do acordo.

Divergência há entre liberdade individual e exercício da independência funcional para impedir a aplicação de um instituto jurídico despenalizador que é amplamente aceito pela instituição. Nota-se que requerente sofre restrição de sua liberdade, em sentido amplo, porque está sujeito a uma sanção criminal, sob alegação de independência do órgão do Ministério Público, que deve atender aos interesses sociais, assim como as finalidades da pena.

A liberdade individual deve ser analisada de maneira ampla. Não se trata apenas do direito de ir e vir, mas também o direito a não ser estigmatizado por uma condenação quando houver a possibilidade jurídica de resolver o conflito sem o uso do aparato repressivo estatal. O acordo de não persecução penal é medida legal que permite colocar em prática a justiça penal negocial, oferecendo a oportunidade de reparação dos danos causados sem o peso de uma condenação criminal.

A própria instituição reconhece a possibilidade jurídica de, no caso em discussão, fazer uso do acordo de não persecução penal. Os pareceres emitidos pelos Subprocuradores-Gerais da República não têm caráter vinculativo. Não obstante, revelam o posicionamento institucional favorável à redução de danos ao réu. Não se trata aqui de fazer juízo de valor sobre a culpa ou inocência de alguém, mas afirmar que pode ser concedido o direito a reparar dos danos causados em troca do retorno ao status de inocente.

Nesse sentido, encaminhar a solicitação de acordo de não persecução penal a outro órgão do Ministério Público não implica afronta à independência funcional. Ao contrário, abre-se a possibilidade de outro membro do Parquet analisar posição firmada pela instituição sem obrigar aquele que discorda desta a seguir uma opinião contrária à sua convicção.

Pode-se, inclusive, falar-se de uma hipótese de incompatibilidade. Demercian e Maluly, sustentados na doutrina de Tourinho Filho, definem a incompatibilidade como qualquer condição que afete a competência subjetiva do juiz, pois tal condição faz gerar uma inconciliabilidade do juiz com a causa cujo julgamento sereno e imparcial lhe está afeto7. Assim como as causas de suspeição e impedimento, aplicadas aos magistrados, incidem sobre os membros do Ministério Público as incompatibilidades. Ou seja, o integrante do Parquet que já manifestou posição contrária ao que é permitido pela própria instituição, e essa recusa implica redução da liberdade individual, deve o caso ser remetido à apreciação de outro membro.

Aliás, aceitando-se a retroatividade da aplicação do acordo de não persecução penal, o promotor natural deve ser aquele que teria a legitimidade de atuação desde o início8. Quer dizer, independentemente do momento em que se reconhece a aplicação do acordo, cabe ao membro do Ministério Público atuante na primeira instância celebrar a negociação. A retroatividade deve alcançar o momento anterior ao exercício da ação penal, já que a finalidade da norma é exatamente buscar a reparação de danos e a evitação do processo e suas consequências negativas.

Nesse caminho, o que afeta a independência funcional do representante do Ministério Público de primeira instância é a recusa de envio dos autos do processo para avaliar a possibilidade de acordo. Vejamos: se o principal requisito do ANPP é a justa causa para a ação penal, pois aquele é substitutivo desta, aquele que tinha a legitimidade para oferecer a denúncia é quem deve apreciar os requisitos para eventual acordo, que poderia ter sido celebrado caso existisse a norma naquele momento. Enfim, deve-se permitir que aquele que exerceu a ação penal possa verificar se a substituiria pelo acordo de não persecução penal caso este estivesse em vigência. Não se trata, portanto, de obrigar a aceitação de uma orientação institucional, e sim de encaminhar o caso para verificação daquele que provocou a atividade jurisdicional.

Além do fundamento teórico, há uma explicação prática para o envio dos autos para a primeira instância. Se o membro do Ministério Público, motivadamente, recusar a celebração do acordo, caberá o recurso administrativo ao órgão superior. Aliás, o item 08 da Orientação Conjunta 03/18 das 2ª, 4ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF admite a possibilidade de negociação do acordo no curso da ação penal, ampliando, assim, a probabilidade de restauração do estado de inocência do réu.

A devolução dos autos ao órgão do MP atuante na segunda instância pode trazer um grave problema. Se houver recusa, não há a quem recorrer, a não ser que interpretemos o art. 28-A, § 14, de maneira a permitir que membros do órgão superior possam julgar decisões de colegas no mesmo nível hierárquico. Impedir o uso do recurso administrativo pelo acusado configura violação ao princípio do duplo grau de jurisdição, que deve ser aplicado também em procedimentos administrativos, conforme já firmou o STF na ADI 1.976/DF.

Portanto, comprovada a possibilidade jurídica de retroatividade do acordo de não persecução penal, resta enviar os autos ao órgão do Ministério Público de onde partiu a denúncia para que este se pronuncie a respeito do tema. É este que tem legitimidade para analisar se o acordo seria viável à época do oferecimento da denúncia. Ademais, o juiz natural para homologação é aquele que proferiu decisão de recebimento da peça acusatória.

Conclusões:

  1. O acordo de não persecução penal foi instituído por norma processual de conteúdo processual e material, uma vez que afeta a pretensão punitiva do Estado. Sendo assim, deve retroagir sempre, pois não há impedimento constitucional.
  2. A decisão pela recusa não pode ser fundamentada apenas por entendimento de que a norma não pode retroagir. O Ministério Público deve demonstrar por que a possível pena seria mais eficaz que o acordo para fins de reprovação e prevenção, conforme disposição da própria lei.
  3. Reconhecida a possibilidade de retroatividade do ANPP, os autos devem ser remetidos ao órgão do Ministério Público responsável pelo oferecimento da denúncia, pois é este que reconheceu a justa causa para a ação penal e poderia ter optado em não exercê-la se o acordo existisse à época. Ademais, impede-se o cerceamento ao duplo grau de jurisdição, aplicável também aos procedimentos administrativos.

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1 MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. O respeito à Constituição Federal na aplicação retroativa do ANPP. In: ANPP: Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2022, p. 131.

2 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim; GUARAGNI, Fábio André. Acordo de não persecução penal e sucessão temporal de normas processuais penais. In: ANPP: Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2022, p. 144.

3 BRAGA, Vera Regina de Almeida. Dos juizados especiais criminais. Revista dos Tribunais, vol. 723, p. 506, Jan, 1996.

4 RIOS, Rodrigo Sanchéz. Reflexões sobre o princípio da legalidade no direito penal e o Estado democrático de direito. Revista dos Tribunais, vol. 847, p. 406 – 418, Maio, 2006.

5 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 991.

6 TEIXEIRA, Francisco Dias. Princípios constitucionais do Ministério Público. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 49, p. 291 – 316, Jul – Ago, 2004 .

7 DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. São Paulo: Forense, 2012, p. 294.

8 PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 2014, p. 459.

João Paulo Martinelli
Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

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