Nos quinhentos e vinte e três anos do descobrimento do Brasil e nos lembrando dessa parte do nosso hino nacional, cabe perguntar se esse “berço esplêndido” no qual estaríamos deitados eternamente representa um presente ou um fado negativo.
É claro que os autores do nosso hino procuram exaltar o Brasil tanto do ponto de vista da melodia, quanto da mensagem encerrada em sua letra. Esse papel de encômio é precisamente o que se pretende nos hinos nacionais de todos os países, do qual o nosso não foge, orgulho dos brasileiros, sobre o qual no meu tempo de grupo escolar corria a lenda urbana no sentido de que, pela sua beleza, os Estados Unidos desejavam comprar o nosso hino, pagando muito bem. Na mesma linha do que se comentava sobre a vontade do Papa de trocar Roma pelo Rio de Janeiro.
E se me permitem a brincadeira, lembro-me de que a minha filha mais velha, nos seus tempos iniciais de escola, não entendendo bem a rica letra do hino, lá pelas tantas emendava: “Ó pátria amada, tô lacrada, salve, salve!”. Bem a propósito, como se vê.
Esse “estar deitado eternamente em berço esplêndido” nos pode trazer algumas reflexões.
Primeiro, seria uma indicação de um estado de lassidão permanente, que impediria o desenvolvimento adequado da criança que ali estaria encerrada, tirada do seu berço apenas para ser amamentada. Ou mesmo nem isso, quando a mamadeira seria fornecida com ela deitada, na sua condição de imobilidade eternal. Enquanto outras crianças nascidas na mesma época dos descobrimentos logo saíram do seu ambiente protetor e começaram a caminhar no mundo a ser descoberto, a nossa permaneceu em estado de latência: uma larva que nunca chegou ao estado de crisálida, muito menos de vida adulta, de imago. Ficou no meio do caminho.
O rompimento com tal tranquilidade poderia ter ocorrido quando El Rey de Portugal criou as capitanias hereditárias, com a finalidade de fazer com que os beneficiados tratassem de sair a campo para desbravar as terras e delas tirar proveito para ele principalmente, claro. Mas esse movimento não teve nada de altruísta, no sentido de fazer a criança crescer saudável e chegar ao momento de cuidar de sua própria vida. Não, o objetivo era o de explorar as riquezas que fossem encontradas – especialmente ouro, prata e pedras preciosas – e enviá-las para Portugal, o que aconteceu efetivamente, como sabemos. E o pau-brasil que nos deu o nome foi um presente extra. Na verdade, Portugal veio a ser com o tempo uma escala técnica, tendo as nossas riquezas sido levadas para a boa terra de Albion como destino final.
Só para fazer um contraponto, veja-se como a criança americana logo andou por suas próprias pernas, enveredando país adentro e construindo uma vasta rede de comunicação e de transporte de cargas e passageiros, inicialmente com o Poney Express, com as carroças e com as diligências, estas famosas nos filmes do faroeste, sempre assaltadas por empresários do dinheiro alheio. Mais tarde foi a iniciativa privada que cruzou todo o país com estradas de ferro que se multiplicaram grandemente1. Por aqui essa tarefa depende de El Rey (isto é, El Gobierno), com os resultados que se conhece, desde a malfadada aventura de Irineu Evangelista de Souza, mas conhecido como Barão de Mauá.
E, como se diz em economia, as tais capitanias hereditárias deram margem ao aparecimento de externalidades negativas e de efeitos de segunda ordem, que nos marcaram para sempre. Foi com elas que teria nascido o patrimonialismo, integrado irremediavelmente em nosso DNA, caracterizado pela apropriação privada do bem público em favor de aristocracias e de oligarquias estas sim eternas, tanto no Império, quanto em nossas diversas Repúblicas que àquele sucederam. Se a primeira sede do patrimonialismo estava na Corte, a partir da década de sessenta do século passado ela se localizou em Brasília, sem destoar do fato de que tem filiais em todo o território nacional, ou seja, nos estados e nos municípios, o que envolve os poderes executivo e legislativo, umbilicalmente ligados em tomar o que é do povo para si próprios. Como se percebe, não temos res publica, mas res privada em favor de uma minoria privilegiada.
Foi com base no patrimonialismo que se fez alguma riqueza no Brasil (intensamente mal dividida) – muito menos do que se poderia alcançar – como se verifica pela história dos senhores de engenho ao tempo do ciclo do açúcar, beneficiados com os títulos de conde, barão e comendador, os quais formaram uma casta extremamente fechada, na qual não penetravam estranhos, firmada pelos casamentos entre os filhos das ilustres famílias. Esse ambiente patriarcal fechado, que criou uma espécie de nobreza no Nordeste é contado por gente de dentro, Julio Bello, em sua obra bibliográfica “Memórias de um Senhor de Engenho”, escrita nos estertores daquela sociedade2.
Em algumas ocasiões a nossa criança procurou sair do berço esplêndido e caminhar por suas próprias pernas, o que deu errado, na medida em que em pouquíssimas situações lhe foi possível andar sem precisar da muleta do Estado, tão entranhados são os laços entre o público e o privado na economia nacional. Vejamos o tão festejado agronegócio, que se diz obra de empresários dotados de uma índole desbravadora. O seu extraordinário sucesso não prescinde do Estado em uma troca que gera enormes distorções, com a política eleitoreira entremeada nessa atividade.
Beneficiado com a receita dos impostos produzidos em penca pelo agronegócio, o governo atual, em atitude completamente idiossincrática, estimula indiretamente a invasão de terras produtiva e até mesmo de centros de pesquisas que muito têm elevado a produção nessa área, tanto qualitativa, quanto quantitativamente. Um conhecido invasor de terras tira foto oficial com o presidente da República em viagem ao oriente extremo e representantes do MST recebem honras palacianas e indicam dirigentes de órgãos governamentais. Por sua vez, o desgovernante anterior foi de grande ajuda na destruição do meio ambiente, incluindo em sua atuação o aumento da desgraça dos povos indígenas.
E do lado dos empresários rurais a mesma atitude confusa se tem verificado. Para confirmar isso, basta lembrar o que aconteceu recentemente, na ocasião da maior feira do agronegócio do país, que teve lugar em Ribeirão Preto, quando houve (ou não houve?) um desconvite à presença do ministro da área, uma vez que ali estaria com todas as honras o ex-grande mito brasileiro.
Outro entendimento quanto ao sono eterno da permanente criança brasileira está no fato de que com ela sempre no berço, não dá para trocar o lençol molhado e sujo, o que representa um grande incômodo e impedimento à renovação. E quem sabe que tesouros não poderiam ser encontrados dentro do colchão inacessível, não somente quanto a bens próprios da natureza, como também aqueles que poderiam ser desenvolvidos como resultado de criatividade, com a criança fora do berço? Sempre, claro, respeitado o meio ambiente e as populações autóctones.
No sentido acima pergunta-se onde está o nosso Vale do Silício, que ainda não germinou de forma expressiva, com algumas tentativas de ser dado à luz em poucos centros de pesquisa, que parecem estar descoordenados entre si, tendo como efeito o desperdício de recursos?
E finalmente, todos sabemos que não se pode ficar eternamente no berço esplêndido pois, sem uso, os membros do corpo ficam atrofiados, sem poder levar o corpo a cumprir as suas funções de forma adequada. E para pular fora dele a criança necessitará de algum chamariz bem atrativo, em economia chamado de recompensa.
Mas ao mesmo tempo em que algumas recompensas são criadas, a mamãe Estado sempre encontra um jeito de prender a criança no berço, onde será bem controlada. Que o diga o desvairado ataque atual à privatização da Eletrobrás.
Quosque tandem já se disse em passado distante, sempre válido nestas terras.
Prezado leitor, que conhecer as razões pelas quais a nossa criança não cresce? Fácil, vou indicar três fontes imperdíveis entre muitas outras: (i) a obra completa do injustamente esquecido Lima Barreto: (ii) “Os Donos do Poder” de Raymundo Faoro; e (iii) “Mauá o Empresário do Império”, de Jorge Caldeira.
Tenha uma excelente leitura!
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1 Os abusos na emissão de ações naquele tempo, nos quais os emissores prometiam tudo aos investidos, inclusive “o céu azul” resultaram na criação dos reguladores do Mercado de Capitais.
2 Editora Fundarpe, 1985.