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Julgamento dos REsp 955.227 e 949.297 (Temas 885 e 881): A coisa julgada em matéria de trato continuado

Com a edição de um precedente das cortes de vértice em sentido contrário àquele definido pela decisão qualificada pela coisa julgada em matéria continuativa apta a fazer cessar prospectivamente os efeitos da “res iudicata”.

9/5/2023

A maioria do Supremo Tribunal Federal, no julgamento dos Recursos Extraordinários 955.227 e 949.297 (Temas 885 e 881, respectivamente), decidiu que os efeitos de sentença definitiva em matéria tributária de trato sucessivo cessam automaticamente quando sobrevém manifestação do Plenário do STF em ação direta ou em sede de repercussão geral em sentido contrário ao fundamento da sentença transitada em julgado.

Desde a publicação da ata do julgamento muito se tem discutido acerca do possível ‘fim da coisa julgada’, havendo respeitada doutrina que critica veementemente a posição adotada pelo STF, defendendo ser injustificável admitir que a coisa julgada formada em matéria tributária possa ter seus efeitos automaticamente cassados sem o manejo da competente ação rescisória.

Toda problemática dos casos concretos – que são aplicáveis a todas as relações tributárias de trato sucessivo – está relacionada à Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que, logo após sua instituição, passou a ter sua (in)constitucionalidade debatida, tendo inúmeros contribuintes obtido sentença transitada em julgado, por vezes em ações declaratórias, reconhecendo a inconstitucionalidade do tributo.

No de 2007 o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 15, firmou o entendimento, em sede de controle concentrado, no sentido de que a cobrança da CSLL, a partir de 1989, era constitucional.

A discussão enfrentada recentemente pelo STF, portanto, diz respeito à possibilidade ou não do Fisco, mesmo existindo coisa julgada em favor dos contribuintes e independentemente da propositura de ação rescisória, passar a cobrar a CSLL após o julgamento do STF em controle concentrado (2007).

No dia 8/2/23 o STF concluiu o julgamento dos recursos extraordinários e, não modulando os efeitos da decisão, fixou a seguinte tese nos Temas 885 e 881:

1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.

2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.

O acórdão foi publicado na data de 3/5/23, mas desde a divulgação e a publicação da ata de julgamento dos recursos muito se discute sobre o (des)acerto da decisão e o (des)respeito ao instituto da coisa julgada.

Respeitado os entendimentos, não parece que o STF ofende o instituto da coisa julgada, nem mesmo relativiza seus efeitos. Em primeiro lugar porque é preciso compreender que a coisa julgada em relações continuativas, dentre as quais as tributárias, não impede que a decisão receba tratamento diverso no futuro, diante da ocorrência de fatos novos ou do advento de direito novo, nos exatos termos do art. 505, inciso I, do CPC.

Sobre os limites temporais da coisa julgada, pertinente a lição de Humberto Theodoro Júnior:

Costuma-se identificar o fenômeno da coisa julgada sobre relação jurídica continuativa com o chamado limite temporal da coisa julgada.

[...]

Na verdade, contudo, não é o efeito da sentença que é temporário, nem muito menos é a res iudicata que se extingue ao final de determinado momento. É o objeto do julgado que desaparece e, por isso, o comando sentencial deixa de atuar, não por ter extinguido sua força, mas por não ter mais sobre o que incidir.1

Na mesma linha, anota-se a opinião de Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero:

Limites temporais: A coisa julgada vincula em dado espaço de tempo. Enquanto persistir o contexto fático-jurídico que deu lugar à sua formação, persiste a sua autoridade. Modificando-se, contudo, os fatos jurídicos sobre os quais se pronunciou o órgão jurisdicional, a coisa julgada não mais se verifica. É nesse sentido que se afirmar que a coisa julgada nasce gravada com a cláusula rebus sic stantibus.2

O que restou decidido pelo STF, portanto, como bem pontuou Hugo de Brito Machado Segundo, é que se houver mudança na situação de fato ou de direito os efeitos da sentença de relações continuadas, a partir de então, não se produzem mais.3

Assim, o fato de a cobrança passar a ser efetuada com base no novo posicionamento do STF – no sentido de constitucionalidade de determinado tributo – decorre justamente da natureza da coisa julgada formada em relação tributária de trato sucessivo. E exatamente por tal razão, não há nem mesmo que se falar em propositura de ação rescisória.

Nessa toada, é interessante abrir parênteses para falar sobre a força dos precedentes no nosso ordenamento jurídico desde o CPC/15. É absolutamente apropriado o ensinamento de Paulo Mendes de Oliveira a respeito da possibilidade de os precedentes dos tribunais superiores proporcionarem alteração no ordenamento jurídico apta a ser considerada uma modificação nas circunstâncias jurídicas que foram apreciadas quando da prolação da decisão judicial acobertada pela autoridade da coisa julgada em matéria de trato continuado.4

Assim, não se olvida que o julgamento de os Recursos Extraordinários reclama críticas, em especial pela falta de modulação de seus efeitos e pela equiparação dos efeitos do controle difuso e concentrado de constitucionalidade, contudo, não parece possível sustentar que a posição acaba com a coisa julgada ou mesmo a relativiza.

Ao fim e ao cabo, poderia se sustentar que a verdadeira insegurança jurídica trazida pelo novel julgamento está muito mais relacionada ao fato de não ter havido modulação dos efeitos do julgado do que o julgado em si, já que parece não ser nova a discussão de que alterações de fato e de direito produzem efeitos automáticos sobre sentença continuativa transitada em julgada, sem necessidade de postulação de uma ação rescisória.

Clarisse Frechiani Lara foi cirúrgica em sua análise ao tratar da insegurança jurídica:

De acordo com a Corte, não seria necessária a modulação porque há muito estaria consolidada a jurisprudência do STF quanto à constitucionalidade do CSLL. Mas a questão decidida não foi essa. O que se assentou, pela primeira vez, de forma explícita e com tal alcance, foi a desnecessidade de ação revisional para modificar as sentenças continuativas transitadas em julgado diante do advento da alteração do estado de direito.5

No mesmo sentido defende Thais Folgosi Françoso, para quem, para se garantir a segurança jurídica do sistema que, até então, valorizava as decisões judiciais individuais, seria imprescindível que houvesse modulação da decisão proferida pela Corte Superior, de modo que seus efeitos tivessem eficácia apenas a partir do novo julgamento. Aguarda-se a revisão dessa posição em sede de embargos de declaração.6

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1 JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil – Vol. I. 59ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 1.191.

2 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado – 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 644

3 SEGUNDO, Hugo Brito Machado. No tema da coisa julgada, houve mesmo surpresa no entendimento do STF. Conjur, 2023. Disponível em No tema da coisa julgada, houve mesmo surpresa no entendimento do STF?. Acesso em 18.4.2023. 

4 OLIVEIRA, Paulo Mendes de. Coisa julgada e precedente: limites temporais e as relações jurídicas de trato continuado. Coleção: O novo Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 192 – 193.

5 LEITE, Clarisse Frechiani Lara; PIETRO, Juliano di; COSTA, Mário Luiz Oliveira da. Efeitos da decisão do STF “sobre coisa julgada”. AASP, 2023. p. 19. Disponível em https://aplicacao.aasp.org.br/aasp/boletins/paginaveis/masterauth.asp?paginavel=1&livre=S&edicao=3168 Acesso em 26.04.2023

6 FRANÇOSO, Thais Folgosi. A coisa julgada e o novo posicionamento do STF. Migalhas de Peso, 2023. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/381692/a-coisa-julgada-e-o-novo-posicionamento-do-stf Acesso em 26.04.2023

Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.

César Augusto Costa
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pós-graduado em Direito Imobiliário na Universidade SECOVI/SP; Integrante do 2º grupo de estudos avançados em Processo Civil (GEAP) organizado pela Fundação Arcadas. Advogado no escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.

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