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Os desafios para o saneamento básico: Avanços no âmbito da prestação regionalizada

Uma análise sobre a regionalização, instrumento que ganhou importância com o Novo Marco Legal do Saneamento, passando pela experiência do Estado de Mato Grosso do Sul e alcançando os normativos recentemente editados.

5/5/2023

Na análise do novo marco legal do saneamento (Lei 14.026, de 15 de julho de 202, que atualiza a lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007 e altera outras leis) algumas premissas merecem destaque: a abertura do mercado, as metas de universalização do serviço, as competências atribuídas à Agência Nacional de Águas (ANA), atinentes à padronização contratual e à edição de normas de referência, e a prestação regionalizada do serviço.

Importante, ainda, citar o avanço contido na redação dada pelo novo marco legal ao art. 8º, caput, da lei 11.445, de 2007, que passou a delimitar expressamente a titularidade dos serviços nos casos de interesse local (Municípios e Distrito Federal) ou de interesse comum (Estado em conjunto com os Municípios que compartilham instalações operacionais). Portanto, a definição da titularidade dos serviços de saneamento básico no novo marco legal passa pela aferição do alcance do interesse envolvido.

Neste cenário, compreendemos que o grande salto do novo diploma reside na nova configuração dada à prestação regionalizada do serviço. Propomo-nos, então, a refletir sobre este aspecto e seus impactos, com um olhar detalhado para os seus avanços no âmbito do Estado de Mato Grosso do Sul.

Ciente da diversidade de contextos fáticos Brasil afora, o legislador federal pretendeu unir e regionalizar os Municípios de maneira a viabilizar a prestação dos serviços de forma sustentável financeiramente e apta a atender à meta da universalização do fornecimento de água e da coleta e do tratamento de esgoto até 2033.

Assim, a prestação regionalizada, a partir da montagem de blocos de municípios, viabiliza o saneamento básico em cidades menores, isoladas ou menos favorecidas, tendo como premissas o ganho de escala e a garantia da universalização e da viabilidade técnica e econômico-financeira dos serviços, na medida em que integra municípios com diferentes níveis de atratividade em um mesmo pacote de prestação dos serviços.

Este formato corrobora a ideia de federalismo cooperativo e vai ao encontro de um dos objetivos fundamentais previstos na Carta Magna que é a redução das desigualdades regionais.

Entende-se por prestação regionalizada, segundo o art. 3º, inciso VI, da lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (com redação dada pela lei 14.026/20), a modalidade de prestação integrada por um ou mais componentes dos serviços públicos de saneamento básico em determinada região cujo território alcance mais de um município, podendo ser estruturada em: (i) regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões; (ii) unidade regional de saneamento básico; e (iii) bloco de referência.

A formação de blocos municipais para a prestação integrada dos serviços de saneamento não é propriamente uma novidade. A constituição de consórcios para a gestão associada desses serviços já era possível, mesmo antes da lei 14.026/20, por força do art. 241, da Constituição Federal, e da lei 11.795, de 8 de outubro de 2008. Inobstante, o Novo Marco Regulatório inova ao atribuir aos Estados a competência para a estruturação destes blocos.

Isso porque, tanto no caso das regiões metropolitanas, das aglomerações urbanas e das microrregiões quanto das unidades regionais, cabe aos Estados propor o modelo e os blocos com os municípios que as integrarão.

Sendo adotada a modalidade de região metropolitana, de aglomeração urbana ou de microrregião caberá ao Estado, por meio de Lei Complementar dispor sobre ela, sendo compulsória a participação dos Municípios envolvidos (art. 3°, VI, “a”, da lei 11.445, de 2007). Por outro lado, as unidades regionais são formalizadas por meio de Lei Ordinária, também de competência do Estado, que tem como objetivo propor as regras e alocar os municípios nas respectivas unidades, sendo a adesão dos entes municipais uma faculdade (art. 3°, VI, “b”, da lei 11.445, de 2007). Por fim, os blocos de referência serão estipulados pela União, em caso de inércia dos Estados em propor um modelo de regionalização para seus municípios (art. 3°, VI, “c”, da lei 11.445, de 2007).

Como visto, no caso das unidades regionais a adesão ao modelo passa pela análise de conveniência e de oportunidade do Município aderente. Diante disso, tratou o legislador federal de conferir “incentivos” àquele que aceitar participar da prestação regionalizada, como, por exemplo, a flexibilização do prazo para atingimento das metas de universalização; a alocação dos recursos públicos federais não onerosos; e o recebimento de apoio técnico e financeiro da União para adaptação dos serviços ao disposto na nova legislação.

Outro ponto relevante e correlato à regionalização reside na estrutura de governança interfederativa proposta. Conforme o art. 8°, da lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007, na redação dada pela lei  14.026, de 2020, a estrutura de governança para as unidades regionais de saneamento básico seguirá o disposto no Estatuto da Metrópole, que prevê a seguinte composição: (i) instância executiva composta pelos representantes do Poder Executivo dos entes federativos integrantes das unidades territoriais urbanas; (ii) instância colegiada deliberativa com representação da sociedade civil; (iii) organização pública com funções técnico-consultivas; e (iv) sistema integrado de alocação de recursos e de prestação de contas.

Ao voltar os olhos para as ações já envidadas pelos Estados, a respeito da prestação regionalizada, verifica-se grande heterogeneidade entre os modelos adotados por diferentes unidades federadas.

A maior parte dos Estados já desenhou sua regionalização ou a aprovou no âmbito das Casas Legislativas, cumprindo o prazo originalmente definido pelo novo marco legal (http://appsnis.mdr.gov.br/regionalizacao-hmg/web/site). Há, contudo, diferenças entre os modelos adotados, verificando-se tanto unidades regionais quanto microrregiões, com características e com requisitos próprios.

Em Mato Grosso do Sul foi formalizada, em 5 de fevereiro de 2021, uma Parceria Público-Privada (PPP) com o objetivo de promover a implantação, a expansão, a reabilitação, a operação e a manutenção dos sistemas de esgotamento sanitário dos 68 municípios atendidos pela Empresa de Saneamento do Estado de Mato Grosso do Sul - SANESUL. Portanto, antes mesmo da edição do novo marco legal do Saneamento Básico, o Estado já estudava a modelagem a ser adotada, incorporando a política pública da universalização e da melhoria no serviço de esgotamento sanitário.

É possível dizer, inclusive, que a existência da PPP facilitou sobremaneira a posterior normatização, pelo Estado, da prestação regionalizada dos serviços (exigida pelo Novo Marco), uma vez que a premissa sinalizava o foco na atuação conjunta dos Municípios, visando a atingir a universalização.

No caso sul-mato-grossense, a normatização da prestação regionalizada dos serviços decorreu de trabalho técnico conjunto entre o Estado e a União, por intermédio do Ministério do Desenvolvimento Regional, que auxiliou na definição da modelagem de prestação regionalizada para serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Os trabalhos de análise de viabilidade econômico-financeira e de adequação jurídica das propostas foram gestados pelo grupo de trabalho intersecretarial, coordenado pelo Escritório de Parcerias Estratégicas do Estado (EPE), por cerca de um ano. Durante esse período, o desafio fora escolher, dentre os modelos constantes do Novo Marco Legal do Saneamento, aquele que melhor se adequasse à realidade do Estado e que, ao mesmo tempo, fosse factível do ponto de vista financeiro. A ideia, portanto, era apresentar aos municípios uma proposta atrativa e sustentável ao longo do tempo.

O Estado de Mato Grosso do Sul optou por seguir a sistemática de unidades regionais, cuja adesão, pelos Municípios, é facultativa. Partindo dessa premissa, foram traçados os possíveis cenários de junção de Municípios de tal forma que esta aglutinação gerasse uma unidade regional sustentável financeiramente e apta a viabilizar a universalização imposta pelo Novo Marco.

Como resultado, foi editada a Lei Estadual 5.989, de 14 de dezembro de 2022, que projeta para o Estado de Mato Grosso do Sul duas unidades regionais. Uma delas abrigando os Municípios atendidos pela empresa estadual de saneamento (SANESUL) e outra agregando os Municípios que realizam a prestação do serviço de forma direta ou já concedida à iniciativa privada.

Além disso, o Estado regulamentou, por meio do decreto 16.115, de 1º de março de 2023, a organização pública com funções técnico-consultivas, prevista no Estatuto da Metrópole, como parte obrigatória da governança interfederativa das unidades regionais. A sua função dentro da unidade regional é garantir-lhe o apoio técnico necessário ao seu pleno funcionamento, auxiliando as instâncias deliberativa e executiva, por meio da elaboração de estudos, de pareceres, de laudos, entre outros instrumentos.

Com o intuito de agilizar e de simplificar o funcionamento desta organização pública, o Estado de Mato Grosso do Sul optou por não criar uma nova pessoa jurídica para auxiliar as unidades regionais, mas elencou os órgãos e as entidades estaduais já em funcionamento para atuarem em cooperação, a partir de suas áreas de atuação, tais como: ambiental, regulatória, jurídica, de estruturação de projetos e de interlocução com municípios.

Buscou-se, em última instância, proporcionar rapidez e efetividade à atuação das unidades regionais, utilizando-se, para isso, da estrutura estatal já existente e em funcionamento, a partir do engajamento de órgãos com expertise em cada uma de suas áreas de atuação.

Como resultado do aproveitamento da estrutura de órgãos e de entidades já em operação no Estado, tornou-se desnecessária a criação de uma nova pessoa jurídica que certamente demandaria recursos públicos, quadro próprio e, principalmente, um lapso temporal considerável para sua estruturação, o que impactaria na velocidade de implantação das unidades regionais.

Portanto, a proposta de regionalização adotada pelo Estado refletiu, ao final, boa parte da estrutura desenhada pela PPP de esgotamento sanitário vigente, somando esforços para o alcance do objetivo final: universalização dos serviços, com a garantia do acesso adequado à água e ao esgoto.

No âmbito do Estado de Mato Grosso do Sul, diante da edição da recentíssima Lei das unidades regionais, já se noticiam as primeiras adesões de Municípios. Somente a partir do início das operações, no entanto, é que poderão ser averiguados os efeitos e o nível de assertividade da modelagem proposta.

Importante citar as mais novas alterações legais afetas ao setor promovidas por meio dos decretos federais 11.466 e 11.467, ambos de 5 de abril de 2023.

Trazem, entre outros pontos, a prorrogação do prazo para a regionalização, que se findaria em 2023, o qual passa para dezembro de 2025 (art. 15 do Dec. 11.467, de 2023); a garantia de acesso pelas estatais a recursos federais até esse mesmo prazo; e a retirada, para a contratação de PPPs, do limite de 25% da receita do contrato para subdelegações, desde que os ganhos de eficiência decorrentes da contratação sejam compartilhados com o usuário dos serviços, o que abre espaço para mais contratos deste tipo (art. 5°, §4°, do decreto 11.467).

Ainda, o novo normativo (art. 6°, inciso IV, do Decreto 11.467, de 2023) acresce às hipóteses de estruturação da prestação regionalizada a chamada “Região Integrada de Desenvolvimento - RIDE”, unidade análoga às regiões metropolitanas, porém situada em mais de uma unidade federativa, instituída por lei complementar federal. Neste caso, a prestação regionalizada do serviço dependerá da anuência dos Municípios que a integrem.

Merece destaque, ainda, no novel regulamento, tema atinente à comprovação da capacidade econômico-financeira das empresas prestadoras de serviço, a qual poderá ser realizada até o final de 2023, com decisão dos órgãos reguladores, atestando essa capacidade até 31 de março de 2024. Caso os indicadores mínimos não sejam atendidos, a empresa prestadora do serviço de saneamento deverá apresentar um novo plano de metas para atender aos índices demandados, no prazo máximo de 5 anos, hipótese em que o órgão regulador fará o acompanhamento anual do atingimento dos referenciais mínimos.

Estudiosos do setor apontam, ao analisarem os citados decretos (https://www.youtube.com/watch?v=OAG0-JWdusA), tanto avanços quanto possíveis pontos de colisão com disposições contidas na lei 14.026, de 2020, o que poderia acarretar certo grau de insegurança jurídica para o setor, afetando o ambiente de negócios e de investimentos.

Com efeito, tramita, perante o Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1055, de relatoria do ministro Luiz Fux, que questiona os decretos federais 11.466 e 11.467, de 5 de abril de 2023, sob o fundamento de que extrapolaram o poder regulamentar e ofendem dispositivos constitucionais1.

Verificam-se, portanto, atualizações normativas importantes, sobretudo na regionalização, o que exige contínuo acompanhamento da matéria.

___________

1 Segundo consta na ADPF 1055, os decretos combatidos teriam ofendido os preceitos fundamentais da separação de Poderes, da dignidade da pessoa humana, da redução das desigualdades regionais, da prevalência dos direitos humanos, da vida, da saúde, da moradia, do meio ambiente, do pacto federativo e da licitação.

Ana Carolina Ali Garcia
Procuradora Geral do Estado de Mato Grosso do Sul.

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