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Cyberatletas: empregados comuns ou atletas profissionais?

Os eSports são um fenômeno que desafia o Direito a se adaptar às novas demandas da sociedade e, inevitavelmente, nos esbarramos com questões trabalhistas importantíssimas sobre a relação existente entre os cyberatletas e as organizações que os contratam.

28/4/2023

O mundo dos games não é apenas uma forma de entretenimento, mas também uma indústria que movimenta bilhões de dólares e emprega milhares de pessoas. Dentro desse universo, há uma modalidade que vem ganhando cada vez mais destaque e profissionalização: os eSports, ou esportes eletrônicos.

Os eSports são competições de jogos eletrônicos que envolvem habilidade, estratégia e cooperação entre os jogadores. Alguns dos jogos mais populares são League of Legends, Dota 2, Fortnite e o consagrado Counter-Strike, entre outros. Esses jogos são disputados em torneios nacionais e internacionais, com premiações milionárias e transmissões ao vivo pela internet ou por canais de televisão.

Os jogadores que participam desses torneios são chamados de cyberatletas, e muitos deles se dedicam exclusivamente a essa atividade, treinando por horas diárias e recebendo salários e patrocínios de organizações ou marcas. Além disso, os cyberatletas contam com uma equipe de apoio, composta por técnicos, analistas, médicos, psicólogos, nutricionistas e tantos outros profissionais.

Diante desse cenário, surgem diversas questões jurídicas sobre a relação entre os cyberatletas e as organizações que os contratam. Por exemplo: eles podem ser considerados empregados? Se sim, qual é o seu enquadramento jurídico? Eles têm direito a férias, décimo terceiro salário, FGTS, horas extras, adicional noturno, etc.? Eles podem ser demitidos sem justa causa? Eles podem pactuar cláusulas de arbitragem para resolver eventuais conflitos?

A resposta para essas perguntas não é simples, pois não há uma legislação específica que regule os eSports no Brasil. Portanto, é preciso analisar cada caso concreto à luz dos princípios e normas do Direito do Trabalho e do Direito Desportivo.

Em geral, para que haja o reconhecimento do vínculo empregatício entre o cyberatleta e a organização, é necessário que estejam presentes os requisitos da relação de emprego: subordinação, não eventualidade, onerosidade e pessoalidade. Ou seja, o cyberatleta deve prestar seus serviços de forma não eventual, sob as ordens e a fiscalização da organização, mediante remuneração e sem possibilidade de substituição.

Se esses requisitos forem verificados, o cyberatleta pode ser enquadrado como empregado comum ou como atleta profissional. No primeiro caso, ele estaria sujeito à CLT (Consolidação das leis do Trabalho) e teria direito a todas as garantias trabalhistas previstas nessa legislação. No segundo caso, ele estaria sujeito à lei Pelé (lei 9.615/98) e teria direito a algumas especificidades dessa lei, como o contrato especial de trabalho desportivo (com duração máxima de cinco anos), a cláusula penal (multa por rescisão antecipada do contrato) e a cláusula compensatória desportiva (indenização por transferência do atleta para outra entidade).

A definição do enquadramento jurídico do cyberatleta depende de uma análise da natureza da atividade exercida por ele. Se ele participa de competições oficiais organizadas por entidades de administração do desporto (como confederações ou federações), ele pode ser considerado um atleta profissional. Se ele participa apenas de eventos privados ou amadores, ele pode ser considerado um empregado comum.

Outra questão relevante é a possibilidade de pactuação de cláusula compromissória de arbitragem entre o cyberatleta e a organização. A arbitragem é um método alternativo de solução de conflitos, no qual as partes escolhem um árbitro ou um tribunal arbitral para decidir sobre a controvérsia, sem a intervenção do Poder Judiciário. A vantagem da arbitragem é que ela pode ser mais rápida, sigilosa e especializada do que a justiça comum.

No entanto, a arbitragem também tem limitações e requisitos para ser válida. Um deles é que as partes devem ter plena capacidade civil e disposição patrimonial livre. Outro é que o objeto do conflito deve ser disponível e transigível. Além disso, a cláusula compromissória de arbitragem deve ser expressa e escrita no contrato ou em documento anexo.

No caso dos cyberatletas, há algumas dificuldades para a aplicação da arbitragem. Uma delas é que muitos deles são menores de idade ou têm pouca experiência jurídica, o que pode comprometer o seu consentimento livre e esclarecido para renunciar ao direito de recorrer ao Judiciário. Outra é que alguns direitos trabalhistas são indisponíveis e intransigíveis, como o salário mínimo, o repouso semanal remunerado, a jornada máxima de trabalho, etc. Portanto, não podem ser objeto de arbitragem.

Assim, é preciso ter cautela ao pactuar cláusulas de arbitragem entre cyberatletas e organizações, pois elas podem ser nulas ou ineficazes se não respeitarem os requisitos legais e os princípios constitucionais. Além disso, é recomendável que as partes busquem orientação jurídica antes de assinar qualquer contrato que envolva essa modalidade de solução de conflitos.

E como ficam os aspectos tributários e previdenciários das empresas? Esses e inúmeros outros pontos, como enquadramento sindical, participação em premiações, regras de patrocínios, saúde e segurança do trabalho, são questões que, sem dúvida, merecem um capítulo à parte a ser abordado oportunamente.

Alexandre Haruno
Advogado. Sócio-fundador da THLAW Consultoria Estratégica. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário ambos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV Law).

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