O princípio da fungibilidade no sistema recursal civil brasileiro
Gustavo de Camargo Hermann*
Para que o processo evolua de forma adequada, se faz necessário que haja celeridade para que a solução ocorra o mais rápido possível, garantindo desta forma aos litigantes, precisão nas sentenças e conseqüente satisfação judicial, concretizando assim o fim social a que se dirige o Direito Moderno, ou seja, a satisfação da sociedade. Desta forma alguns princípios norteadores do Processo Civil (clique aqui) são prioritários para atingir esta finalidade. Um destes princípios é o da fungibilidade, objeto deste ensaio. Neste caso, a noção basilar é a do escopo social que objetiva o processo, visando para tanto sempre dirimir os conflitos emanados pelos indivíduos quando em convívio na sociedade.
É pelo princípio da fungibilidade que se objetiva priorizar a vista do recurso em detrimento da sua forma. Ou seja, em determinados casos relevando certas condições como a ausência de erro grosseiro ou má fé; presença de dúvida objetiva na interposição desde que escusável e proposta em prazo adequado. Respeitada estas condições, o recurso mesmo errôneo poderá amparar a pretensão do recorrente.
Em outras palavras, o princípio em discussão explica que um recurso, mesmo sendo incabível para atacar determinado tipo de decisão, poderá ser considerado válido, desde que exista dúvida, na doutrina ou na jurisprudência, quanto ao recurso viável a ser interposto naquela ocasião. Grosso modo, o termo fungibilidade significa a substituição de uma coisa por outra.
A fungibilidade recursal quando bem empregada contribui de forma impar tanto para a efetividade como para a celeridade processual, uma vez que coloca um pouco a formalidade da providência jurisdicional de lado privilegiando finalizar a controvérsia. Em certos casos, no Processo Civil, são desnecessárias tantas solenidades formais, quando a sua ausência não venha a causar prejuízos a nenhuma das partes em litígio, servindo apenas para atrasar cada vez mais a prestação jurisdicional. Evidentemente o princípio da fungibilidade se faz notar de modo mais claro na Teoria Geral dos Recursos, em cujo escopo se percebe que certas formalidades legais podem ser deixadas de lado, sem prejuízo para o término do conflito.
Sua correta aplicação depende de uma profunda análise de seus requisitos, tais como; dúvida objetiva sobre qual o recurso cabível, inexistência de erro grosseiro, má-fé e tempestividade. E não basta reconhecer a existência da fungibilidade recursal, deve-se verificar em quais situações pode ser aplicada, relevando este princípio como diretriz que garantirá pleno acesso à justiça.
Com a ausência da possibilidade da utilização do princípio da fungibilidade estaria o julgador, em alguns casos, deixando de conhecer o conflito em sua totalidade e desta forma rejeitando a garantia constitucional de acesso à justiça.
O Código de Processo Civil de 1939 pautava-se pela grande quantidade de remédios recursais. Talvez este foi um dos motivos precípuos que fez com que o legislador objetivasse a simplificação quando da reforma do processo em 1973. Porém, lacunas na lei tornaram a aparecer, razão pela qual subsistiu, implicitamente, o principio da fungibilidade apesar de que se tentou facilitar o sistema no que concerne aos recursos.
O processo civil brasileiro vem ao longo do tempo, passando por um processo de mutação na busca de revitalização, modernização, simplificação, bem como sua re-adequação diante do sistema como um todo com a finalidade de cumprir de forma efetiva sua função perante os interesses da sociedade.
O excesso de formalidades, certamente, gera mais burocracia e esta normalmente é causa de corrupção, assunto muito discutido atualmente e que atinge a todas as esferas do Poder Público, inclusive o Poder Judiciário.
Diante do exposto, pergunta-se: o que é mais importante no contexto do Estado Democrático de Direito? A prestação jurisdicional eficiente que atenda aos anseios do cidadão sujeito a todos os deveres, mas também aos direitos desta condição? Ou relevar critérios subjetivos e excessivamente formais mal explicados e às vezes tendentes a várias interpretações no decorrer do processo?
Uma alternativa de solução seria, talvez, buscar uma unicidade no sistema recursal, seja quanto à nomenclatura ou quanto ao prazo do recurso. Desta forma, eliminar-se-ia uma série de formalidades específicas abrindo um espaço maior para o atendimento do judiciário em prol da sociedade, principalmente pelos operadores do direito.
A aplicação do princípio da fungibilidade tem como causa o interesse da parte que não deverá sofrer prejuízo processual nos casos em que houver erro na interposição de um recurso por outro, desde que presentes os requisitos de fundada dúvida sobre o cabimento do meio escolhido e a inexistência de erro grosseiro. Assim, se o recorrente acreditar que o recurso que lhe é ideal para o seu caso é uma Apelação, e a interpõe no prazo fatal, não há porquê retirar-lhe 5 dias com a justificativa de que o recurso correto seria o Agravo. Ou seja, havendo ou o pressuposto da presença de fundada dúvida e esta sendo objetiva, ou a inexistência de erro grosseiro, qual seria a importância do prazo de sua interposição? No mínimo esta divergência deve ser considerada irrelevante. Em suma, deve sim o recorrente observar somente o prazo do recurso que ele entende como o certo para o caso em pauta.
Esta reflexão se fundamenta na inexistência do requisito da má-fé diante do ordenamento civil atual quando da aplicação do princípio em tela, pois na grande maioria das vezes o recorrente está convencido de que a peça processual que está interpondo é a correta para a ocasião. Vale dizer que, haverá dúvida objetiva ou subsidiariamente inexistirá erro grosseiro para que a fungibilidade recursal seja aplicada, deixando-se por vezes de relevar-se questões como a má-fé ou tempestividade quando da interposição de um recurso.
Em suma, a fungibilidade diante do sistema recursal só se aplica quando não restarem incertezas na presença dos requisitos principais como o da dúvida objetiva quanto qual o recurso a ser interposto e a inexistência de erro grosseiro pelo qual infere-se englobada parte da questão relativa a má-fé, deixando-se totalmente de lado quaisquer discussões a respeito da tempestividade.
Por tudo o que foi exposto, a lição mais importante é com certeza, dar ênfase sempre a finalidade objetiva do recurso em detrimento de demasiada formalidade referente à legislação processual pátria, bem como, aos procedimentos burocráticos no âmago das atividades comuns dos Tribunais.
O princípio da fungibilidade, portanto, possui como função principal buscar um processo mais célere e efetivo, sem prejuízo dos atos praticados, com a finalidade de alcançar seu aperfeiçoamento e quem sabe até sua ampliação diante das novas tendências do direito processual, sempre respeitando o direito das partes quanto ao contraditório e a ampla defesa, bem como sua ampla garantia de acesso à justiça.
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*Advogado do escritório Küster Machado Advogados Associados
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