Dia 26 de abril é celebrado o Dia Mundial da Propriedade Intelectual. Em 2023, exalta-se o papel histórico e atual exercido pelas mulheres como protagonistas em pesquisas e processos inovadores e sua engenhosidade enquanto inventoras e profissionais atuantes no campo da propriedade intelectual.
Sublinhe-se a figura fascinante, transgressora1, complexa e surpreendente de Hedy Lamarr (1914-2000), atriz de origem austríaca, estrela de Hollywood nos anos 1930 e 1940, considerada a mais bela mulher do seu tempo e também uma cientista e inventora brilhante, este último um traço de seus atributos que, durante longo período, permaneceu ignorado pelo grande público. Uma boa forma para começar a conhecer a trajetória da estrela é o livro “A Única Mulher”, de Marie Benedict2. Trata-se de uma biografia romanceada que resultou de uma longa pesquisa com lastro em fartas fontes sobre a personagem.
O livro está dividido em duas partes. A primeira delas abrange o período compreendido entre maio de 1933 e agosto de 1937, momento em que a ameaça nazista assombrava a Europa, principalmente a Áustria. Nascida em Viena, a promissora atriz Hedvig Eva Marie Kiesler, judia não ortodoxa e moradora de um bairro judeu de classe média alta da capital austríaca, se vê cortejada pelo fabricante de armas Friedrich Mandl, bem mais velho e o terceiro homem mais rico do país, apaixonando-se por ele. Homem com muita influência política e próximo de Mussolini, Mandl despertava desconfiança do pai de Hedy, Emil Kiesler, por seu traço fascista – embora, então, o industrial se dissesse nacionalista e refratário à influência de Hitler. A união acaba sendo aceita por Emil na esperança de que, em um cenário eventual de agravamento do antissemitismo na Áustria e de invasão alemã, Friederich fosse capaz de blindar a família da esposa e de mantê-la em segurança. Era essa também a esperança da própria Hedy.
A dinâmica dos acontecimentos geopolíticos frustra as expectativas dos Kiesler e resulta no alinhamento de Friederich com Hitler, numa tentativa oportunista de preservar os seus negócios, depois de notar que a anexação da Áustria era inevitável3. Ciente dos planos de aniquilação dos judeus - a partir de conversas ouvidas entre o marido, políticos austríacos e simpatizantes do nazismo, em jantares, festas e recepções -, Hedy decide fugir, descrente cada vez mais na capacidade de Friederich de proteger ela e sua mãe (o pai falecera). Deixara a vida nos palcos para exercer o papel de esposa dedicada de um homem rico e influente, mas que também se revelara controlador, possessivo, abusivo, ciclotímico e violento. Depois de uma tentativa de fuga frustrada para a Hungria, descoberta pelo marido, Hedy consegue finalmente fugir para a França e, depois, para a Inglaterra, em agosto de 1937.
A parte II do livro é dedicada aos anos de ascensão da atriz em Hollywood, entre setembro de 1937 e setembro de 1942. Rebatizada “Lamarr” pelo produtor da MGM, Louis Mayer, em referência à estrela dos filmes mudos, Barbara Lamarr, e como forma de esconder a origem germânica do seu nome de família, Hedy consegue os primeiros papéis e, aos poucos, vai conquistando espaço na indústria cinematográfica e obtendo o reconhecimento do público. Um segundo e curto casamento com o roteirista Gene Markey e a adoção de um bebê refugiado da guerra preenchem o lado da vida familiar e pessoal da estrela. Mas Heddy Kiesler, a vienense curiosa, incentivada ao estudo da física, da engenharia e de outras ciências pelo pai desde a infância, e que aproveitara os anos de casamento com Friedrich para conhecer e estudar a fundo planos e armamentos militares e algumas das suas deficiências tecnológicas, vê-se estimulada a pensar em soluções capazes de ajudar belicamente os adversários da Alemanha nazista e, quem sabe, salvar seus compatriotas e os judeus que sofriam sob o jugo de Hitler, primeiro nos pogroms e guetos e, depois, nos campos de concentração.
Até então distantes dos graves fatos que aconteciam na Europa, os Estados Unidos são levados à guerra depois do ataque japonês à Pearl Harbor, em 07 de dezembro de 1941. Neste mesmo momento, Hedy está mergulhada em estudos para a solução de um problema crônico da indústria bélica que pudesse conferir uma vantagem competitiva à marinha americana: a imprecisão dos sistemas de comunicação de torpedos com submarinos e navios, controlados por fio e que muitas vezes resultavam na perda de uma série de mísseis (que erravam seus alvos) e em um prejuízo incalculável.
A ideia de Hedy de aplicar um sistema de controle remoto aos torpedos é descrita no livro de Marie Benedict, pela boca da própria Lamarr:
Eu também tive a experiência de passar cerca de uma hora com o gênio dos torpedos na Alemanha, Hellmuth Walter. [...] Ele examinava o sistema de controle de rádio usado por bombas planadoras, bombas aliadas jogadas de aviões, no qual cada bombardeiro e cada bomba recebe uma de dezoito frequências de rádio para se comunicar, Seus esforços não foram bem-sucedidos, porque o inimigo era capaz de obstruir a comunicação entre bombardeiro e bomba quando detectava quais das frequências de rádio eles estavam usando. Mas pensei que talvez pudéssemos aplicar aos torpedos o conceito das bombas planadoras de um jeito levemente diferente4.
As explicações de Hedy são oferecidas ao seu improvável parceiro de invenção: o compositor e pianista George Antheil. Foi de um dueto ao piano com Antheil que Heidy retirara a inspiração para a solução que buscava, conforme explica ao músico que queria entender porque seria ele credenciado a participar da criação da invenção:
[...] o maior problema de usar torpedos controlados remotamente, o que permitiria maior precisão, uma vez que não há necessidade de um fio limitador, é que o inimigo pode obstruir a frequência de rádio compartilhada pelo submarinista ou marinheiro e pelo próprio torpedo. [...]
Quando tocamos juntos, seguimos um ao outro, pulando de uma melodia a outra facilmente. Você começava uma melodia e eu seguia seu exemplo. De certa forma, você operava como um transmissor de um sinal, como um submarinista ou um marinheiro, e eu, como receptor, como o torpedo em si. Então comecei a pensar: e se o submarinista e o marinheiro constantemente pulassem de uma frequência de rádio para outra, assim como nos dois saltávamos de uma melodia para outra? Isso tornaria a comunicação deles praticamente impossível de obstruir, não é?5
Faltava, contudo, mais um problema para resolver antes de considerar viável a invenção de um dispositivo sincronizador de frequência de rádio para torpedos: as alterações de frequência não poderiam ser manuais. Lamarr e Antheil chegam a uma solução inspirada novamente pela música, mais precisamente, pelas fitas de um piano mecânico: dispositivo parecido poderia ser construído para o navio ou submarino e o torpedo, com instruções sobre a sequência de rádio que pularia de frequência.6
Depois da obtenção da patente (2.292.387), Lamarr e Antheil a submeteram à apreciação do Conselho de Marinha dos Estados Unidos que, em episódio apresentado de forma dramática no livro, rejeitou a proposta de adotá-la7. Os dois jamais chegaram a lucrar com sua invenção, que veio a se tornar a base para os telefones sem fio, para o WiFi, entre outras tecnologias de ponta. No entanto, nos anos 1950, mesmo depois de rejeitada pela Marinha, o Exército classificou a patente como confidencial e contratou um fabricante para construir uma sonoboia capaz de identificar submarinos na água e transmitir essa informação a um avião em vôo, justamente com a utilização da ideia de salto de frequência imune a obstrução.8
Esquecida durante muito tempo, Hedy Lamarr começou a ser resgastada no final do século passado, ainda em vida. O reconhecimento de suas conquistas científicas sempre lhe soou mais satisfatório do que o das artísticas. Que não esqueçamos jamais essa mulher grandiosa e tantas outras mulheres geniais que contribuíram para a evolução tecnológica e científica da humanidade.
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No começo de 1933, aos 18 anos, Heddy foi a protagonista do filme “Êxtase”, de Gustav Machatý, diretor tcheco, em que apareceu em algumas cenas nua e em outra simulando um orgasmo. A polêmica gerada pelo filme quase representou o fim de uma carreira que mal começava.
Americana, advogada e graduada também em História e História da Arte pela Boston College. É autora de “Senhora Einstein”, romance sobre a vida da primeira esposa do cientista, ela também uma física de profissão, e o papel que exerceu nas principais descobertas do marido.
Friederich Nedl viu-se depois mais tarde na obrigação de abandonar a Áustria, por também ter sangue judeu. Foi viver na Argentina peronista, sem conseguir se desvencilhar de acusações posteriores de colaboracionismo com os nazistas, Ver INFOBAE. “La azarosa vida de Fritz Mandl: negocios en la Argentina, acusaciones de nazismo y un matrimonio con una belleza de Hollywood.” Disponível em: https://www.infobae.com/sociedad/2020/09/06/la-azarosa-vida-de-fritz-mandl-negocios-en-la-argentina-acusaciones-de-nazismo-y-un-matrimonio-con-una-belleza-de-hollywood/. Acesso em 22 de abril de 2023.
BENEDICT, Marie. A Única Mulher. São Paulo, 2020, p. 256.
Ibid p. 257-258. Lamarr se refere também a outras qualidades de Antheil como seu senso altamente desenvolvido de instrumentos mecânicos e sua perspectiva ampla para abordar problemas.
Ibid, p. 265.
Jewish`s Women Archives. “Actress Hedy Lammar Patents: the basis for Wi-Fi”. Disponível em: https://jwa.org/thisweek/aug/11/1942/actress-hedy-lamarr-patents-basis-for-wifi. Acesso em 22 de abril de 2023.
BENEDICT, Marie, op. Cit, p. 308.
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BENEDICT, Marie. A Única Mulher. São Paulo: Planeta, 2020.
FOLHA DE SÃO PAULO. “Participação de mulheres em patentes cresce nas universidades, mas ainda é tímida”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2023/04/participacao-de-mulheres-em-patentes-cresce-nas-universidades-mas-ainda-e-timida.shtml Acesso em 22 de abril de 2023.
INFOBAE. “La azarosa vida de Fritz Mandl: negocios en la Argentina, acusaciones de nazismo y un matrimonio con una belleza de Hollywood.” Disponível em https://www.infobae.com/sociedad/2020/09/06/la-azarosa-vida-de-fritz-mandl-negocios-en-la-argentina-acusaciones-de-nazismo-y-un-matrimonio-con-una-belleza-de-hollywood>. Acesso em 22 de abril de 2023.
Jewish`s Women Archives. “Actress Hedy Lamarr Patents: the basis for Wi-Fi”. Disponível em: https://jwa.org/thisweek/aug/11/1942/actress-hedy-lamarr-patents-basis-for-wifi. Acesso em 22 de abril de 2023.