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O leilão reverso e a recuperação judicial do grupo Americanas

O leilão reverso, por si só, não fere o princípio da par conditio creditorum, tratando-se de uma faculdade que pode ser proposta aos credores no plano de recuperação judicial para que estes, se assim optarem, recebam antecipadamente o seu crédito, com um deságio maior.

20/4/2023

Recentemente, no final de março, o Grupo Americanas apresentou o seu Plano de Recuperação Judicial (PRJ), com as medidas que serão adotadas para tentar viabilizar sua reabilitação econômico-financeira, bem como dispondo sobre a forma de pagamento dos seus credores.

O plano proposto pelas empresas Recuperandas que compõem o Grupo - plano este ainda não aprovado pelos credores -, prevê inicialmente que os créditos trabalhistas e os créditos de microempresas (MEs) e empresas de pequeno porte (EPPs) serão quitados de acordo com os termos e condições originais de pagamento, em até 30 (trinta) dias contados da data de homologação do plano de recuperação judicial.

Contudo, em relação aos créditos quirografários (aqueles que não estão revestidos de direito real de garantia), a grande surpresa é a aposta do Grupo Americanas no chamado leilão reverso, procedimento em que os credores oferecem um desconto para que o pagamento do seu crédito seja realizado antes dos demais credores da mesma classe.

De acordo com o Plano apresentado, o Grupo realizará um aumento de capital de R$ 10 bilhões, dos quais R$ 2.500.000.000,00 (dois bilhões e quinhentos milhões de reais) serão destinados ao pagamento dos credores quirografários que concorrerem no leilão reverso.

Para participarem do leilão reverso, os credores quirografários terão que conceder um desconto de, no mínimo, 70% (setenta por cento) sobre o valor do seu crédito, além de assumir o compromisso de não litigar com o Grupo Americanas, seus administradores ou acionistas.

Por meio do leilão reverso, o Grupo destinará os R$ 2,5 milhões para os credores que participarem. A lógica que norteia o leilão reverso é a seguinte: as datas de pagamento aos credores participantes serão elencadas com base no deságio que cada um vier a aceitar, de forma que quanto maior o deságio sobre o crédito, tanto mais cedo será o pagamento ao credor.

Caso haja saldo remanescente em favor dos credores quirografários que optarem pelo leilão reverso, o plano prevê a possibilidade de recompra do crédito remanescente pelo Grupo Americanas e, ainda, a emissão de debêntures simples em favor destes credores quirografários remanescentes.

Tanto na hipótese de crédito submetido ao leilão reverso, quanto na hipótese de recompra do crédito, a expectativa do credor é receber antecipadamente, se comparado com aqueles credores que decidirem por não participar do leilão.

A modalidade de pagamento geral prevista para os credores quirografários que não concorrerem no leilão reverso consiste na quitação em uma parcela única, em março de 2043, com um desconto de 80% (oitenta por cento) do valor total do crédito e correção anual pela TR (Taxa Referencial), ressalvando-se, ainda, a existência de disposições específicas do Plano para credores quirografários de créditos de pequena monta, até R$ 12 mil, e para “credores fornecedores colaboradores”.

Veja-se, portanto, que o pagamento dos credores quirografários, de acordo com “modalidade de pagamento geral” prevista no plano, ocorreria somente daqui a duas décadas e, ainda, com deságio de 80%. Por outro lado, aos credores que participarem do leilão e admitirem deságios a partir de 70% (e que provavelmente irão superar, em muito, os 80%, conforme o desenrolar dos lances), haverá pagamento antecipado.

Sobre a aprovação do plano, é importante ressaltar que o c. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.359.311/SP, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, em 2014, já asseverou que “cumpridas as exigências legais, o juiz deve conceder a recuperação judicial do devedor cujo plano tenha sido aprovado em assembleia, não lhe sendo dado se imiscuir no aspecto da viabilidade econômica da empresa, uma vez que tal questão é de exclusiva apreciação assemblear”1. Em outras palavras, cabe ao Juiz verificar se há alguma ilegalidade no plano ou descumprimento de normas cogentes, exercendo o controle de legalidade somente e não o de viabilidade da empresa.

Contudo, embora a aprovação do plano de recuperação judicial seja atribuição da Assembleia Geral de Credores (AGC), na forma do art. 58, da Lei de Recuperação Judicial e Falências (lei 11.101/05)2, muito tem se questionado se o leilão reverso previsto no plano, ainda que este venha a ser aprovado pelos credores, feriria o princípio da par conditio creditorum.

A par conditio creditorum, em uma definição bastante sintética, significa a igualdade entre os credores de mesma classe, dentro do âmbito da recuperação judicial, vedando-se, portanto, que estes sejam tratados de forma desigual, exceto, entretanto, se as diferenciações forem justificadas por critérios objetivos.

Embora inicialmente aplicável à Falência no ordenamento jurídico pátrio, por sua previsão apenas no art. 126, da lei 11.101/053, em Capítulo que trata da Falência, é pacífica a aplicação do princípio à Recuperação Judicial, conforme Enunciado 81, da II Jornada de Direito Comercial, a seguir transcrito: “Aplica-se à recuperação judicial, no que couber, o princípio da par conditio creditorum”.

Ao tratar sobre o princípio em questão e a sua aplicação à Recuperação Judicial, Marcelo Barbosa Sacramone4 aduz que se trata de uma construção doutrinária e jurisprudencial, de modo que não é permitido tratamento diverso entre credores com características semelhantes de créditos, mesmo na Recuperação Judicial.

Portanto, ainda que seja permitida uma diferenciação objetiva entre credores da mesma classe, baseada em critérios factíveis e expressamente previstos no plano de recuperação judicial, o tratamento diverso entre credores com créditos de características semelhantes poderia ferir a par conditio creditorum.

Importante ressaltar que a Terceira Turma do STJ, ao tratar da distinção entre credores mediante a criação de subclasses, no julgamento do REsp 1.634.844/SP, reconheceu a referida possibilidade, desde que estabelecido um critério objetivo, justificado no plano de recuperação judicial e sem descontos abusivos, conforme trechos a seguir do acórdão:

(...) 4. A Lei de Recuperação de Empresas e Falências consagra o princípio da paridade entre credores. Apesar de se tratar de um princípio norteador da falência, seus reflexos se irradiam na recuperação judicial, permitindo o controle de legalidade do plano de recuperação sob essa perspectiva. 5. A criação de subclasses entre os credores da recuperação judicial é possível desde que seja estabelecido um critério objetivo, justificado no plano de recuperação judicial, abrangendo credores com interesses homogêneos, ficando vedada a estipulação de descontos que impliquem verdadeira anulação de direitos de eventuais credores isolados ou minoritários. 6. Na hipótese, ficou estabelecida uma distinção entre os credores quirografários, reconhecendo-se benefícios aos fornecedores de insumos essenciais ao funcionamento da empresa, prerrogativa baseada em critério objetivo e justificada no plano aprovado pela assembleia geral de credores. (destacamos)5

Inclusive, com a alteração da lei 11.101/05, em 2020, por meio da lei 14.112, o parágrafo único do artigo 67 passou a prever, expressamente, que o PRJ pode tratar de maneira diferenciada os chamados “credores-colaboradores”, fornecedores de bens ou serviços essenciais que continuam a provê-los normalmente após o pedido de recuperação judicial, justificando-se, assim, um tratamento diferenciado em relação aos demais credores6.

No mesmo sentido, Marcelo Sacramone7 leciona que a criação de subclasses é possível, mas que a distinção no pagamento não pode ser arbitrária a ponto de gerar tratamento diverso entre credores semelhantes:

A criação de subclasses busca atender às características especiais de determinados créditos e sua importância para recuperação judicial do devedor. Pela criação da subclasse, permitir-se-ia a distinção de tratamento entre credores da mesma classe em razão das peculiaridades dos referidos créditos.

Mas a diferenciação de pagamento entre credores de uma mesma classe não pode ser arbitrária, a ponto de gerar tratamento diverso a credores semelhantes.

No caso do leilão reverso, não se trata, como dito, da criação de uma subclasse, mas sim de uma opção dada aos credores para que estes, caso optem por conceder um desconto maior às Recuperandas, recebam os seus créditos antes dos demais credores da mesma classe a que pertencem.

Neste sentido, os Tribunais pátrios têm entendido que o leilão reverso não fere o princípio da par conditio creditorum, desde que haja previsão expressa no PRJ, com possibilidade de livre adesão e sem privilégio a qualquer um dos credores, conforme se infere dos julgados abaixo, dos Tribunais de Justiça de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, respectivamente:

Recuperação judicial. Plano de recuperação. Deságio (50%), prazo de pagamento (12 anos, em parcelas anuais), correção monetária pelo IPCA e ausência de juros aos credores das Classes II, III e IV que não se mostram abusivos ou ultrapassam o limite do suportável, ainda considerando que a maioria reputa condizente com seus interesses. (...) Leilão reverso (cláusula 7). Possibilidade, desde que não importe em tratamento desigual entre os credores. Previsão, no caso concreto, de livre oferta a todos, sem qualquer distinção, além da imprescindível publicidade. (...) Recurso parcialmente provido, com alterações no plano.8 (destacamos)

AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO JUDICIAL - HOMOLOGAÇÃO DO PLANO PELA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES - SOBERANA - ATUAÇÃO DO JULGADOR LIMITADA À VERIFICAÇÃO DA VALIDADE DA APROVAÇÃO E LEGALIDADE DE SUAS CLÁUSULAS - "LEILÃO REVERSO" - OPORTUNIDADE ESTENDIDA A TODOS OS CREDORES - LEGALIDADE - PROTESTOS EM FACE DOS GARANTIDORES - SUSPENSÃO - ILEGALIDADE - NOVAÇÃO SUI GENERIS DAS DÍVIDAS - NULIDADE - TAXA DE JUROS E VALOR DO DESÁGIO - LIBERDADE CONTRATUAL - ASPECTO ECONÔMICO FINANCEIRO DO ACORDO - VALIDADE DO QUE RESTOU CONVENCIONADO. (...) É válida a realização do "Leilão Reverso", quando estabelecido sem privilegiar qualquer um dos credores, e com a possibilidade de livre adesão entre eles, indistintamente.9 (destacamos)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADITAMENTO. ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. AUSÊNCIA DE NULIDADES DAS CLÁUSULAS 6.6 e 6.8 DO ADITIVO AO PRJ. RECURSO DESPROVIDO. (...) 17. Não se vislumbra qualquer ilegalidade no tocante às regras e critérios para a realização do "leilão reverso", previsto no aditivo ao PRJ Originário, eis que a medida se destina ao pagamento antecipado de todos os credores quirografários e a forma de participação dos interessados, assim como a previsão de necessária publicidade, encontram-se devidamente assentadas nas cláusulas impugnadas e serão detalhadas no respectivo edital a ser divulgado previamente ao respectivo Leilão Reverso pelas Recuperandas. 18. A previsão de leilão reverso não acarreta qualquer prejuízo ao credor, estabelecendo uma mera faculdade, caso seja conveniente a este aderir às opções de pagamento nela estipuladas. 19. De outro lado, a cláusula prevê a antecipação do pagamento para a coletividade de credores quirografários, sem qualquer diferenciação.10 (destacamos)

Assim, o que se verifica, na realidade, é que o leilão reverso, por si só, não fere o princípio da par conditio creditorum, tratando-se de uma faculdade que pode ser proposta aos credores no plano de recuperação judicial para que estes, se assim optarem, recebam antecipadamente o seu crédito, com um deságio maior, em contrapartida.

Contudo, ao limitar a participação de determinados credores de certa classe ao leilão reverso, em condições nitidamente abusivas ou arbitrariamente previstas no PRJ, ocasionando uma distinção severa para a participação no leilão, o leilão reverso pode sim ferir o princípio da isonomia entre os credores.

Neste último caso, muito embora a decisão da AGC seja soberana, no sentido de manifestar a vontade dos credores, dentro de suas classes e respeitados os quóruns legais, entendemos que caberá ao Poder Judiciário, dentro das suas atribuições, declarar se determinada cláusula do plano de recuperação judicial é, ou não, nula, à luz do princípio da par conditio creditorum. Seria o exercício do controle de legalidade do plano recuperacional.

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1 STJ, REsp 1.359.311/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/9/2014, DJe de 30/9/2014.

2 Art. 58, da Lei 11.101/05: “Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma dos arts. 45 ou 56-A desta Lei.”

3 Art. 126, da Lei 11.101/05: “Nas relações patrimoniais não reguladas expressamente nesta Lei, o juiz decidirá o caso atendendo à unidade, à universalidade do concurso e à igualdade de tratamento dos credores, observado o disposto no art. 75 desta Lei.”

4 SACRAMONE, Barbosa Marcelo. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2ª. ed.: São Paulo, Saraiva, 2021, p. 277.

5 STJ, REsp 1.634.844/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 12/3/2019, DJe de 15/3/2019

6 Parágrafo único do artigo 67, da Lei 11.101/05: “O plano de recuperação judicial poderá prever tratamento diferenciado aos créditos sujeitos à recuperação judicial pertencentes a fornecedores de bens ou serviços que continuarem a provê-los normalmente após o pedido de recuperação judicial, desde que tais bens ou serviços sejam necessários para a manutenção das atividades e que o tratamento diferenciado seja adequado e razoável no que concerne à relação comercial futura.”

7 SACRAMONE, Barbosa Marcelo. Ob. cit., p. 277.

8 TJ/SP, Agravos de Instrumento 22964638820208260000 e 2296463-88.2020.8.26.0000, Relator: Araldo Telles, Data de Julgamento: 22/10/2021, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 25/10/2021.

9 TJ/MG, Agravo de Instrumento 10000180905176000, Relatora Alice Birchal, Data de Julgamento: 12/03/2019, Data de Publicação: 18/03/2019.

10 TJ/RJ, Agravo de Instrumento 00769314420208190000, Relatora Des(a). Mônica Maria Costa Di Piero, Data de Julgamento: 13/04/2021, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 16/04/2021.

Cristiano Padial Fogaça
Sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Advogado. Mestre em Direito Comercial pela PUC-SP. Professor no curso de especialização do COGEAE/PUC-SP.

Matheus Lira
Advogado e sócio do escritório Fogaça Murphy Advogados. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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