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Saudosismo, orçamento e a nova ancoragem fiscal do governo Lula

Temas como a acomodação e classificação dos precatórios no arcabouço fiscal, eventuais alterações da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Crimes de Responsabilidade, dentre outros ainda serão objeto de estudo e comentários nas nossas próximas publicações.

19/4/2023

Após a primeira apresentação, feita no dia 30 de março, a equipe econômica entregou ao Congresso Nacional o texto do novo arcabouço fiscal. O governo enviou a proposta com atraso em relação ao anteriormente prometido, quando se previa o envio conjuntamente ao Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias, protocolado no último dia 14.

As negociações, por enquanto, estarão fora do nível constitucional. Por um lado, é positivo que esse novo arcabouço não seja endereçado por nova PEC: os regimes especiais constitucionais e marcos que se sobrepõem uns aos outros têm sido a saída favorita dos governos nos últimos anos, gerando cada vez mais insegurança jurídica. Por outro, diversas matérias de constitucionalidade duvidosa, trazidas pelas ECs 113 e 114 de 2021, e que já foram decididas anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, continuarão sem o devido endereçamento.

Segundo o Ministro Haddad, o governo federal busca compatibilizar responsabilidade social com responsabilidade fiscal, entendendo que o investimento no Brasil, responsável pela alavancagem do crescimento econômico, sempre esteve aquém na lista de prioridades. A ideia, portanto, seria atualizar e reforçar os mecanismos de autocorreção da trajetória de despesas em relação à receita para o caso de não atingimento das metas sem que, com isso, os investimentos sejam cortados abaixo do piso estabelecido. Isso implica dizer que a nova âncora terá efeitos jurídicos, a partir dos resultados orçamentários apurados, que orientarão o gestor público, com mais ou menos folga, na alocação de recursos dos exercícios subsequentes. Dessa forma, o arcabouço promete trazer transparência e simplicidade, confiança e, acima de tudo, previsibilidade na gestão das contas públicas.

Aliados a esses motivos, o governo revisou a meta de 2023 e prometeu, ainda para nesse ano, um déficit de 0,5% do PIB; nas projeções, o governo conseguiria zerar a tendência de déficit em 2024 e perseguir superávits de 0,5% em 2025 e de 1% em 2026. A novidade é acomodação em bandas de flutuação de resultado de 0,25%, para mais ou para menos, para que o governo e o mercado possam acompanhar a linearidade dos resultados. Essas metas seriam perseguidas sem aumento da carga tributária, isto é: não haveria instituição de novos tributos e nem aumento das alíquotas de tributos vigentes. Com essa estratégia, e havendo previsão de superávit já em 2025, o que resta à equipe econômica é uma ampliação da base fiscal por meio de “medidas saneadoras”, ainda a serem divulgadas, as quais buscariam corrigir as distorções de regressividade do sistema tributário atual e regulamentariam atividades econômicas que estariam à margem, como as apostas eletrônicas e as aplicadas às big techs.

Na sessão de perguntas, Rogério Ceron, Secretário do Tesouro Nacional, ratificou os fundamentos da ancoragem e contextualizou a série histórica de progressão da dívida em alinhamento proporcional à receita líquida, tomando por base a janela de 1997 a 2010, de modo a destacar as possibilidades de superávit primário a partir dos governos Lula I e II. O interesse prioritário do governo Lula III, portanto, seria recriar esse cenário de progressividade, instituindo mecanismos anticíclicos que dariam ao governo federal a possibilidade de provisionar recursos em momentos de alta para executá-los nos momentos de retração – tudo isso, sublinhamos, sem que os investimentos possam ser cortados abaixo do piso.

No geral, a apresentação do novo arcabouço fiscal comporta uma série de pautas e teses já consolidadas pela doutrina especializada. Entre as mais consensuais estão (1) a instituição de “gatilhos” automáticos no caso de descumprimentos de metas e (2) o foco das sanções serem o resultado fiscal e não a punição personalíssima ou criminalização de condutas. Naquela, trata-se justamente de uma forma de dar clareza e previsibilidade ao efeito do descumprimento das metas, deixando-as suficientemente flexível, e desencorajando as “cruzadas legislativas” para aprovar emendas constitucionais ou novas leis sempre que se antever o descumprimento da meta. Nesta, que tem estreita relação com os motivos da primeira, a busca se volta à efetividade do “gatilho”: eventual punição personalíssima ou criminalização não traz qualquer garantia de recomposição das metas, que é o objetivo prioritário de qualquer regra fiscal.

É do perfil da nova gestão o foco nos investimentos e a criação de um regramento que induza o direcionamento dos cortes à despesa corrente; inclusive, a escolha do governo por não crescer deverá ser prioritária a uma redução de investimentos. A ancoragem, portanto, se volta à despesa pública, estabelecendo uma margem de crescimento de 0,6% a 2,5% em relação à receita líquida. A vantagem dessa escolha do governo está em proporcionar, como vinha sendo prometido, um regramento simples e transparente, capaz de fornecer um direcionamento claro de curto prazo para a política fiscal e evitando a prociclicidade do gasto público.

Na contramão do otimismo, ainda existe um fantasma atrás da porta: qual a resposta que esse novo arcabouço fiscal dá para a hipótese em que a receita líquida não apresenta tendência de crescimento constante? Ao que tudo indica, a equipe econômica não só não tem a solução do problema, como até evita falar sobre ele – o que se explica pelo gráfico de crescimento de receita líquida, elaborado pelo Tesouro Nacional, que cobre até 2010 na apresentação do governo, escondendo a inversão de receitas e despesas no segundo governo Dilma.

Parece visível que, assim como na campanha, Lula e sua equipe fazem cálculos como se estivéssemos diante das mesmas circunstâncias econômicas da primeira década dos anos 2000. Lula não tem um novo “boom das commodities” no seu horizonte próximo, além do fato de que os patamares da dívida pública, em todos os casos, seguem numa tendência crescimento em comparação a 2022. Além de um crescimento do PIB com premissa para aumentar arrecadação, o governo federal aposta na redução dos juros a médio e longo prazo para, num cenário de alívio de 2 pontos percentuais, ao menos inverter a tendência de endividamento antes de uma nova gestão. Há, portanto, um mergulho da equipe econômica nos dados convenientes e nos vieses de confirmação, chegando a negar até mesmo o nosso passado recente, na esperança de reforçar a credulidade dos eleitores, os quais tendem a manter confianças sólidas nos governos eleitos ainda nos seis primeiros meses.

Há uma expectativa do Executivo de que, com a apresentação das regras ao Congresso, o alinhamento de informações e prioridades seja absorvido pelo mercado e haja uma regressão progressiva da taxa de juros incidente sobre a dívida.

Como todo início, antes da concretização do texto e apreciação do tema pelo Congresso, o caminho e o final ainda estão indefinidos. Temas como a acomodação e classificação dos precatórios no arcabouço fiscal, eventuais alterações da Lei de Responsabilidade Fiscal e Lei de Crimes de Responsabilidade, dentre outros ainda serão objeto de estudo e comentários nas nossas próximas publicações. Sigamos acompanhando.

Matheus Soares Matos
Dedica-se a demandas nas áreas de Direito Empresarial e Contratos Empresariais, com ênfase em resolução de disputas societárias e contratos de construção e infraestrutura. Foi membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Banco Central do Brasil e escritórios de advocacia. Pós-graduado em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF).

Felipe Pessoa Ferro
Atuou como Chefe de Gabinete e na assessoria jurídica da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Economia. LLM em Direito Penal Econômico e MBA.

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