No processo penal brasileiro, a fase de recebimento da denúncia, etapa processual que deveria ser marcada por um exame cuidadoso da acusação, não raro é reduzida a uma análise superficial da denúncia, além do enfrentamento genérico das alegações defensivas.
Não se desconhece, entretanto, que a cognição judicial nessa etapa não pode ser aprofundada, sob pena de indevida incursão no mérito da causa, o que deve ser objeto da instrução processual.
Porém, a análise dos pressupostos formais da denúncia (art. 41, CPP), das causas de rejeição da denúncia (art. 395, CPP) e absolvição sumária (art. 397, CPP), impõe motivação adequada e o mínimo enfrentamento das teses defensivas, pois, nas lições de Antonio Magalhães Gomes Filho: “a lei processual está traçando um modelo de decisão em que são estabelecidos os temas que devem ser objeto de cognição judicial nesse momento procedimental de graves repercussões para o acusado”.1
Nesse sentido, no que diz respeito ao questionamento que é objeto do presente artigo, em decorrência da previsão do artigo 41 do CPP, também deve o julgador, quando da análise acerca da presença dos pressupostos formais da acusação, verificar se há conformidade entre os fatos imputados ao réu e a respectiva capitulação jurídica.
Em outras palavras, trata-se de analisar se a qualificação jurídica dada ao fato pela acusação corresponde exatamente aos fatos narrados.
Com efeito, não há dúvida de que o réu se defende, essencialmente, dos fatos a ele imputados, mas o enquadramento legal do fato, especialmente na fase de recebimento da denúncia, é dotado de especial relevância.
Basta verificar, a título exemplificativo, que o tipo penal imputado pela acusação pode: determinar a competência para processamento e julgamento do feito; o procedimento a ser observado; afastar a possibilidade da celebração de institutos da justiça penal negocial; e afastar a prescrição da pretensão punitiva.
Logo, se é verdade que o réu se defende dos fatos a ele imputados, também é verdade que a definição jurídica dada aos fatos não pode ser menosprezada2.
Nesse sentido, em resumo, a emendatio libelli (artigo 383, do CPP) consiste na alteração, pelo magistrado, da classificação jurídica atribuída pela acusação, sem a modificação do fato descrito na denúncia. O instituto, no Código de Processo Penal, está inserido no capítulo II, título XII - “Da sentença”, o que, somado à máxima de que o réu se defende dos fatos narrados na denúncia e não da tipificação legal, ensejou o entendimento de que a emendatio somente poderia ser realizada na fase de sentenciamento1.
O Superior Tribunal de Justiça, entretanto, tem se posicionado no sentido de que se admite, excepcionalmente, a emendatio libelli quando do recebimento da denúncia4:
[...] nos casos em que se vislumbra benefício imediato ao réu, com a correta fixação da competência ou do procedimento a ser adotado, ou mesmo quando, diante do manifesto equívoco na indicação do tipo legal, o delito aparentemente cometido possui gravidade significativamente diversa, com reflexos jurídicos imediatos na defesa do acusado. (AgRg no HC n. 564.546/DF, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 18/5/2020.)
De ver-se, portanto, que, ainda que excepcionalmente, é possível a realização da emendatio libelli, já na fase de recebimento da denúncia, desde que o acusado possa se beneficiar da correção, ou mesmo que o a tipificação adequada represente menor gravidade se em comparação à classificação inicial.
Nesse aspecto, importante destacar que a emendatio libelli antecipada5 somente pode ocorrer em benefício do réu.
Isso porque, como dito acima, a regra que admite a emendatio libelli está localizada, no Código de Processo Penal, no título atinente à sentença, logo, ao menos em regra, o instituto somente tem cabimento quando da prolação da sentença.
Ocorre que a lei processual penal admite analogia (art. 3º, CPP), isto é, permite a integração da norma para solucionar situações semelhantes àquela originalmente prevista pelo legislador6.
A analogia, contudo, e com o devido acatamento à eventuais opiniões divergentes, somente tem cabimento, mesmo no processo penal, quando realizada em benefício do acusado (in bonam partem), logo, se, em tese, a antecipação da emendatio libelli ocorrer em prejuízo do réu, haveria nítida analogia in malam partem, o que é vedado.
Assim, constatada a manifesta incongruência entre os fatos e o enquadramento legal na denúncia e, havendo a possibilidade de conferir ao acusado benefícios de qualquer ordem, plenamente possível que o magistrado possa aplicar o instituto já na fase de recebimento da denúncia.
Nessa linha de ideias, o exame acurado da classificação legal atribuída na peça acusatória pode servir de instrumento eficiente para coibir excessos da acusação, especialmente quando a base fática delineada na denúncia manifestamente não corresponde aos crimes capitulados, impedindo, por exemplo, a celebração do ANPP ou afastando a prescrição da pretensão acusatória.
Importante destacar, ainda que brevemente, que em virtude das alterações da lei 13.964/19, a realização da emendatio libelli na fase de recebimento da denúncia não traz qualquer prejuízo à imparcialidade do julgador, porquanto cabe ao juiz das garantias (suspenso, em razão da liminar concedida pelo Min. Luiz Fux na ADI n. 6298) decidir sobre o recebimento da denúncia, nos termos do artigo 3º-B, inciso XIV do CPP e, em caso positivo (isto é, de recebimento), os autos serão redistribuídos ao juiz da instrução.
Portanto, é possível a realização da emendatio libelli (art. 383, CPP) na fase de recebimento da denúncia, como instrumento de prevenção à eventual abuso do poder de acusar, de modo que o instituto não seja limitado à fase de sentenciamento.
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1 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Motivação das decisões penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 208.
2 Sobre o tema, Antonio Scarance Fernandes (A reação defensiva à imputação. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 216-229), em profundo estudo, já nos ensinava sobre a importância da classificação jurídica do fato, seus reflexos, e a possibilidade de controle pelo magistrado: “Aferrar-se na orientação de que o juiz sempre está impedido de avaliar a classificação é dar ao Ministério Público o poder de, por meio de uma tipificação falha ou abusiva, ser o senhor de todos aqueles assuntos examinados – competência, prisão cautelar, liberdade provisória, procedimento -, dando-lhes o entendimento que, sozinho, julgue adequado”.
3 RHC 49.658/RS, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 01.03.2016, DJe 07.03.2016; HC 281.832/AC, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, j. 21.05.2015, DJe 01.06.2015.
4 São exemplos: AgRg no REsp n. 1.883.359/DF, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 21/9/2021, DJe de 27/9/2021; HC n. 541.994/RN, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 4/5/2021, DJe de 12/5/2021.
5 Cf. sobre a emendatio libelli antecipada: MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 187.
6 Cf. sobre o tema os ensinamentos de Gustavo Badaró: “A analogia é meio de integrar a norma, estendendo sua aplicação para casos não previstos pelo legislador. A analogia atua procedendo de similibus ad simila. É um recurso extensivo que permite aplicar a lei, ou melhor, a solução prevista na norma, para casos semelhantes aos previstos pelo legislador. Nesse ponto, diferencia-se da interpretação extensiva, porque na analogia o caso a ser solucionado não está compreendido na hipótese de incidência da regra a ser aplicada. (Processo Penal. 10. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 133)