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Blockchain nas contratações públicas

O uso da tecnologia blockchain é capaz de garantir elevados graus de segurança, integridade e imutabilidade de dados, um ambiente propício ao desenvolvimento adequado de procedimentos administrativos em geral.

20/4/2023

Nos termos de importante estudo realizado pela ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro em 2020, “apesar de a tecnologia blockchain ter nascido em um ambiente de contracultura, que buscava a ruptura do status quo quanto ao controle exercido por um órgão central, ela apresenta um modelo de consenso distribuído, onde a imutabilidade, a segurança, a integridade e a privacidade são garantidas por meio de criptografia, o que torna possível a construção de soluções para o Estado que garantam a transparência, a confiança e a rastreabilidade necessárias para inibir a corrupção e a lavagem de dinheiro ”.

De fato, o uso da tecnologia blockchain é capaz de garantir elevados graus de segurança, integridade e imutabilidade de dados, um ambiente propício ao desenvolvimento adequado de procedimentos administrativos em geral. 

Nas contratações públicas, a confiabilidade na relação jurídica estabelecida, possui um papel de importância ainda maior, tendo em vista o interesse público envolvido, a necessidade de isonomia no ambiente competitivo entre os particulares e o dispêndio de recursos públicos ao final do processo.

A utilização de procedimentos eletrônicos nas contratações públicas, por sua vez, já se mostrou bastante exitosa com a experiência do pregão eletrônico, capaz de propiciar ganhos de eficiência e segurança no procedimento.

A nova lei de Licitações e Contratos Administrativos, reconhecendo a necessidade de informatização dos procedimentos e a maior segurança que a utilização de meios digitais traz às contratações, estabeleceu a preferência pela utilização de mecanismos informáticos na realização de licitações.

O inciso IV do art. 12 da lei, estabelece que “os atos serão preferencialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico”.

Já o artigo 17, em seu parágrafo 4º estabelece:

Art. 17. [...]

§ 4º Nos procedimentos realizados por meio eletrônico, a Administração poderá determinar, como condição de validade e eficácia, que os licitantes pratiquem seus atos em formato eletrônico.

No mesmo sentido, o artigo 19, atribui aos órgãos da administração pública um papel de estimuladores da implantação de tecnologias nos procedimentos licitatórios.

Art. 19. Os órgãos da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos deverão:

V - promover a adoção gradativa de tecnologias e processos integrados que permitam a criação, a utilização e a atualização de modelos digitais de obras e serviços de engenharia.

O artigo 169, por sua vez, ao tratar do controle das contratações, prevê, de forma expressa, que os procedimentos devem se submeter a gestão de riscos e controle preventivo, com a utilização de recursos tecnológicos, inclusive.

Art. 169. As contratações públicas deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, inclusive mediante adoção de recursos de tecnologia da informação, e, além de estar subordinadas ao controle social, sujeitar-se-ão às seguintes linhas de defesa:

No cenário atual, a administração pública é a responsável pela gestão e fiscalização das etapas do procedimento. A verificação da regularidade das informações – incluídos os documentos - disponibilizadas aos administrados é realizada pela administração pública, por meio de seus servidores e, também, por pessoas que possuem interesse no procedimento.

Tem-se, portanto, um modelo centralizado dos registros dos atos administrativos que compõem o processo de contratação de bens e serviços pela administração.

Conduto, tal modelo, como será demonstrado ao longo do presente artigo, pode ser aprimorado de forma a trazer a maior segurança e transparência aos procedimentos licitatórios, isso porque que na maioria das vezes não se tem a utilização de mecanismos (físicos ou digitais) capazes de assegurar a imutabilidade do conteúdo encartado ao processo

Partindo de tais premissas, o uso da tecnologia blockchain constitui importante ferramenta para trazer às contratações públicas maior confiabilidade e transparência. A sua confiabilidade pode ser ilustrada pelo fato de ser a tecnologia que possibilitou o surgimento das moedas virtuais em razão da segurança propiciada. 

De forma sintética, pode-se afirmar que a Blockchain é uma tecnologia que fragmenta o armazenamento e a validação de dados e transações entre os usuários da rede, de forma descentralizada, garantindo muito maior segurança e confiabilidade..

Tal descentralização se dá pela arquitetura peer-to-peer das redes Blockchain, em que as transações e documentos são submetidos a todos os membros da rede que são os responsáveis por fazer o controle/validação do ato e, também, o armazenam. Trata-se de um tipo de arquitetura de rede em que cada ponto de rede é também um servidor que contribui para o funcionamento do sistema.

Quanto à forma de acesso e consentimento, as redes Blockchain podem ser distribuídas em três categorias: pública; privada ou híbrida.

A rede Blockchain pública é uma rede em que todas as informações são oferecidas ao público e que qualquer usuário participa do processo de consentimento e validação das transações.

A Blockchain privada é uma rede em que somente os usuários autorizados pelos criadores da rede podem consultar, inserir e validar transações realizadas na rede. “Esse tipo de Blockchain pode ser útil, por exemplo, em um cenário onde é necessário inserir informações sensíveis ou críticas ao negócio, de forma a não ser interessante ter essas informações expostas à qualquer pessoa” .

Já em uma rede Blockchain híbrida, as informações podem ser abertas ao público, trata-se do direito de leitura, mas apenas usuários autorizados podem fazer a inserção e a validação de dados e transações na rede.

Gustavo Robichez, Isabella Frajhof, Paulo Henrique Alves, Rafael Nasser, Ronnie Paskin e Soli Fiorini, ao fazerem uma conceituação sintética da tecnologia Blockchain, assim a descrevem: 

A tecnologia Blockchain pode ser compreendida como uma estrutura de dados para armazenar registros transacionais de forma cronológica, digital e distribuída, a partir do consenso dos participantes de uma rede. Em outras palavras, todos os dados são gravados digitalmente, formando um histórico comum, cuja cópia fica armazenada, a priori, com todos os participantes da rede. A tecnologia Blockchain pode ser definida, portanto, como uma rede descentralizada de registros, que são validados pelos próprios integrantes da rede Dessa forma, as chances de qualquer atividade fraudulenta são ínfimas, uma vez que as atualizações são validadas por todos, sem a necessidade de uma entidade central para intermediar o processo. Na essência, a tecnologia Blockchain distribui o poder entre estes participantes da rede, possibilitando a cooperação em larga escala entre indivíduos ou empresas, sem requerer um laço de confiança entre eles. 

A ferramenta, que inicialmente foi proposta para o armazenamento de transações financeiras realizadas por meio de moedas digitais , também traz como uma de suas principais vantagens a imutabilidade dos registros feitos, posto que ao serem validados são inscritos em blocos criptografados que são organizados em cadeia de forma cronológica, onde cada bloco conta com a identificação criptográfica do bloco imediatamente anterior, tal identificação é o denominado hash.

O hash é atribuído ao bloco após todos os nós (ou aqueles que tenham a função de validadores) expressarem seu consentimento e validar o registro da transação. Esse, hash, como dito anteriormente, é o que permite aos validadores identificarem a partir de onde devem verificar os elementos de validade da transação.

Neste sentido, são es ensinamentos de Mirela Miró Zilotto:

Pode-se afirmar que a tecnologia blockchain é uma espécie de um registro formal, um livro-razão, no qual as transações de troca de valores (como criptomoedas ou informações, por exemplo) são agrupadas sequencialmente em blocos. Essa sequência é formada a partir da constatação de que cada bloco contém uma assinatura baseada no conteúdo exato desse bloco, bem como de seu anterior. É dizer, sempre, o próximo bloco da sequência também conterá a assinatura do anterior, ligando todos os blocos uns aos outros até o primeiro bloco da corrente. 

Ou seja, a Blockchain, ao descentralizar a validação e o armazenamento dos registos, traz maior segurança, transparência e, consequentemente, eleva o nível de confiabilidade aos procedimentos de contração de bens e serviços públicos. Funcionando como “potencial redutor de incerteza entre as partes”. O uso da tecnologia tem potencial para garantir maior segurança e confiabilidade em todas as fases do procedimento, incluído o envio das propostas dos licitantes interessados.

Samir Sallen Silva Santos e Lucio Alves Angelo Junior, destacam o papel da utilização da Blockchain no combate à corrupção no âmbito das contratações públicas.

Seu celebrado potencial disruptivo é produzido principalmente pelas características de descentralização de registros, rastreabilidade, confiança e transparência. Tudo isso somado a uma de suas aplicações específicas, os contratos inteligentes, capazes de automatizar processos e dispensar grande parte da intervenção humana, têm grande potencial para contribuir no combate à corrupção. Principalmente na área de licitações públicas.  

Por outro lado, pensando que as licitações são processos administrativos que contam com uma fase interna, denominada fase preparatória pela lei 14.133/21, os benefícios da utilização da tecnologia Blockchain se mostram ainda mais evidentes, ao passo que de traz aos administrados e aos órgãos de controle e fiscalização, como tribunais de contas e Ministério Público a possibilidade de verificar a cronologia exata do cumprimento das exigências contidas nos artigos 18 e seguintes da lei, como por exemplo: a realização de estudo técnico, a motivação do ato, a demonstração de interesse público, dotação orçamentaria etc.

Com relação ao administrador, traz a garantia de que as informações relativas ao ato não foram manipuladas ou inseridas posteriormente, possibilitando a demonstração de que todos os atos do processo foram praticados em conformidade com as exigências legais, gerando maior segurança jurídica na atuação administrativa. 

Ademais, a utilização da tecnologia traz celeridade aos procedimentos, como bem destacado pelo Tribunal de Conta da União, em estudo elaborado sobre o tema .

Tais benefícios, tem feito com que a tecnologia Blockchain venha sendo implantada ou tendo sua implantação estudada em diversos locais do mundo. 

A união Europeia, por exemplo, em fevereiro de 2018, lançou o observatório e fórum de Blockchain, destinado a acelerar a implantação da tecnologia no bloco e, em outubro de 2018, o parlamento do bloco aprovou resolução sobre a tecnologia.

Por meio da referida resolução o parlamento do bloco europeu reconhece aos benefícios da aplicação de tecnologia de registos distribuídos em áreas como os transportes, saúde, educação, bem como sua importância na gestão e desburocratização de serviços públicos.

47. Destaca o potencial de eficiência do TRD para a gestão e serviços do setor público em termos de desburocratização, especialmente com vista à implementação do Plano de Ação de eGovernment, com particular referência à adoção em toda a União do princípio digital único (TOOP), reduzindo assim ainda mais a carga administrativa para os cidadãos, empresas e administrações públicas ;

No mesmo sentido, a Administração de Serviços Gerais dos Estado Unidos, tem estudado para a implantação da tecnologia, através da utilização de contratos inteligentes como forma de trazer maior celeridade às contratações públicas no país, ao passo que tais contratos, formados por códigos de programação, são pensados para evitar interpretações ambíguas e “será executado exatamente da forma em que foi programado. Normalmente este código é do tipo: se (condição satisfeita) então (ação) .”

No Brasil, o BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social tem sido um importante fomentador da difusão da Blockchain em registros públicos. Com o BNDES Token, a instituição tem utilizado a tecnologia para conferir maior transparência às suas transações financeiras.

Em 30 de maio de 2022, juntamente com o TCU, o BNDES lançou a Rede Blockchain Brasil. Rede Pública e sem fins lucrativos que tem como principais objetivos elevar os níveis de transparência, integridade e eficiência aos atos da administração pública.

No âmbito das contratações públicas, os governos da Bahia e do Rio Grande do Norte, em parceria com o Banco Mundial criaram a Solução Online de Licitação (SOL) que consiste em uma plataforma (aplicativo) online em que órgãos da administração pública criam procedimentos licitatórios para aquisição de produtos e fornecedores (licitantes) podem acessar os procedimentos abertos e fazerem suas ofertas.

Tanto o edital  do procedimento licitatório, quanto as propostas e os contratos são registrados por meio da tecnologia bockchain, que além de serem armazenado no aplicativo também são armazenados na infraestrutura da rede dos estados. “Dessa forma, as informações ficam protegidas contra alterações. Qualquer tentativa de corromper os dados pode ser facilmente notada e reportada, tornando a auditoria das compras ainda mais transparente, segura e eficiente.” 

Com relação ao tipo de rede a ser utilizada, as redes híbridas parecem ser a melhor alternativa para mitigar  riscos  e proporcionar o aproveitamento dos benefícios que a utilização da Blockchain traz às contratações públicas, ao passo que “podem ser administradas por uma ou mais organizações – por exemplo, uma agência governamental – para garantir níveis adequados de coordenação, confiabilidade e segurança da rede”, bem como apenas alguns nós específicos  podem validar os registros por meio do consentimento. 

Em outras palavras, os dados relativos às transações ficariam disponíveis para que a população e os órgão de controle, desde que integrantes da rede pudessem consultá-los quando bem o quisessem, mas apenas membros qualificados desta rede poderiam inserir transações e validá-las, garantindo, assim, uma maior segurança aos processos.

Assim, embora as disposições trazidas pela nova lei de Licitações e contratos sejam consideradas, por Samir Sallen Silva Santos e Lucio Alves Angelo Junior, como “mais um fator positivo para a implantação do blockchain nas compras públicas.”, há necessidade de regulamentação mais específica sobre o tema, a fim de que se defina qual o tipo de rede Blockchain deve ser utilizada para cada um dos procedimentos licitatórios, bem como se poderão ser utilizadas redes mantidas por instituições privadas ou se devem ser utilizadas apenas redes mantidas por entes públicos, como por exemplo a rede Blockchain Brasil do BNDES em parceria com o TCU.

Desta forma, embora haja certas dificuldades na implantação da Blockchain, potencializadas pelos fatores de risco destacados pelo estudo elaborado pelo Tribunal de Contas da União e aquelas decorrentes de fatores morais e de uma regulamentação especial sobre o tema, pode-se concluir, com razoável margem de certeza, que os benefícios que sua utilização traz para as contratações públicas justificam avançar no processo de implantação da tecnologia.

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BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF, [2021]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 22 mar. 2023.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Levantamento da tecnologia blockchain / Tribunal de Contas da União; Relator Ministro Aroldo Cedraz. – Brasília: TCU, Secretaria das Sessões (Seses), 2020. 39 p.: il. – (Sumário Executivo) Brasil. Tribunal de Contas da União. Levantamento da tecnologia blockchain / Tribunal de Contas da União; Relator Ministro Aroldo Cedraz. – Brasília: TCU, Secretaria das Sessões (Seses), 2020. 39 p.: il. – (Sumário Executivo)

ENCCLA. Blockchain no setor público: guia de conceitos e usos potenciais. 1ª ed. Brasília, 2020. Disponível em: http://enccla.camara.leg.br/acoes/arquivos/resultados-enccla-2020/blockchain-no-setor-publico-guia-de-conceitos-e-usos-potenciais. Acesso em 17 de abr. de 2023. 

PARLAMENTO EUROPEU. Tecnologías de registros distribuidos y cadenas de bloques: fomentar la confianza con la desintermediación.  Resolución 2017/2772 (RSP) de 3 de octubre de 2018. Disponivel em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-8-2018-0373_ES.html. Acesso em 05 de abr. de 2023. 

P.H. Alves, R. Laigner, R. Nasser, G. Robichez, H. Lopes, M. Kalinowski, “Desmistificando Blockchain: Conceitos e Aplicações”, Em: C. Maciel, J. Viterbo (Orgs). “Computação e Sociedade”, Sociedade Brasileira de Computação. Disponível em: https://www-di.inf.puc-rio.br/~kalinowski/publications/AlvesLNRLK20.pdf. Acesso em 10 de abr. de 2023.

ROBICHEZ, G. et al. Blockchain para governos e serviços públicos. Rio de Janeiro: PUC, 2019. Disponível em: http://bib-di.inf.puc-rio.br/ftp/pub/docs/techreports/19_01_robichez.pdf. Acesso em 02 de fev. de 2023. 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo – 41. Ed., ver. e atual. / até a Emenda Constitucional n. 99, de 14.12.2017. – São Paulo: Malheiros, 2018.

SILVA SANTOS, S. S.; ANGELO JÚNIOR, L. A. Entorno legal e adoção de blockchain como ferramenta para prevenir a corrupção em contratações públicas: reflexões sobre iniciativas europeias e os marcos normativos brasileiros. Revista da CGU, [S. l.], v. 14, n. 26, 2022. DOI:10.36428/revistadacgu. v14i26.528. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/528. Acesso em: 22 mar. 2023;

ZILLOTO, Mirela Miró. Tecnologia blockchain nas contratações públicas no Brasil. – Belo Horizonte. Forum, 2022;

Danilo Trindade de Morais
Formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio do escritório Almeida Prado Advogados. .

Francisco Octavio de Almeida Prado Filho
Sócio-fundador do escritório Almeida Prado Advogados e presidente da Comissão de Estudos sobre Improbidade Administrativa do IASP.

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