O presente artigo tem como objetivo destacar a necessidade de diferenciação entre a validade dos tokens nos planos existencial, jurídico e material, considerando-se suas características básicas e confrontando-os com as demais formas de representação de titularidade, direitos e obrigações em meios físicos, como o papel.
Pretende-se demonstrar que, independentemente de serem fungíveis ou não, são dotados de inquestionável validade ao menos no plano existencial, por se tratar de registros feitos cronologicamente e, geralmente1, de forma pública, recebendo a chancela de validade da coletividade responsável pela manutenção da respectiva rede da qual os nós validadores fizerem parte.
Nessa esteira, imagine-se algo que permite o registro de todo e qualquer pensamento, criação artística, contrato comercial, compromisso jurídico, de qualquer pessoa, a qualquer hora e em qualquer lugar, independentemente da ação direta de um terceiro com atribuição conferida por lei para agir como validador.
Além disso, que também garante que futuramente você consiga comprovar ter sido o primeiro a ter registrado referido pensamento, ou que você é o compositor de determinada música, o desenvolvedor de um programa de computador, ou o distribuidor comercial que adquiriu exclusividade sobre determinada região antes de qualquer outro.
Some-se a essas qualidades a caraterística de poder, da mesma forma, automatizar cobranças, pagamentos, compensações, registros logísticos, distribuição de lucros e dividendos; ou de fazer a divisão de royalties sobre a reprodução de uma música, de um vídeo; ou sobre a venda de um livro; a repartição dos ganhos auferidos com a venda de ingressos para um concerto, ópera ou peça teatral; sobre a exibição de um filme ou oriundos do uso de equipamentos em contratos de locação de máquinas; ou, até mesmo, fazer a divisão do poder de decisão e a distribuição da capacidade de votação e eleição entre sócios em uma empresa ou em um condomínio de apartamentos.
Tudo isso pode ser feito utilizando uma blockchain, por meio dos chamados tokens, fato esse que deu origem a uma frase que virou uma espécie de tendência, denominada tokenize everything (tokenize tudo, em tradução livre do inglês para o português), segundo a qual “Everything that can be tokenized, will be tokenized”2 ou “Tudo que pode ser tokenizado, será tokenizado” (também em tradução livre), frase esta que acabou evoluindo para o conceito de que “tudo pode ser tokenizado, mas nem tudo deve ser”3, já que, para algumas situações, o custo envolvido não é compensado pelo benefício.
De qualquer forma, fato é que, a cada dia, cada vez mais coisas passam a ser tokenizadas e, consequentemente, a ter seus tokens negociados em diferentes blockchains, gerando gigantescos e extremamente dinâmicos novos mercados que, como tal, acabam virando alvo tanto de elogios, quanto de críticas, seja por conta de sua legitimidade, seja em razão da pouca ou nula regulamentação, trazendo à análise e discussão todo tipo de dúvida e incerteza, em um mundo que ininterruptamente evolui e se complexifica mais e mais a todo instante.
Uma das primeiras consequências dessa escalada vertiginosa da tokenização é a necessidade de saber se os tokens têm, ou não, validade jurídica para garantia de direitos e obrigações e para a responsabilização legal das partes envolvidas nas relações que são em tais instrumentos registradas, criadas ou representadas.
Em que pese o ceticismo de muitos – especialmente dos ainda não inteirados sobre essas evoluções tecnológicas, como normalmente acaba acontecendo – e não obstante as incontáveis histórias de fraudes e esquemas piramidais formados em torno de ativos tokenizados, fato é que não há motivo para não aceitar a validade jurídica dos tokens e, portanto, das relações comerciais, obrigacionais e financeiras que a partir deles se desenvolvam entre particulares que sejam cidadãos de países minimamente democráticos e que respeitem a autonomia individual e a segurança das relações interpessoais que não contrariem os direitos e garantias universalmente aceitos de liberdade de expressão, de propriedade e a proteção à privacidade e às criações intelectuais e à livre comercialização de bens e serviços.
Isso porque um token nada mais é que uma representação de algo, independentemente do que esteja ele representando. Seja o registro de uma obra literária ou a negociação da venda de um determinado bem, como um apartamento, um carro ou ações de uma empresa, o token aparece como uma espécie de nova mídia – no sentido de meio, de instrumento pelo qual algo é realizado ou registrado – ou seja, serve como veículo jurídico para a celebração e certificação de qualquer uma das relações mencionadas desde a primeira linha deste artigo, além de muitas outras aqui não citadas.
A diferença é que os tokens, ao contrário do que ocorre com os demais meios de registro de direitos e celebração de negócios, têm, ou podem ter, características que lhes conferem atributos que agregam valores e poderes que um mero papel ou outra espécie de mídia não tem condição de proporcionar, já que os tokens, por serem objeto de registro em blockchains distribuídas por inúmeros nós em redes – desvinculadas, ou não, de um controle central – têm inegável capacidade de resiliência e grande segurança contra ataques de entes mal-intencionados, uma vez que demandam um imenso poder computacional para que os registros nela lançados possam ser alterados.
Além disso, um registro feito em uma blockchain recebe um timestamp (selo de tempo, em tradução livre) que garante a verificação cronológica quanto à sua realização, afastando quaisquer dúvidas, por exemplo, com relação a anterioridade de registro ou a legitimidade temporal para a realização de um determinado ato.
Assim, tecnicamente, um registro feito em blockchain tem – ou pelo menos deveria ter – muito mais legitimidade legal e, portanto, muito mais força comprobatória que, por exemplo, um contrato escrito em papel e assinado por duas testemunhas, exigência feita pelo Código de Processo Civil4 para que um instrumento particular seja considerado um título executivo extrajudicial com força equivalente à de um cheque ou nota promissória e possa ser utilizado para propor uma ação judicial de execução.
Afinal, se duas testemunhas já são suficientes para dotar um documento de força executiva que permite a persecução de bens perante um juízo, o que se dirá de um registro de uma negociação que é feito em uma blockchain que possua, por exemplo, 5.000, 3.000, ou mesmo “apenas” 500 nós em sua rede? Não seria cada um desses nós também uma testemunha da realização do que estiver representado no token em questão, na medida em que todos esses nós participam da construção da blockchain mantendo obrigatoriamente uma cópia de todas as transações que nela são feitas?
Ainda que a identidade das pessoas que “rodam” referidos nós possa ser desconhecida, os nós existem e os registros são por eles mantidos como forma de construção da corrente de blocos de transação denominada em inglês blockchain. A prova da existência da relação é incontestável, uma vez que em cada transação são registrados os endereços das contas que nela interagiram e o conteúdo que tiver sido objeto da transação, seja um mero valor transferido de uma a outra, seja um complexo smart contract por meio do qual infinitas possibilidades de relações podem ser programadas e incrivelmente realizadas de forma automática quando preenchidas as condições determinadas nas linhas de comando de referido “contrato inteligente”.
As possibilidades são efetivamente inúmeras e ainda não foram completamente exploradas, tendo basicamente se limitado nos últimos anos a: transações financeiras, via DeFi (Decentralized Finance, ou Finanças Descentralizadas, em tradução livre); criações artísticas, com os chamados NFTs (non-fungible tokens, ou tokens não-fungíveis, em tradução livre); ou registros logísticos e de origem, por meio de sensores interligados pela chamada Internet das Coisas, ou IOT (do inglês Internet Of Things).
Nos próximos anos possivelmente veremos um avanço exponencial na utilização de tokens de todo tipo, transferindo grande parte das transações que hoje são feitas ainda por meio de papel e caneta, no mundo físico, para os meios digitais das diferentes blockchains já em utilização e, eventualmente, para os chamados metaversos, alterando de modo contundente as relações entre os indivíduos em seus espaços – que, se efetivamente vierem a ser utilizados, poderão valer-se das blockchains para fazer o registro de todo e qualquer movimento que seja feito em seus cenários virtuais, garantindo não só a tranquilidade dos usuários como, também, uma maior confiabilidade de utilização e segurança da perpetuidade das informações produzidas nesse meio.
Cada momento e cada fato ocorrido nessa nova realidade da Web 3.0 poderá – e muito provavelmente isso acontecerá – ficar guardado para sempre de forma auditável e incontestável devido a toda a segurança envolvida na criação (“mineração”) dos blocos de cada blockchain, e essa realidade passará a ser um padrão de normalidade tal como são hoje os protocolos utilizados para envio e recebimento de e-mails e para visitação de websites, sendo utilizados muitas vezes sem que seus usuários sequer se deem conta de que estão fazendo uso dessas ferramentas.
Tal expectativa decorre da observação de outros mercados cujos ativos, com o tempo e em razão dos costumes, passaram a ser criados, mantidos e negociados em infraestruturas próprias – como explanado por Andrew Beal em seu artigo intitulado “Tokenize Everything”, no qual sustenta que “Atualmente, em nossos mercados financeiros, as maiores classes de ativos têm seus próprios mercados e infraestruturas” [citando como exemplos as moedas fiat (“currencies”), as ações e participações em empresas (“equities”), os bens ou mercadorias de ampla negociação (“commodities”), os direitos creditícios (“credit/loans”)] – mas que, paralelamente, “há muitos outros ativos, como colecionáveis e de propriedade intelectual que historicamente não têm qualquer infraestrutura dessa espécie”.
Dessa observação e comparando tais infraestruturas com as que as blockchains, os tokens e as finanças descentralizadas oferecem, o mesmo autor considera que estas últimas seriam, em suas palavras, uma espécie de “asset-agnostic infrastructure”, ou infraestrutura de ativos independente da natureza desse mesmos ativos (em tradução livre), sustentando que se trataria de uma infraestrutura financeira única para qualquer tipo de ativo que, aos poucos, atrairia todos os demais ativos anteriormente citados, pois, segundo ele, “agora, transformamos a Internet em uma infraestrutura que simultaneamente pode servir para criptomoedas, stablecoins, NFTs, ações tokenizadas de companhias públicas, commodities e dúzias de outros ativos” (em tradução livre).
Entretanto, para que tal infraestrutura possa realmente servir para todas as espécies de ativos, torna-se necessária a tokenização desses ativos, já que a infraestrutura em si não é adaptável às diferentes naturezas de cada ativo, sendo necessária essa espécie de equalização do formato desses ativos para que nela eles possam ser criados, custodiados e negociados.
E de fato, uma vez que se mostra possível representar qualquer tipo de ativo por meio de uma réplica digital (ou digital twin, na terminologia em inglês) – réplica esta que terá características únicas se for criada na forma de um NFT – poderá ela ser transacionada digitalmente com total segurança quanto à sua origem e no que tange ao registro da transação ao ser esta feita em uma rede blockchain.
Resumidamente, estaríamos tratando da negociação de certificados digitais de autenticidade e exclusividade, denominados tokens, que seriam preferencialmente do tipo não-fungível (NFTs) mas que também poderiam ser, por exemplo, do tipo fungível se seu estoque, ou suprimento, tenha sido na origem limitado a apenas uma unidade, já que o smart contract de que seria oriundo poderia produzir apenas esse único token e este, por sua vez, teria sua prova de anterioridade via timestamp e sua legitimidade decorrente do registro distribuído na respectiva blockchain em que fosse gerado.
Não há, portanto, qualquer limitação legal que impeça a manifestação de vontade contratual por meio de smart contracts, e tampouco qualquer limitação em termos de validade para os tokens; os quais, como já visto, na verdade detêm muito mais certeza e segurança com relação à sua origem e datação que, por exemplo, um contrato firmado por instrumento particular feito em papel – mesmo que possuindo duas testemunhas – já que a confiança com relação a seus termos e sua legitimidade dependeria, no caso deste último contrato, necessariamente de se conhecer previamente as pessoas nele envolvidas e sua idoneidade; enquanto nas relações registradas em blockchains não importa a titularidade das contas envolvidas na transação para que sua existência possa ser confirmada na rede, bastando haver seu registro para torná-la amplamente válida.
Dessa forma, ao menos no que tange ao plano da validade existencial dos tokens, entendemos que contra eles não há qualquer restrição; cabendo obviamente, porém, analisar detidamente seu conteúdo para efetivamente saber se a relação interpartes que ele pretende representar detém, de fato, legitimidade para surtir efeitos nos planos de validade jurídica e material.
Isso porque, por exemplo, nada impede que virtualmente alguém pretenda registrar em uma blockchain que supostamente seria o responsável pela pintura do famoso quadro da Monalisa, já que o sistema aceita qualquer espécie de lançamento; entretanto, nesse exemplo, é notório que tal obra é de autoria de Leonardo Da Vinci.
Da mesma forma, não se poderia admitir a validade jurídica de um token que representasse, por exemplo, a compra e venda de um terreno público, feita entre particulares, já que a lei não daria suporte de legitimidade jurídica para tal transação, embora possa ela ser lançada em blockchain, tornando-se, assim, tokenizada.
Assim, ao se falar em tokenização, não deve haver dúvida quanto à validade, ou não, da existência do token em si, ou seja, do registro por si só, já que este é facilmente verificável junto à blockchain correspondente; o que deve ser averiguado, isto sim, é a validade e legitimidade da informação que está registrada em tal token, sob pena de se aceitar qualquer lançamento apenas por ter sido feito, independentemente de seu valor.
Trata-se, portanto, de hipótese em que, tal como em qualquer outra do “mundo físico”, é preciso que haja confiança e conhecimento quanto àquilo que de fato está sendo registrado, ou tokenizado, entre as partes, sendo insubstituível, portanto, a prévia análise das situações para que se possa ter a necessária segurança na celebração de qualquer negócio por meio dessa espécie de instrumento.
Enfim, há que se diferenciar, portanto, entre os planos de validade existencial, jurídica e material, não sendo suficiente, para a segurança das relações, apenas o fato de se tratar de um token registrado em uma blockchain.
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1 Diz-se geralmente pois, além das redes públicas de blockchain, também existem as redes privadas, ou permissionadas, nas quais também é possível a criação de tokens.
2 Em busca via Google, a frase aparece pela primeira vez em artigo do Dr. Pavel Kravchenko, no portal Coindesk, disponível no hyperlink: https://www.coindesk.com/markets/2017/11/25/heres-whats-standing-in-the-way-of-a-tokenized-economy/
3 Por Andrew Beal, em maio de 2021, no portal Fintechna, disponível no hyperlink: https://www.fintechna.com/articles/tokenize-everything/
4 Artigo 784, caput e inciso III: “Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais: (...) III - o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas;”.