Migalhas de Peso

A hermenêutica jurídica no processo do trabalho

A interpretação jurídica perpassa pelo processo de suprir as lacunas deixadas pelo legislador.

10/4/2023

O valor social do trabalho é um princípio fundamental, considerando, sobretudo, a constitucionalização dos direitos básicos dos trabalhadores urbanos e rurais. Assim, a ordem econômica brasileira deve valorizar o trabalho humano com a finalidade precípua de assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social. 

Não obstante, verifica-se que muitos atos administrativos, editados pelo próprio poder judiciário e muitas decisões judiciais, violam os direitos mais comezinhos, haja vista que nenhum ato decisório poderia restringir direitos legalmente previstos e, nem tampouco, criar obrigações que não estejam previstas em lei, nos exatos termos do art. 5º, II, da Constituição Federal c/c §2º, do art. 8º, da Consolidação das Leis do Trabalho.

Hodiernamente, percebe-se grande complexidade na aplicação do direito, em especial, pela consolidação do entendimento de que as normas constitucionais são normas jurídicas dotadas de força normativa e superioridade hierárquica.

Para o saudoso Professor Miguel Reale1:

O primeiro dever do intérprete é analisar o dispositivo legal para captar o seu pleno valor expressional. A lei é uma declaração de vontade do legislador e, portanto, deve ser reproduzida com exatidão e fidelidade, para isto, muitas vezes é necessário indagar do exato sentido de um vocábulo ou do valor das proposições do ponto de vista sintático.

A lei é uma realidade morfológica e sintática que deve ser, por conseguinte, estudada do ponto de vista gramatical. É da gramática – tomada esta palavra no seu sentido mais amplo – o primeiro caminho que o intérprete deve percorrer para dar-nos o sentido rigoroso de uma norma legal. Toda lei tem um significado e um alcance que não são dados pelo arbítrio imaginoso do intérprete, mas são, ao contrário, revelados pelo exame imparcial do texto.

Após essa perseguição filológica, impõe-se um trabalho lógico, pois nenhum dispositivo está separado dos demais. Cada artigo de lei situa-se num capítulo ou num título e seu valor depende de sua colocação sistemática. É preciso, pois, interpretar as leis segundo seus valores linguísticos, mas sempre situando-as no conjunto do sistema.”g/n.

E mais adiante acrescenta:

“Por outro lado, não nos parece destituída de sentido a distinção entre a interpretação extensiva e a estrita, sob alegação que o hermeneuta só pode extrair o significado que a lei tem, sem restringi-lo ou alargá-lo. Na realidade, porém, o que se chama interpretação extensiva é exatamente o resultado do trabalho criador do intérprete, ao acrescer algo de novo àquilo que, a rigor, a lei deveria normalmente enunciar, à vista das novas circunstâncias, quando a elasticidade do texto normativo comportar o acréscimo. Desse modo, graças a um trabalho de extensão, revela-se algo de implícito na significação do preceito, sem quebra de sua estrutura.

Pela interpretação restritiva, dá-se o contrário, porque o intérprete, limitando-se a incidência da norma, impede que a mesma produza efeitos danosos (...) São ambas formas prudentes de correção de deficiências e excessos das normas legais, sem que para tanto se adote a tese extremada de interpretação contra legem.g/n.

Sob este prisma, os princípios fundamentais inscritos na constituição federal passam a ser as fontes normativas primárias de todo o sistema legislativo brasileiro. 

O intérprete que aplica uma regra tem que estar seguro de que sua aplicação estrita não infringe qualquer direito fundamental.

Contudo, o que parece ser tão claro não é tão simples, eis que muitas vezes, o acúmulo dos fatos e das exigências sociais colocam em aberto e permanente contraste o texto normativo, que deve ser analisado com prudência, através de um juízo de legalidade.

Assim, reproduz-se as brilhantes lições do jurista Eros Roberto Grau3:

 “[...] interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionaridade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo da legalidade é a atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto. Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta opção indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agente.”g/n.

Nesse sentido, a norma-decisão deve zelar pela segurança jurídica. 

Para isso, é preciso interpretar as leis segundo seus valores linguísticos, mas sempre situando-as no conjunto do sistema, caso a caso.

Isto porque nenhum princípio constitucional é absoluto, podendo entrar em conflito com outros princípios e podendo também ser sopesado a depender das circunstâncias fáticas e culturais.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello4, para quem princípio:

“é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura mestra.” g/n.

Com a devida vênia, permita-me abrir um parêntese, porque se por um lado a importância dos princípios foi potencializada pela constituição, consagrando os valores; os direitos; as garantias e as competências de uma sociedade constitucional. Por outro lado, é certo que colocou o direito moderno em crise, ao substituir a racionalidade formal, sacrificando, muitas vezes, a legalidade por uma interpretação aberta e pautada em conteúdos éticos, portanto, abstratos, o que coloca em grave risco a segurança jurídica e o próprio direito.  

Isto se deve ao fato de que quando os princípios assumem a função de normas supremas do ordenamento passam a funcionar como pautas ou critérios para a melhor avaliação de todos os conteúdos normativos. Todavia, cabe observar que os princípios devem ser interpretados segundo um juízo de legalidade e não por meio de um juízo de oportunidade. Logo, não se pode afirmar que seria mais grave violar um princípio do que violar uma norma, à medida que a ponderação realizada cria incertezas. O que deve ser buscado pelo intérprete autêntico é a produção do direito, com fundamento na profunda análise das provas e dos fatos sociais que lhe são apresentados, com a intenção de complementar o trabalho do legislador. 

Nesse sentido aponta Eros Roberto Grau5, ao concluir que:

“Embora não se preste esta circunstância a distinguir os princípios das regras jurídicas, é certo que estas últimas operam a concreção daquelas: as regras são aplicações dos princípios. Daí porque a interpretação e aplicação das regras jurídicas, tanto das regras constitucionais quanto das contempladas na legislação ordinária, não podem ser empreendidas sem que se tome na devida conta os princípios – em especial de princípios positivos de Direito – sobre os quais se apoiam, isto é, aos quais se conferem concreção”

A interpretação sistemática considera que a norma não pode ser vista de forma isolada, pois o direito existe como um sistema. 

Nesse mesmo viés é a brilhante lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes6:

“A supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis e atos normativos editados pelo poder público competente exigem que, na função hermenêutica de interpretação do ordenamento jurídico, seja sempre concedida preferência ao sentido da norma que seja adequado à Constituição Federal. Assim sendo, no caso de normas com várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico.” 

A título de exemplificação, pode-se observar que a análise da transcendência  no recurso de revista é eminentemente subjetiva e foi instituto criado por norma infraconstitucional, de modo que cria obstáculos ao princípio constitucional do acesso à justiça, de maneira  que se não for considerado requisito inconstitucional,  exige a adequada fundamentação da decisão em cumprimento ao efeito externo da motivação, que serve como forma de controle público da legitimidade das decisões judiciais  e da imparcialidade do julgador.

Verifica-se que o ato administrativo, no estado democrático de direito, está subordinado ao princípio da legalidade, consubstanciado no art. 5º, inc. II c/c art.  37, caput, ambos da Constituição Federal. Com isso, equivale assentar que a Administração só pode atuar de acordo com que a lei determina, não podendo inovar na ordem jurídica, impondo obrigações ou limitações a direitos de terceiros.

Dessa forma, o ensinamento que se extrai é que não é crível admitir normas ou interpretações que não coadunem com os valores previstos no texto constitucional, porque somente assim a ordem econômica brasileira conseguirá criar parâmetros de valorização do trabalho humano e da livre-iniciativa com a finalidade precípua de assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, o que faria reduzir as desigualdades, mantendo-se a ordem e maior isonomia nas relações, em especial, em relação aos trabalhadores que não raras vezes possuem direitos mínimos e indisponíveis violados.

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1 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva,2002, p. 279.

2GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). Juspodivm. 10ª ed. 2022, p. 91.

3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p.538.

4 Refere-se aqui ao ativismo judicial, fruto do neoconstitucionalismo, da defesa das chamadas mutações constitucionais. A título de exemplo, apresenta-se o julgamento do HC 126.292, realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), visto que para este redator somente uma nova Assembleia Constituinte poderia impor a prisão após condenação em segunda instância, por força do que dispõe o inc. IV, §4º, do art. 60, da Constituição Federal .

5 GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 133.

6 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.45.

7 A Medida Provisória n.º 2.226/2001 introduziu o art. 896-A na CLT, dispositivo que passou a dispor que “O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica.” A Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), introduziu os §§ 1º ao 6º no art. 896-A da CLT, assim, conferindo suposta eficácia à transcendência, com estabelecimento de critérios, bem como fixou paradigmas para a análise desse pressuposto de admissibilidade no processamento dos recursos de revista.

8 ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro, v.I: Parte Geral: fundamentação e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p.443. 

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ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro, v.I: Parte Geral: fundamentação e distribuição de conflitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p.443

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p.538.

GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). Juspodivm. 10ª ed. 2022, p. 91.

GRAU, Eros. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 133.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.45.

REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva,2002, p. 279.

 

Guilherme Galvão de Mattos Souza
Advogado. Mestrando em Direito (PPGD/UNESA). Especialista em Direito Digital do Trabalho; Compliance e LGPD (VERBO). Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário (UNESA).

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