Migalhas de Peso

“Esse sujeito”: O Banco Central do Brasil sob ataque

Perseguição gratuita a uma autonomia duramente conquistada.

6/4/2023

O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem desferido pesados ataques à pessoa do Presidente do Banco Central do Brasil - BCB, que incluem a afirmação de que pretende rever a sua autonomia. Minha preocupação com esse tema é muito antiga, do tempo em que ainda era servidor do BCB e que se exteriorizou em um texto inicial de 2001 (“Os Regimes Político e Jurídico dos Bancos Centrais – O Sistema Financeiro Nacional e o Banco Central do Brasil”, Ed Unicid/Cultural Paulista). O segundo de 2005 foi a obra (“Bancos Centrais no Direito Comparado”, Malheiros Editores), que culminou recentemente com os “Aspectos da “Teoria Geral do Direito Bancário – A moeda e o Sistema Financeiro Nacional e Internacional”, este escrito com a coautoria de Alexandre Sansone Pacheco, Ed. Dialética, 2023). Isso sem contar inúmeros artigos sobre o mesmo tema, publicados principalmente no Jornal Eletrônico “Migalhas”, que podem ser encontrados por meio de uma busca pelo meu nome.

A desrespeitosa atitude do Sr. Presidente da República é um atentado contra a democracia, o que fica muito claro quando nos lembramos de que a autonomia do BCB foi alcançada por meio da Lei Complementar 179/21, discutida, votada e aprovada pelo Congresso Nacional em um regime de pleno respeito às disposições da CF. É claro que essa lei pode ser alterada e se surgir algum projeto nesse sentido (em iniciativa de grande retrocesso) ele necessitará ultrapassar todos os passos necessários no Legislativo. Penso que isso seria improvável, mas não impossível e talvez a tentação venha a ser não a da cassação total da autonomia do BCB tal como se encontra, mas a adoção de medidas indiretas que pudessem, entre outras, tirar o mandato fixo dos administradores daquele, os quais poderiam ser afastados sob pretextos legais abertos e sujeitos a perigosas interpretações subjetivas. Outra possibilidade estaria na redução das competências privativas do BCB, subordinando-as ao Ministério da Economia, por exemplo. Vamos dormir com esse pesadelo até que a sensatez nesse campo se estabeleça de vez, ou seja, quando se estabelecer que um banco central autônomo precisa ser reconhecido pela sociedade como uma instituição do nosso modelo democrático e não como um modismo.

As instituições são realidades sociais atemporais, algumas objeto de tratamento legal como deve ser entendido o BCB. Entre nós elas são poucas, contadas nos dedos de uma mão, se tanto, pelo que se tem visto. Até mesmo a seleção brasileira de futebol deixou essa categoria depois de tantos fracassos. Um país sem instituições faz os seus cidadãos viverem em permanente situação de insegurança e de incerteza. No plano econômico macro isso significa preços mais caros e juros mais elevados.

Mais recentemente a essa crítica do Presidente Lula ao BCB juntaram-se afirmações da Presidente do PT, Gleise Hoffmann, de Lindberg Farias, do Ministro Fernando Haddad e, pasmem, da Ministra Simone Tebet. Do PT, claro, não se poderia esperar outra coisa, dado que sua cartilha tem sido a da economia criativa.

Esse cerco tão desrespeitoso ao BCB e ao seu Presidente ataca um órgão do Estado que, pelo que parece, teria em vista transformá-lo em uma simples repartição do governo, tal como acontece com os ministérios, cuja direção é fruto de negociações políticas quase nunca honrosas – inerentes ao patrimonialismo que nos governa -, do que resultaria que a diretoria daquele órgão poderia ser mudada sem a menor cerimônia. Observe-se que o Presidente do BCB não é o único “pai da criança”, ou seja de uma taxa Selic elevada. Ele é apenas um dos nove membros do COPOM – o Comitê de Política Monetária – que traçam os rumos da sua atuação, o qual delibera pela maioria de votos. Esses, aliás, de maneira geral, têm sido unânimes em suas deliberações

Não entrarei na seara das motivações, mas, no íntimo do seu autor, as intervenções indevidas do Presidente Lula poderiam ser até mesmo classificadas como um tipo de forward guidance impróprio, dando até mesmo lugar a inside information1. Isto porque suas palavras, uma vez proferidas, poderiam indicar que o seu governo adotará determinado caminho pelas mãos dos ministérios da Economia ou do Desenvolvimento, gerando reações positivas (mais raras) e negativas (quase sempre), resultando na reprogramação dos agentes do mercado financeiro e, consequentemente, da vida das famílias e das empresas, com imediato efeito sobre a cotação do dólar e dos valores mobiliários negociados na Bolsa de Valores. Dessa forma configura-se um quadro é de total incerteza econômica e jurídica desse governo que mal viceja, pois entre falar e fazer está a distância de muitos anos-luz.

A cada manifestação contra a autonomia do BCB o mercado reage de forma negativa, com efeito precisamente contrário ao da redução da taxa de juros. Foi o que se viu, por exemplo, no último dia 3 de fevereiro, quando houve a seguinte alteração da taxa de juros futuros: a taxa do contrato de depósito interfinanceiro (DI) para janeiro de 2024 subiu de 13,64% no ajuste anterior, para 13,83%; a do DI para janeiro de 2025 avançou de 12,79% para 13,275%; a do contrato para janeiro de 2026 escalou de 12,81% para 13,165%; e a do DI para janeiro de 2027 saltou de 12,83% para 13,18%. Acrescente-se que, pela primeira vez desde 2016, os juros reais de longo prazo ultrapassaram o nível de 6,5%.

Muito interessante, o que é desconhecido pela maioria dos ignorantes em direito bancário, é que os grandes vilões das elevadas taxas de juros contra as quais vêm os ataques – reconheçamos, com muita razão em parte dos casos quando se verifica abuso – são o cartão de crédito e o cheque especial. No entanto, o peso desses na totalidade da carteira de crédito do Sistema Financeiro Nacional – SFN é de apenas 2%. Não está nesses instrumentos, portanto, o peso do grande endividamento dos tomadores de crédito. De outro lado, a totalidade das carteiras dos bancos, o que corresponde a R$5,2 trilhões, tem uma taxa média de juros da ordem de 14% a.a., Ou seja, juros muito humanos, como querem os seus detratores. Como se percebe, falta razão aos atacantes, que desejam nos enganar mostrando a nuvem como se fosse Juno.      

Observando-se essa conquista à qual chegou Brasil é de se notar que nas democracias verdadeiras – e não o arremedo em que vivemos – jamais, por exemplo, os governantes dos Estados Unidos da América, da Inglaterra, da França e da Alemanha se insurgiram contra os dirigentes dos seus bancos centrais. A esse respeito acontece precisamente agora quando o FED acabou de endereçar medidas mais drásticas ainda contra a inflação americana, tendo sido criticado democraticamente por alguns agentes privados pelo risco de segurar esse mal até mesmo às custas da destruição da economia americana, como se tem visto pelas notícias dadas à luz pela imprensa.

Tenha-se em conta que a autonomia do BCB, alcançada pela Lei Complementar 179, de 24/2/21 tem um sentido mais profundo do que o texto correspondente parece demonstrar, pois a sua operacionalização envolve o envolvimento de diversos personagens dotados de uma natureza altamente complexa, inteiramente fora dos não afeitos ao direito bancário, como ocorre de maneira muito clara com o nosso Presidente.

Deve ser por esse motivo que um órgão da imprensa me convidou a mediar uma mesa redonda com a participação dos personagens mais importantes, ligados de uma forma ou outra à batalha contra a inflação, ou que tem sofrido em razão dela. Vejam, eles vêm chegando.

A Sra.  Economia Nacional, foi a primeira a aparecer. Ela estava acompanhada do Sr. Produto Interno Bruto, mais conhecido como PIB, bastante trôpegos e apresentando ares de inanição. A característica de ambos é serem como camaleões, mudando constantemente de cor, conforme sopram os bons ou os maus ventos. Quando é a vez dos primeiros, eles podem apresentar uma coloração verde-esperança ou azul-feliz. Mas hoje sua cor era um laranja bem forte, quase vermelho. Eles vivem em situação de simbiose: o que afeta positiva ou negativamente a Sra. Economia, faz o mesmo com o Sr. PIB.

- Boa noite, Sra. Economia Nacional e Sr. PIB, como vão passando (pergunta meramente retórica, como se percebe).

- Boa noite, prof. Verçosa. Ou nem tanto. Eu não vou nada bem e daqui para o fim do ano tenho medo de ficar cada vez mais fraca e esquelética. E eu, disse o Sr. PIB, estou encolhendo dia a dia, me transformando em um Pibinho. Pelo que parece neste ano não chegarei sequer a um por cento.

- Já não chega o que vem de lá de fora, continuou a Sra. Economia Nacional, como os efeitos da covid-19, da invasão da Ucrânia por aquele novel imperialista russo e da inflação americana, somente trazendo os fatores mais importantes. Mas temos sofrido o que vai aqui dentro. Impostos escorchantes, uma quebradeira geral das empresas e um aumento absolutamente irresponsável do gasto público, vindo do Executivo, com grande ajuda do Congresso. É claro que os efeitos somente podem ser os piores possíveis.

- E olhe, disse o Sr. PIB, mais magro a cada minuto, até a cerveja vai faltar. No dito país do futebol e do carnaval, uma grande cervejaria fechar é de espantar mesmo.

- Já vi que vocês estão falando de mim, disse a Sra. Inflação Brasileira, chegando para o nosso encontro, ao lado de outras convidados, como a Sra. Inflação Americana; a Sra. Taxa de Juros de Longo prazo, mais conhecida como Sra. TJLP e o Sr. Juros (sempre no plural, jamais tendo eu conhecido um juro no singular). O Sr. Juros devia medir uns dois metros de altura, bem mais do que aquela estatura que ostentara no passado.

Pelo que me foi possível observar, a Sra. Inflação Brasileira calçava sapatos modelo 2022, tamanho 5,79% e sua colega americana os usava tamanho 6,5%, um verdadeiro escândalo para o seu país. Seria por isso que ela estava bem mais gorda do que a nossa, quase não cabendo nas suas roupas, com tendência de ganhar ainda mais peso. E olhando para a Sra. TJLP dava para perceber que ela estava bem rechonchuda, com forte tendência e arredondar suas formas.

Minhas senhoras e Sr. Juros, o que pretendem fazer para emagrecerem até ficarem mais esbeltas?

- Prof. Verçosa, nós não podemos fazer nada, disseram eles. Somos somente o reflexo da comida que não dão, basicamente pratos de gasto público descontrolado e de emissão monetária que pode ficar desenfreada se não forem tomados os devidos cuidados. Tudo com a Sra. Economia está relacionado. Agora mesmo se nota uma inflação no preço dos alugueis, tanto residenciais como comerciais. É a aplicação da velha lei da oferta e procura, ou vice-versa. Primeiro nota-se um retorno à atividade presencial, com elevação da procura de imóveis comerciais. Segundo, tendo em vista que o Sr. Juros ficou mais caro nos financiamentos imobiliários, houve desistência de compras com a queda da demanda e, consequentemente, o preço dos alugueis residenciais subiu pelo aumento da procura. Note-se, como fator importante, que o preço dos alugueis havia ficado represado ao tempo da pandemia e agora estão sendo corrigidos. Simples assim.

- Quanto a mim, disse o Sr. Juros, posso dizer que o problema é geral. Meus irmãos em outros países estão subindo em disparada, tendo acontecido que nos USA que a sua taxa paga em aplicações nos títulos do Tesouro voltou a superar os 4% nos últimos dias, o que não acontecia desde a crise dos problemas causados pelo subprime, que deram início à crise financeira mundial de 2007. E olhe que naquele país uma taxa nesse patamar é considerada uma enormidade2.

- Reflexo por reflexo, eu também estou nessa onda, interveio o Sr. Mercado. Durante todo o tempo falam mal de mim, como se eu fosse culpado por tudo o que dá errado com as diletas colegas e com o Sr. Juros. Eu como o que me servem de bom ou de ruim. Se me servem incerteza e insegurança eu reajo mal e tudo desanda. Quando a comida é boa, com nível bom de certeza e de segurança os meus agentes ficam felizes e a máquina empresarial opera com eficiência e baixo custo. Na verdade, não sou um só. Somos vários mercados, cada um no seu pedaço. Eu sou apenas a somatória positiva ou negativa deles. E a nossa resposta é sempre no mesmo diapasão: precificamos tudo.

O interessante é que o Sr. Mercado não tem um corpo bem definido, mostrando-se bastante fluido, tudo indicando mesmo que ele é do tipo líquido, acomodando-se nos recipientes em que mora, fruto do meio em que vive.

- Sr. Mercado, me dê um exemplo dessa precificação.

- É fácil. Considerada a inflação americana que está sendo projetada e precificada, verifica-se que aplicações de dois anos já estão rendendo mais do que 5% a.a. Na Europa o governo alemão está pagando 2,77% a.a por aplicações em títulos de dois anos, maior nível desde 2008; na Inglaterra para o mesmo prazo, os juros chegaram quase a 3,9 % a.a3. São marcos elevadíssimos para aqueles países, com resultados altamente negativos para as suas economias, situação também ligada ao que tem feito ali a Sra. Política Monetária.

- Professor Verçosa, estão aqui presentes nesse painel as Sras. Metas de Inflação, irmãs trigêmeas não univitelinas. Como todos devem estar sabendo, o Presidente Lula deseja que o BCB as eleve, como meio para se alcançar um crescimento econômico melhor.

- É verdade, disse a Sra. Meta 2024. E a nossa precificação já passou para patamares mais elevados, independentemente do que vai acontecer. E o Sr. Mercado, que não vai me desmentir, projetou consequentemente juros mais elevados, o que é muito natural: se a inflação sobe, toda a Família Juros também sobe, precisamente o contrário do que deseja o Sr. Presidente.

- Isso me lembra o personagem Do Contra do Maurício de Souza, disse a Sra. Meta 2024.

- Bem, disse eu, e como se resolve todo esse problema?

Nisso veio caminhando de longe, se arrastando, um monstro do tipo Hidra de Lerna ou coisa parecida, dotado de nove cabeças, a maior delas com a cara do presidente atual do BCB.

Somos o Copom – Comitê de Política Monetária do BCB, eu e as demais oito cabeças, disse a fera. E não precisam ficar assustados eu (ou nós) não comemos nosso inimigo, que é a inflação. O devorador são a D. Selic e o resto da turma das ferramentas de política monetária. Eu só forneço o cardápio.

Naquele momento a Sra. Política Monetária fez uma oportuna intervenção.

- Prof. Verçosa, antes de todo preciso dizer que não sou um veneno, mas um remédio preventivo destinado a impedir um mal maior. Além dos aspectos negativos internos que levam a Sra. Economia Brasileira a sofrer, as minhas parentes internacionais foram grandemente afetadas em função da vergonhosa invasão da Ucrânia pela Rússia, o que foi uma das principais causas da nossa mudança, tamanho o desarranjo foi provocado. Tal agressão levou os principais bancos centrais do mundo a acelerarem os apertos monetários, com reflexos diretos para o meu lado. Isso porque dizer que a terra é uma aldeia global deixou de ser uma figura de linguagem para se tornar uma realidade indiscutível, o que amplamente acontece com o sistema financeiro. Dessa forma explicam-se os apertos monetários ocorridos com o Banco Central Americano, o Sr. FED, e com o Banco Central Europeu, o Sr. BCE. Houve uma reglobalização, tal como o prezado Professor discerniu em um dos seus recentes escritos4, significando uma reorganização das cadeias de produção e uma multipolarização geopolítica. A energia ficou mais cara e, consequentemente, a comida, a partir dos grãos que eram regularmente exportados e com os insumos agrícola. Só não percebe isso quem é muito míope5.  

- Até agora eu não me manifestei, disse o Sr. Crédito, mas já passou da hora.

- Com toda a palavra, disse eu.

- Prof. Verçosa, todos os agentes econômicos sabem que sem mim não existe economia de mercado, mas somente um regime simples de troca direta, com operações a vista. Eu sou essencial para que as empresas possam operar. Todo mundo sabe que há descasamentos no tempo entre os momentos em que: (i) um empresário compra um produto do seu fornecedor e combina o pagamento para o futuro; (ii) vende o produto a termo ou a prazo, com entrega imediata; e (iii) precisa voltar ao fornecedor para repor o estoque. Esse sistema somente funciona quando eu intervenho, me oferecendo aos interessados, que terão se se haver com o Sr. Juros.

- Uma explicação bem simples, mas inteiramente apropriada.

- Bem, disse o Sr. Crédito, para que eu aja dentro de um patamar adequado, combinado com o Sr. Juros, eu preciso ter segurança de que o investidor, que faz a ponte entre quem tem dinheiro e quem precisa dele (como se diz na economia, agentes superavitários e deficitários) receberá de volta o valor investido e a minha oferta deve ser permanente. Ora, neste momento de crise generalizada, aquele investidor se retrai e somente empresta se o Sr. Juros pagar uma taxa tão boa que ele aceite o risco do inadimplemento. Assim sendo, a minha oferta fica reduzida e bem mais cara, dificultando o giro das empresas.

- Minhas caras senhoras e meus caros senhores deste mercado financeiro, as coisas estão bem colocadas, disse eu. Mas há um personagem que até agora não apareceu, que é o grande responsável pelo desarranjo do Sr. Mercado, que é o Sr. Déficit Público.

- Acontece, acudiu alguém, tem aqui um agente importante, creio que muito desejoso   de dar a sua palavra nesta reunião. É a Sra. Política Fiscal, que até agora esteve muito quieta.

- Boa noite, desculpem por ainda não ter dito nada. Acontece que ando com uma grande crise de identidade. Fico me perguntando o tempo todo se sou ou não sou; ou se sou e não sou; ou simplesmente se não sou mesmo. E precisamente nos últimos dias mexeram muito comigo e ando meio mareada.

- Tome um chazinho de camomila e traga o seu recado.

- Vejam vocês que desde o início deste governo tem havido uma forte discussão a meu respeito, resumida em duas posições antagônicas, entremeadas com opiniões que ficam no meio do caminho. Primeiro, tendo em conta a ingente necessidade de se atacar a miséria e junto com ela as doenças e a fome, não haveria limite para os gastos públicos, considerando-se que se trataria de um investimento para o futuro, quando se teria um retorno dos valores gastos. A segunda posição é a tradicional, sobre a qual o Prof. Verçosa escreveu6, no sentido de que o Brasil já está extremamente endividado e não pode ir mais longe nessa conta, sob a pena de se tornar uma economia verdadeiramente inviável, cujo resultado será um buraco sem fundo.

- A irresponsabilidade do primeiro tipo de medidas sempre me fez muito mal, disse o Sr. Mercado. Eu logo reajo fortemente.

- Vejam disse a Sra. Política Fiscal, depois de muitas promessas, saiu a proposta do governo para mim, com a substituição do tão atacado teto de gastos por outro modelo, acusado de engessar a capacidade de promoção de políticas governamentais sociais. As coisas ainda dependem de muitos fatores a serem enfrentados e resolvidos, podendo ser o projeto examinado sob alguns pontos7. Em tese teria sido criado um limite para despesas e estabelecidas metas para o resultado primário, com o objetivo de serem colocadas as contas do governo no azul.

- Eu sou sempre reticente quando se trata de alguma novidade que – por isso mesmo – não apresente algum parâmetro econômico histórico, disse o Sr. Mercado e eu dei um voto de inicial de confiança. Mas, ainda que a ideia parecesse ser promissora, tratar-se-ia de alguém sentado um banquinho de uma perna só, isto é, as coisas funcionarão como esperado tão somente se houver um crescimento contínuo das receitas, o que fica muito duvidoso, tendo em vista a crise econômico-financeira global, a par da situação interna bastante nagativa. E, no Brasil ela é fácil de ser notada, para tanto bastando se olhar para o elevado índice de recuperações judiciais que têm sido ajuizadas. Somente neste ano já foi dada a entrada de 200 pedidos novos, inclusive de empresas importantes, como a Itaipava, mais recentemente, além da Americanas e outras.

- De pleno acordo, disse a Sra. Política Monetária. E o fato ainda mais grave está na necessidade de uma profunda reforma tributária, que não se encontra sequer delineada. E ela terá a ver com a necessidade da conjugação de uma infinidade de interesses nos planos federal, estadual e municipal, sabendo-se que ninguém estará propenso a pagar o preço.

- Vejam, disse o Sr. Juros, assim que foi divulgado o projeto do governo, a minha versão de “de volta para o futuro” caiu significativamente, mas temos de ver como ela vai se comportar. Isto porque a todo momento surge alguma crítica a esse novo arcabouço fiscal que está mais para um rascunho do que para um projeto, tantas coisas são inter dependentes e ligadas a outras que dificilmente podem dar razoavelmente certo.

- Tudo continua muito enevoado, disse o Sr. Crédito. O cenário para o Sr. Juros é de uma taxa alta, considerando-se ainda que a previsão de desaceleração econômica não foi alterada e no mercado internacional as coisas se agravaram bastante com o expressivo aumento do preço do petróleo, fato que se refletirá em todos os setores da economia em todos os lugares. Daí que eu continuarei mais seco em água do que o deserto do Saara. Comigo só terão vez as empresas super sólidas, precisamente aquelas que menos precisam de mim. E olhe que na renegociação das dívidas eu estou muito caro mesmo. Afinal de contas, o meu alimento é um casamento entre a certeza e a incerteza8.

- Eu vou continuar em crise, disse a Sra. Política Fiscal O meu descasamento com a Sra. Política Monetária não terá fim. Da forma como o plano foi montado eu estou atravessando a Avenida Paulista do prédio mais alto para o outro em uma corda balançante e sem ter um apoio firme9. As contas somente se equilibrarão se houver aumento de impostos, como já foi dito, mas a sociedade está sobrecarregada há muito tempo. Não há espaço para essa faca no seu pescoço. E acabar com isenções que há muito tempo existem é mais difícil do que ir até o planeta marte e voltar incólume meses depois. E redução de despesas públicas neste país – até mesmo as suntuárias - é considerada uma grande ofensa.

- E desse jeito eu fico na minha, lá nas alturas, disse o Sr. Juros.

- O governo está caçando dinheiro em todos os lugares em que pense haver uma fonte, sem qualquer critério racional, fazendo da pretendida reforma tributária uma salada indigesta, disse a Sra. Política Fiscal na retomada da palavra. Uma ideia que surgiu foi a de tributar os fundos exclusivos com os demais fundos de investimento, com a cobrança antecipada do imposto de renda em um processo que está sendo chamado de come-cotas. Cantiga velhas que não emplacou e outros carnavais. Outra bola da vez é sair atrás dos que entram em jogos de apostas pela internet. Eu gostaria de ver como isso aconteceria porque, do ponto de vista do domicílio fiscal as apostas são feitas fora do Brasil.

- Explique melhor, Sra. Política Fiscal, por favor, disse eu.

- Prof. Verçosa. No fundo a operação é muito simples. O apostador brasileiro compra criptoativos pagando em reais e depois os aplica nas apostas que faz em um site cujo titular é uma empresa sediada em qualquer lugar deste planeta, fora da fronteira e, portanto, da soberania no Brasil10. Se ele ganha uma aposta o valor é creditado também em criptoativos e algum ganho tributável somente aparecerá no momento em que esse apostador trocar os seus criptoativos por reais, internalizado o seu valor. Eu gostaria muito de ver como essa pretendida tributação poderia funcionar para o fim da arrecadação do montante pretendido pelo Sr. Ministro da Economia.

- Pessoal, disse eu, vamos ficar por aqui hoje. Essa nossa conversa tão interessante poderia durar muito tempo ainda e já passou da hora de dormir. Boa noite a todos e muito obrigado.

- Uma última palavra, disse o Sr. BCB. Lembrem-se de que na reforma legal feita, da qual resultou a minha autonomia, me foi destinada uma tarefa complexa, mal redigida no texto legal, e que me coloca em situação de contradição interna. De um lado sou encarregado da tarefa fundamental de assegurar a estabilidade dos preços. Dou outro sou encarregado, sem prejuízo da primeira função, de suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e de fomentar o pleno emprego.

- Durma-se com um barulho desses, disse eu, que já havia pensado nessa situação11.

- Veja, Prof. Verçosa, continuou o Sr. BCB, diante do aumento internacional do preço do petróleo, com todos os reflexos negativos que isso acarreta, o que poderia eu fazer para estabilizar o preço interno dos combustíveis, decretar um tabelamento? O mesmo se diga quanto ao meu dever de suavizar as flutuações do nível de atividade. E olhem que no texto legal nada se falou de inflação. Ela ficou escondida.

- Sr. BCB, eu não o invejo. Trata-se de estar num mato sem cachorro. Muito mato e nenhum cachorro. Bem, podemos voltar a nos reunir em outra ocasião. Afinal de contas se existe alguma coisa que supera a velocidade da luz é a economia, principalmente quando ela se encontra nas mãos de líderes violentos, ignaros ou as duas coisas juntas.

E, assim, todos os participantes da reunião seguiram para os seus lares, talvez mais esclarecidos, mas não menos frustrados. Nada ajudou para melhorar os ânimos uma das últimas declarações do Sr. Presidente da República, em uma manifestação do voluntarismo econômico que não leva a nada, segundo estamos cansados da saber, quando disse que a economia brasileira crescerá mais do que os pessimistas estão prevendo. Nesse sentido pode-se dizer como afirmam os otimistas da nossa economia que nós todos iremos para o buraco. Já os pessimistas dizem que não haverá buraco para todo mundo.

E nesta hora em que novos diretores do BCB serão escolhidos pelo Sr. Presidente muita coisa passa pela nossa cabeça.

__________

1 Esse mecanismo utilizado pelos Bancos Centrais a título de política monetária informal, não tem a natureza de norma, mas de declarações ou informações que levam os destinatários a reagirem conforme as intenções daqueles órgãos no ajustamento das medidas a serem futuramente adotadas. O recurso ao forward guidance se dá, por exemplo, quando se faz a divulgação oficial pelos Bancos Centrais quanto às expectativas da inflação para um horizonte futuro determinado. O efeito esperado é o da mudança das decisões das famílias e dos agentes do mercado na direção desejada.

2 Cf. “A crise dos juros globais”, in Jornal o Estado de São Paulo de 08.03.2023.

3 Vide nota anterior.

4 Vide “A guerra contra a Ucrânia e o Direito Empresarial”, in Jornal Eletrônico Migalhas, de 21.03.2022.

5 Cf declaração de Jean-Christophe Caffe, economista-chefe da Coface, in “Guerra foi principal fator de mudança nas políticas monetárias dos bancos centrais”, in Jornal Valor Econômico de 09.02.2023. 

6 Cf. “A Dona de Casa Prudente, o teto de gastos e você”, Jornal Eletrônico Migalhas, de 24.11.20022.

7 Cf. “Ancora prevê piso de despesas e investimento: Bolsa e real sobem” Jornal “O Estado de São Paulo”, de 31.03.23.

8 Cf. “Crédito para empresas seca e renegociação de dívida dispara”, in “Jornal o Estado de São Paulo”, de 03.04.2023.

9 Cf. “Arcabouço não ajuda na redução de juros”, in “Jornal O Estado de São Paulo” de 03.04.2023

10 Vide nosso “A natureza jurídica dos criptoativos e sua utilização nos contratos”, in “Jornal Eletrônico Migalhas” de 04.02.2022.

11 Cf. “O Banco Central do Brasil em duas canoas”, I e II, in “Jornal Eletrônico Migalhas”, de 18 e 24.11.2020.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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