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As responsabilidades dos sócios das sociedades empresárias – Regime de microssistemas que não conversam entre si

Seria o caso de se pensar na construção de um super sistema de responsabilidade dos sócios, que integrasse os ramos do direito afetos às sociedades empresárias e aos seus sócios.

28/3/2023

I) Introdução

A questão das responsabilidades dos sócios das sociedades empresárias está sempre aberta a novas contribuições, servindo este texto para trazer algumas considerações oportunas – a partir de uma breve visão histórica – destacando um grave problema causador de insegurança e de incerteza jurídica para os empresários, pelo fato de que a sua atividade está sujeita do ponto de vista do direito a microssistemas que não interagem entre si, agindo na sua individualidade, do que resulta um tratamento não sistemático. Por sua vez esse fator é causa da elevação acentuada dos custos de transação, causa direta, entre outros de uma elevação dos preços e serviços colocados no mercado, que poderia certamente ser evitada a partir de um tratamento sistêmico integrado dos diversos interesses em jogo.

II – Preliminares – O tema da responsabilidade patrimonial pessoal

Voltando no tempo em uma visão necessária e na esteira das lições de Levin Goldshimidt (Storia Universale del Diritto Commerciale) verificamos que o nascimento primevo das sociedades esteve fundado na especialização da atividade mercantil (o termo atividade aqui é tomado de forma extemporânea, porque o exercício do comércio como tal por meio de empresas somente se deu em futuro muito distante).

Verificou-se na evolução histórica o surgimento de necessidades diferenciadas e novas, que não podiam ser atendidas adequadamente pelos institutos então existentes à disposição dos comerciantes, tendo sido buscados outros mais adequados ao comércio. E uma das aludidas necessidades estava na busca de uma proteção do patrimônio familiar dos riscos dos negócios encetados pelos comerciantes, fato que gerou uma separação patrimonial estabelecida ao longo do tempo na história do Direito Comercial. Observo que nesta análise não está sendo abordado o tema da personalidade jurídica das sociedades, que se deu em época relativamente muito recente.

O autor citado nos mostra que a organização capitalista da sociedade - expressão que claramente não tem o sentido moderno, mas que serve para indicar a existência de um capital próprio utilizado em um negócio mercantil – teve origem na divisão do trabalho, fundada inicialmente na escravidão da mão de obra utilizada. Esse sistema que veio a receber muitos séculos depois a condenação praticamente unânime das nações, mas que ainda resiste em alguns lugares – até no Brasil, como vimos recentemente pelo noticiário – foi um substituto do a assassinato dos inimigos vencidos nas guerras. Afinal de contas, valendo uma visão puramente econômica e sem coração, valia mais a pena escravizar do que matar.

Dando um grande salto na história, sabemos que o modelo econômico na Idade Média – feudalismo – era fundado no servo da gleba, cuja situação era análoga praticamente à de um escravo, com certo abrandamento, conforme nos ensina Levin Goldshimidt, com algumas diferenças, por exemplo: (i) estava preso a um determinado pedaço de terra; (ii) não podia se mudar; (iii) não podia ser expulso; (iv) parte do seu trabalho pertencia ao senhor feudal; e (v) tinha direito preferencial sobre os frutos do cultivo para a sua manutenção e de sua família. Ou seja, o direito de ir e vir e de ganhar o sustento por outro meio simplesmente não existia.

Esse modelo muito duradouro começou vagarosamente a ser substituído pela novidade do aparecimento de pequenos proprietários agrícolas, como resultado do esvaziamento do feudalismo. Dessa forma, aos poucos, começaram a aparecer pequenos negócios profissionais (isto é, o titular vivia da renda correspondente). Paralelamente à superação dos feudos, desenvolveram-se os burgos (origem de muitas das futuras cidades na Europa), reunindo um crescimento populacional fixo e um comércio que ainda se expressava por uma produção predominantemente artesanal.

No ambiente acima descrito em traços muito singelos começaram a surgir associações que, na verdade, foram o embrião das sociedades comerciais que hoje conhecemos, nas quais se notou a progressiva divisão do trabalho, não somente entre os membros das famílias de comerciantes, que era a unidade mercantil típica, mas com a colaboração de estranhos, na figura de prepostos, dotados de poderes para a realização de negócios em nome do dono da empresa. Claro que esse fato se deu porque os comerciantes passaram a atuar em outros lugares além daquele do estabelecimento original.

Deu-se, então, a utilização de institutos originadores das sociedades que chegaram até os tempos atuais, com o desaparecimento de algumas delas, até mesmo aquelas que seriam extremamente úteis aos desígnios dos empresários, conforme veremos mais adiante.

Em breve apanhado notamos a larga utilização da comenda, que veio a ser a base das futuras sociedades em comandita simples e comandita por ações. Eram utilizadas em negócios de ocasião que modernamente chamaríamos de oportunidades mercantis, hoje inerentes ao aparecimento das chamadas startups. Outro tipo foi o da sociedade em nome coletivo, nascida no princípio da era industrial, com raiz na economia doméstica praticada pelos membros da família e que mais tarde se espraiou significativamente para fora desse ambiente.

As sociedades por ações tiveram a sua raiz nas instituições de crédito público e na exploração das colônias, sendo nossas conhecidas as Companhias holandesas das Índias Ocidentais (1602) e Orientais (1621), esta precisamente aquela que foi o instrumento da pretendida colonização do Brasil encetada por Maurício de Nassau. Seu fundamento econômico estava na reunião de recursos de investidores particulares, juntamente com o rei, para a exploração de uma atividade de elevadíssimo risco, pois se muitos navios partiam dos portos europeus, muitos jamais voltavam, ainda que o lucro daqueles que chegavam aos portos de origem proporcionava resultados fantásticos em favor dos acionistas investidores, não preocupados com a morte de centenas dos tripulantes que jamais viram outra vez a sua terra. Esse modelo somente poderia subsistir com a limitação da responsabilidade dos acionistas ao valor pago por suas ações, o apanágio desse tipo social.

Goldshmidit ressaltou que essas sociedades nasceram de forma independente umas das outras, não sendo a comandita histórica ou dogmaticamente uma sociedade em nome coletivo modificada e nem o mesmo ocorreu com a sociedade anônima, ainda que tivesse havido influências de um tipo sobre o outro ao longo do tempo.

A sociedade por cotas de responsabilidade limitada foi uma moderna invenção do legislador, voltada para proporcionar a limitação da responsabilidade dos sócios ao montante do valor que faltasse para a integralização do seu capital social. Era uma forma de dar acesso aos interessados a possibilidade de exercerem uma atividade mercantil com uma responsabilidade patrimonial conhecida e limitada, de constituição mais viável para os negócios de montante menos expressivo do que aquilo que ocorria com a instituição e manutenção de companhias.

Contrariamente ao pensamento comum, de acordo com o autor citado, o emprego de capital em negócios especulativos com ganho comum e perda eventual (e muitas vezes quase certa) era bem conhecido na antiguidade e isso se dava não apenas pela instituição de uma situação patrimonial mediante o recurso a pecúlios destinados aos filhos e escravos, mas também diretamente entre pessoas não unidas pelo poder doméstico. Note-se que nas famílias de comerciantes o pater mantinha o controle do negócio familiar, mesmo quando seus filhos se tornavam mais velhos, modelo fundamentalmente baseado na tradição.

Essa limitação de responsabilidade patrimonial teria sido provavelmente conhecida na época helênica e certamente na era romana, tendo se dado por meio do recurso à comenda bancária, caracterizada: (i) pelo depósito irregular e este, por sua vez, modificado por elementos da sociedade. Esse é o mesmo tipo de depósito feito nos bancos atualmente, dando-se a transferência da propriedade da moeda considerada bem fungível em favor daqueles, que a utilizam em seu nome próprio em suas operações. Outras formas foram o recurso a negócios de crédito marítimo sobre a base da comenda e o empréstimo a câmbio marítimo.

Ou seja, responsabilidade limitada é coisa antiga e plenamente aceita, hoje combatida em larga escala em todos os microssistemas que se voltam para a tutela da atividade mercantil.

III - MODELOS DE SOCIEDADES E TIPOS DE RESPONSABILIDADE

No Direito Comercial de origem romano germânica, ao qual o Brasil se filia, verificamos fundamentalmente três modelos de sociedades por esse prisma.

(a) Sociedades de responsabilidade solidária e ilimitada

- Sociedade em nome coletivo;

- Sociedade em comandita simples – para o sócio comanditado; e

- Sociedade em comandita por ações para os sócios cujos nomes figurem na firma ou na razão social.

- Sociedade em conta de participação se o sócio ostensivo, por sua vez, for uma sociedade em nome coletivo

É de se ter em conta que tal responsabilidade não é direta, sendo necessário atender o benefício de ordem, significando dizer que o credor social deve em primeiro lugar buscar o patrimônio da sociedade para a defesa dos seus interesses e depois voltar-se para o patrimônio dos sócios, diante da insuficiência ou mesmo inexistência de recursos em nome da sociedade. Sabe-se a esse respeito que esse princípio tem sido largamente desatendido em muitas situações, com a quebra do modelo social.

(b) Sociedades de responsabilidade subsidiária e limitada

- Sociedade limitada – quanto ao capital não integralizado;

- Sociedade em comandita simples – para o sócio comanditário, obrigado tão somente pelos fundos aportados à sociedade; e

- Sociedade limitada unipessoal (Lei 13.874/2019).

- Sociedade em conta de participação, se o sócio ostensivo for uma sociedade limitada.

(c) Sociedades sem responsabilidade dos sócios

- Sociedade por ações; e

- Sociedade em nome coletivo se a sociedade for anônima.

(d) Casos especiais de modelos não societários

- Eireli (criada pela lei 12.441/2011 (introdução do art. 980-A do CC) e extinta pela lei 14.382/22).

Empresa individual de responsabilidade limitada, não caracterizada como sociedade, à luz da classificação do CC art. 44, III.

- Sociedade com investidor-anjo (LCs e 123/06 e 155/16).

Esse investidor não é sócio e não poderá ser administrador.

Como se percebe, o legislador criou institutos artificiais, sem olhar para as reais necessidades dos empresários. A Eireli que durou apenas dez anos causou uma mudança no CC, o qual deveria ser um marco legal dotado de estabilidade. Mas se esse requisito não está presente nem sequer na CF, objeto de fascículos semanalmente atualizados, essa exigência não é de se esperar concretizada em um mero código civil.

O mais grave é que o CC não agasalhou a sociedade de capital e indústria sob o pretexto de que não mais estaria sendo utilizada ou que poderia ser substituída adequadamente por aquelas que nele foram incluídas. Mas depois criou o investidor-anjo, que poderia estar perfeitamente vestido como o sócio comanditado na comandita simples.

E a sociedade limitada, jogada no colo da sociedade simples como repositório de soluções na insuficiência do regramento daquela, tornou-se uma verdadeira excrescência, um Frankenstein jurídico.

Um conselho para o legislador para uma completa racionalização do sistema societário voltado para os empresários desejosos de limitação de sua responsabilidade, estaria na criação de classes de sociedades anônimas em função do seu capital e de outros elementos, para o fim de reduzir exigências inerentes à sua constituição e funcionamento, do que resultaria até mesmo na desnecessidade da própria limitada.

IV) Microssistemas não convergentes na tutela da atividade empresarial

O direito, na verdade, é uma unidade orgânica que tão somente é construído em microssistemas para o fim de racionalizar a sua utilização pelos diversos agentes. Mas como sabemos eles estão frequentemente se interpenetrando por meio de uma racionalidade própria dos ordenamentos de origem romano-germânica a partir segundo uma pirâmide invertida, que tem na cúpula a CF.

Os principais microssistemas voltados para a atividade empresarial são o próprio Direito Comercial, o Direito Tributário, o Direito Trabalho, o Direito do Consumidor e o Direito Concorrencial. De um tempo a esta parte também o Direito do Agronegócio passou a tutelar essa atividade até mesmo de forma bastante intensa, o qual estabelece limites para o uso da propriedade e vincula a produção a determinados parâmetros. Vamos tratar um pouco apenas dos três primeiros.

No uso das sociedades pelos empresários a não convergência entre os direitos em questão se dá, legitimamente, em cada um daqueles ramos do direito segundo a sua lógica própria, ainda que de forma não desejável quando se pensa em eficiência.

Direito do Trabalho

A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT não autoriza diretamente a responsabilização dos sócios pelas obrigações da sociedade, caso em que seria aplicável também nesse campo o regramento do Direito Comercial acima analisado. O que se encontra naquele diploma legal são normas sobre a responsabilidade das sociedades integrantes de grupos econômicos (art. 2º, §§ 2º e 3º, conforme reforma pela lei 13.467/18). Dessa forma, o tratamento dessa responsabilidade teria por base o art. 266 da LSA, segundo o qual as relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade conservará personalidade e patrimônios distintos.

No entanto, a responsabilização dos sócios pelas obrigações trabalhistas em qualquer tipo de sociedade empresária tem sido feita no âmbito do Direito do Trabalho pelo recurso ao nosso ver frequentemente abusivo da desconsideração da personalidade jurídica (incluída a novidade da desconsideração inversa), fato que é notório entre os operadores do direito. E o que é pior, essa técnica tem ultrapassado quaisquer limites, com a responsabilização de terceiros estranhos, é evidente, ao quadro social, processo ao qual eu tenho chamado de “chercher l’argent”, ou seja, o juiz sai atrás de dinheiro para a satisfação do credor trabalhista onde quer que se encontre, tendo sido criado um folclore jurídico sobre esse assunto. A exegese dessa responsabilidade toma emprestado o art. 28 do CDC, o que é indevido, já que se trata de outro microssistema, erigido para a proteção do consumidor e não do empregado1.

Para não cansar o leitor vamos analisar brevemente a técnica voltada para a responsabilidade dos sócios nas execuções trabalhistas. Nesses termos, no RR 02549-2000-012-05-00, de 29/2/02, Rel. Helena Sobral Albuquerque, foi determinada a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade tendo em conta a natureza alimentar dos créditos trabalhistas, dotado de privilégios, devendo, portanto, serem assegurados, tão somente porque o patrimônio societário se mostrava insuficiente para cobri-los, não se falando em qualquer momento da fraude como fundamento da decisão. Em julgado mais recente, cuja orientação permanece até a atualidade, bastou a prova de que a sociedade não tinha bens suficientes para o pagamento da obrigação trabalhista como fundamento para a desconsideração de sua personalidade jurídica.

Direito Tributário

No Direito Tributário seriam aplicáveis quando se trata de sócios os arts. 124, 128, 134, inciso VII e 135, inciso I do CTN. Vejamos.

Nos termos do art. 124 os sócios poderiam ser alcançados na qualidade de pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal. Ocorre que, sendo apenas sócio e não administrador, esse interesse comum, se presente, não poderia ser objeto de qualquer ação efetiva de sua parte e, assim, ele poderia ser responsabilizado em situação de completa inação quanto ao fato gerador da obrigação de que se trata. O mais grave é que tal responsabilidade não é favorecida pelo benefício de ordem, podendo ser exercida de forma direta contra o patrimônio do sócio. O mesmo artigo se refere a uma responsabilidade tributária do sócio se assim tiver sido destinatário de designação expressa de lei para tal fim.

A mesma responsabilidade tem fundamento do art. 128, ao dispor que terceira pessoa (no nosso caso o sócio) pode ser tributariamente responsabilizado em virtude de lei, desde que ele estivesse vinculado ao fato gerador da respectiva obrigação, trazendo-se aqui a mesma observação acima feita.

No caso de liquidação de sociedade de pessoas os sócios podem ser responsabilizados, na forma do art. 134, inciso VII. Observe-se que o conceito de sociedade de pessoas não tem respaldo legal, mas tão somente doutrinário, relativo àquelas nas quais o elemento preponderante na sua organização e funcionamento é a colaboração pessoal, menos do que o seu aporte de capital, que pode até mesmo ser insignificante no contrato social. Essa imputação de responsabilidade não apresenta qualquer lógica econômica e jurídica. Veja-se que o dispositivo não se refere a alguma liquidação fraudulenta, mas a uma liquidação pura e simples, na qual, caracterizado patrimônio líquido negativo, os seus sócios serão responsabilizados – e de forma solidária -, verificada a impossibilidade da exigência do cumprimento da obrigação principal, relativamente a atos em que tiverem interferido ou pelas omissões de que forem responsáveis.

No tocante ao art. 135, os sócios poderiam ser responsabilizados, como pessoas referidas no art. 134, desde que se verificasse uma obrigação tributária resultante de atos com excesso de poderes ou diante de infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto.

Em adendo ao que já foi afirmado, tratando-se de sócio que não seja ao mesmo tempo administrador, ele não interfere na gestão e consequentemente não pode ser omisso quanto às obrigações solidárias, a não ser que fique provada a sua condição de administrador de fato.

Essa visão limitativa da responsabilidade de sócios foi objeto de recentes decisões do CARF, no sentido de que o Fisco é obrigado a provar a presença do aludido interesse comum ou atuação com excesso de poder ou cometimento de infração2. Disso resulta a adequada aplicação da lei e a geração de segurança e incerteza quanto aos sócios não administradores.

Direito do Consumidor

At last, but not least, passemos a examinar as presentes questões quanto ao inefável Direito do Consumidor o qual, ainda que mais seja o mais novo em relação aos dois outros microssistemas jurídicos, os influenciou direta e fortemente pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, feita de forma absolutamente não técnica e abusiva.

O fundamento específico da desconsideração da personalidade jurídica do sócio encontra-se no art. 28 do CDC, conhecido de todos os operadores do direito. A qualificação da conduta do sócio para o fim da desconsideração deve ter necessariamente por base o abuso de direito, o excesso de poder, a infração da lei, o fato ou o ato ilícito, a violação da lei ou do estatuto, a par de falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica, desde provados por má administração. Quando se trata de sociedades integrantes de grupos societários ou controladas, está presente uma ou obrigação subsidiária.

Mais uma vez, o que deve ser posto de forma até mesmo exaustiva, o sócio não administrador não se encontra nas situações acima, o que poderia ocorrer se fosse caracterizado como administrador de fato.

O ponto mais problemático e que sem sido a base de inúmeras decisões dos tribunais, se encontra no parágrafo 5º do art. 28, onde se lê que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

Ora, fazendo-se uma leitura muito simples, mas não menos verdadeira desse dispositivo, pode-se dizer que tão somente o fato da personalidade jurídica de uma sociedade limitada ou anônima, na qual a responsabilidade dos sócios não é direta, mas condicionada (limitada) ou não existe (anônima) já caracterizaria o tipo normativo para efeito da desconsideração de sua personalidade jurídica, sendo assim ferido claramente o princípio constitucional da autonomia privada, cujo exercício levou os sócios licitamente a escolherem tipos sociais nos quais a sua responsabilidade não está presente ou isso acontece segundo circunstâncias especiais.

Uma forte deturpação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no ambiente do Direito do Consumidor ficou consubstanciada pela adoção da chamada teoria menor3, que estaria fundada no art. 28 do CDC, segundo a qual basta a frustração do credor em relação ao não recebimento do seu crédito devido por uma sociedade para que o instituto se aplique, o que foi referendado pelo STJ. Para não nos alongarmos no assunto, pois uma discussão mais extensa e profunda nos levaria muito longe, basta citar a decisão do STJ no RESP 279.273 – SP (2000/0097184-7), Relatora para o acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJ 29/3/04, que assim se manifestou na parte que nos interessa:

- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

 - Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.

- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Ou seja, a mera prova da insolvência da pessoa jurídica seria o gatilho para a sua desconsideração, considerando-se nessa visão que o risco empresarial que é normal às atividades econômicas e que não poderia ser suportado por terceiros, mas sim pelos sócios e/ou administradores, mesmo que tenham demonstrado a sua diligência.

Muita água correu debaixo das pontes em muitos rios depois de prolação desse acórdão, mas ele mostra um entendimento ainda presente, tanto na doutrina como na jurisprudência, a elevar de forma injustificável, segundo o nosso entendimento, a responsabilidade patrimonial dos sócios tout court. Isso é absolutamente lamentável.

Conclusões

Como foi possível verificar neste estudo, que ainda poderia ser muito mais aprofundado, a vida dos sócios das sociedades empresárias é eivada de riscos muito maiores do que seria esperado segundo as leis que regem os tipos societários presentes no direito brasileiro, especialmente quanto às sociedades limitadas e a anônima.

Tal como tem lamentavelmente acontecido, não se trata de risco, que poderia ser mensurável, mas de uma profunda incerteza, que deixa o empresário à mercê das oscilações, do doutrinador, do legislador e do Judiciário frequentemente inconsequentes, seja como resultado do desconhecimento dos princípios dos microssistemas envolvidos, seja por pura ideologia.

Seria o caso de se pensar na construção de um super sistema de responsabilidade dos sócios, que integrasse os ramos do direito afetos às sociedades empresárias e aos seus sócios, acima examinados, sem esgotá-los, de forma que o chamado risco Brasil fosse devidamente equacionado, dando-se o surgimento de um padrão de certeza quanto aos riscos enfrentados quando se exerce uma atividade econômica por meio de uma sociedade cuja estrutura é dotada de responsabilidade limitada. 

Sonhar é preciso.

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Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

2 Cf. “CARF muda posição sobre penhora de bens de sócio por infração fiscal”, in jornal “Valor econômico” de 21/3/23.

3 Em contrapartida à teoria maior, que exige para a desconsideração a caracterização de requisitos específicos, a par do descumprimento de uma obrigação pela sociedade, como seja, por exemplo, a constatação de fraude ou a confusão patrimonial, presente no art. 50 do CC.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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