O Judiciário, constituído como um dos poderes da União Federal (art. 2º, da Constituição Federal), composto por seus órgãos estruturais (art. 92, da CF), ao longo do tempo e de forma incisiva, executa sua função jurisdicional a fim de dirimir os conflitos sociais públicos e privados.
Logo, cabe-lhe a função de dizer o direito (juris dictio) de forma congruente. A fim de que possa cumprir a missão de dizer o direito, o Judiciário assume a responsabilidade de interpretar as normas legais, analisar os fatos descritos no processo, para realizar a correta subsunção do fato à norma.
Neste contexto, precisamos esclarecer as diferenças existentes na natureza jurídica dos instrumentos de expropriação de bens na fase de execução – seja por título judicial ou extrajudicial –, de acordo com a legislação vigente. Além disso, cuidaremos de indicar como a jurisprudência tem interpretado tais conceitos em uma situação bastante peculiar, a ser apresentada.
Anteriormente, em um artigo publicado por um dos coautores deste artigo, neste mesmo veículo1, discorreu-se sobre a possibilidade de o exequente arrematar bens imóveis do devedor em leilão judicial com seus próprios créditos, nos termos do art. 892, §1º, do CPC2.
Naquele artigo, observou-se, ainda, que, apesar de os leilões judiciais demandarem uma maior complexibilidade e morosidade em sua forma procedimental do que as adjudicações, se trata de um método mais efetivo para a satisfação dos créditos do exequente, visto que o imóvel será incorporado no ativo patrimonial do credor, livre de quaisquer ônus tributários (conforme art. 130, parágrafo único, do CTN3) e registrários, dada a sua forma de aquisição originária.
Ocorre que, com o passar do tempo, novos entendimentos surgem no âmbito dos Tribunais.
Dentre os entendimentos, destacamos o acórdão do Agravo de Instrumento 2175207-13.2022.8.26.0000, de relatoria do Desembargador Botto Muscari, da 18ª Câmara de Direito Público, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP).
No caso in concreto, uma sociedade de advogados, detentora de créditos em face de um devedor, utilizou-se da legislação processual vigente (art. 892, §1º, do CPC) para participar em hasta pública – ou seja, concorrendo igualitariamente com os demais interessados – a fim arrematar um imóvel do executado. Não havendo outros licitantes ou credores e tendo sido o imóvel arrematado com seus próprios créditos em junho de 2020, houve a expedição da carta de arrematação.
Passados alguns anos, a Prefeitura de Votuporanga (SP) distribuiu Execução Fiscal, a fim de cobrar IPTU dos exercícios de 2016 até 2018 em face do antigo proprietário (devedor). Requereu, ainda, a indisponibilidade de todos os seus bens. Por precaução e como terceira interessada, a sociedade de advogados requereu o cancelamento de eventuais indisponibilidades constantes nas matrículas dos imóveis que foram objeto de sua arrematação, com a juntada dos respectivos documentos comprobatórios.
Com a manifestação da Administração Pública Municipal, o Juízo a quo decidiu e constatou que, ao invés de ter ocorrido arrematação com os próprios créditos pela sociedade de advogados, na realidade, teria ocorrido uma adjudicação do imóvel, razão pela qual não haveria a aplicação do art. 130, parágrafo único, do CTN, visto que não houve depósito da dívida tributária.
Embora pareça destoante do teor legal, o MM. Juízo de origem incluiu o novo proprietário-arrematante dos imóveis no polo passivo da execução fiscal sem a substituição da CDA, em detrimento ao posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça4. Sem êxito na instância de origem, a sociedade de advogados interpôs o dito Agravo de Instrumento ao Tribunal de Justiça de São Paulo.
Segundo o ponto de vista do d. Desembargador Botto Muscari, da 18ª Câmara de Direito Público e dadas as peculiaridades do caso, a decisão do Juízo a quo foi mantida. Em sua fundamentação, destacou que a arrematação com os próprios créditos alcançada pela sociedade de advogados não possuía um “preço” (depósito) pelo qual pudesse sub-rogar-se o crédito municipal, asseverando como correta a inclusão da Agravante no polo passivo da execução fiscal.
Mais recentemente, o TJ/SP, envolvendo outra situação fática semelhante, julgou o Agravo de Instrumento 2268551-48.2022.8.26.0000, por sua c. 9ª Câmara de Direito Privado, e, ao analisar a responsabilidade pelo pagamento do IPTU em arrematação com os próprios créditos, concluiu que a dita arrematação, na verdade, configuraria uma adjudicação, considerando que “a aquisição do bem serviu para saldar parte do crédito que a agravante possui com o antigo proprietário, inexistindo qualquer depósito em dinheiro, bem como quantia a ser destinada ao pagamento do débito tributário (IPTU)”.
Dessa forma, também se entendeu pela inaplicabilidade do art. 130, parágrafo único, do CTN.
Neste ponto, é imperioso salientar que tanto a adjudicação quanto a arrematação constituem formas de alienação forçada dos bens do devedor. Em que pese as duas situações, na prática, culminem na satisfação do crédito do exequente, na medida em que o bem penhorado passará a integrar sua esfera patrimonial, ocorrem por meio de procedimentos distintos.
Neste passo, o jurista Nicolau Balbino Filho5 aponta a diferença entre a aquisição derivada e originária. Na primeira, o sucessor adquire o bem com todas as limitações e restrições existentes: se o imóvel estiver hipotecado, com dívidas tributárias ou onerado com uma servidão, o adquirente deverá suportá-lo. Nesta segunda, a aquisição originária, a pessoa adquire o bem sem quaisquer limitações ou vícios que porventura possam existir antes da aquisição.
Adjudicar, em linhas gerais, significa aceitar receber um bem que é de propriedade do devedor – pelo valor da avaliação –, como forma de satisfação do crédito, no entanto, por meio de um ato de expropriação e não mediante dação em pagamento. Ou seja, deve haver manifestação de vontade do credor nesse sentido e não necessariamente do devedor, porquanto este sofre a excussão.
Deste modo, precisamos ser cautelosos quanto à natureza jurídica dos instrumentos de expropriação de bens. Com relação à adjudicação, por exemplo, foi decidido no REsp 1.073.846/SP, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que os impostos incidentes sobre o patrimônio (ITR e IPTU) decorrem de relação jurídica tributária instaurada com a ocorrência da hipótese de incidência ante a titularidade de direito real, razão pela qual consubstanciam obrigações propter rem, impondo-se sua assunção a todos aqueles que sucederem ao titular do imóvel.
Por outro lado, a arrematação de bem em leilão judicial é um modo de aquisição originária da propriedade, inexistindo qualquer relação jurídica entre o antigo proprietário do bem e o arrematante, pois este não se amolda à figura do responsável tributário, estampada no art. 121, parágrafo único, II, do CTN.6
Pela prerrogativa obtida pelo credor-arrematante na legislação processual (art. 892, §1º, do CPC), ao se submeter a um leilão público realizado em processo judicial, este corre riscos de que lances ofertados por terceiros prevaleçam sobre o seu.
Em outras palavras, arrematação é a venda forçada de bem de devedor, em leilão judicial, para que o produto da alienação sirva como pagamento ao credor. Na hipótese de arrematação com os próprios créditos, o credor se submete ao leilão público, em pé de igualdade com terceiros, com a diferença de que paga pela aquisição originária do bem utilizando o próprio crédito que possui em face do devedor.
Como é sabido, os débitos de natureza tributária incidentes sobre os imóveis levados à hasta pública não serão transferidos ao arrematante, tendo em vista que não existe relação jurídico-tributária entre o adquirente judicial e o antigo proprietário do bem. Reafirmando tal ponto, o Ministro Luiz Alberto Gurgel de Faria já se pronunciou sobre o art. 130, parágrafo único, do CTN:
“Regra interessante consta no parágrafo único, no sentido de que os tributos porventura existentes nas situações destacadas no caput sub-rogam-se no lanço ofertado, quando os imóveis são arrematados em hasta pública, demonstrando que nenhuma obrigação será repassada ao arrematante.”7
Em regra, observamos que o crédito fiscal perquirido pelo Fisco é abatido pelo pagamento/depósito do preço nos autos. Situação diversa do decidido no Agravo de Instrumento 2175207-13.2022.8.26.0000, do TJ/SP, posto que se trata de uma possibilidade específica trazida pela legislação processual (art. 892, §1º, do CPC).
Assim, encerrada a arrematação, não se pode imputar qualquer encargo ou responsabilidade tributária ao credor-arrematante. Se o preço alcançado na arrematação em hasta pública não for suficiente para cobrir o débito tributário, nem por isso o arrematante fica responsável por eventual saldo8.
Como se vê, a jurisprudência do Tribunal tem despertado um desequilíbrio interpretativo da legislação, com a mudança da natureza dos instrumentos de expropriação de bens na fase de execução, imputando, por consequência, ao credor-arrematante o ônus de arcar com dívidas tributárias pretéritas.
Entendemos, entretanto, que este posicionamento apenas irá impor novos entraves aos exequentes/credores, na medida em que a arrematação com os próprios créditos poderá deixar de ser tão atrativa para satisfação da execução, a depender do caso concreto.
Relembramos aos leitores que a legislação processual (art. 892, §1º, do CPC) e as leis tributárias (art. 130, parágrafo único, do CTN) protegem e garantem ao credor a possibilidade de arrematar imóveis do executado com os seus próprios créditos, sem qualquer ônus tributário anterior, em uma leitura sistemática.
Ao que parece, o Poder Judiciário, estimulado por um inconsciente ímpeto corporativista de defesa do Estado, por vezes, acaba por interpretar os institutos da maneira mais favorável ao Fisco.
Na medida em que os julgadores alteram a natureza jurídica do instituto da arrematação com os próprios créditos – que se distingue da adjudicação – pela mera existência ou não de débitos de IPTU, ocasionam uma nítida insegurança jurídica em desfavor dos exequentes. Ao permitir que a arrematação com os próprios créditos atraia o risco de assunção de dívida tributária pretérita, o que é uma consequência inerente à adjudicação, a jurisprudência cria um conceito de arrematação sui generis, não respaldado por previsão legal, o que causa impacto à legítima expectativa do arrematante ou, em última análise, o desestimula a lançar mão do instituto.
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1 CORRÊA, Gustavo Rocco; MIRANDA, Amanda. O crédito do exequente e a possibilidade de arrematação de bem imóvel em leilão judicial. Migalhas, 05 jul. 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/369109/o-credito-do-exequente-e-a-possibilidade-de-arrematacao.
2 Art. 892, § 1º, do CPC: “Salvo pronunciamento judicial em sentido diverso, o pagamento deverá ser realizado de imediato pelo arrematante, por depósito judicial ou por meio eletrônico”
§ 1º Se o exequente arrematar os bens e for o único credor, não estará obrigado a exibir o preço, mas, se o valor dos bens exceder ao seu crédito, depositará, dentro de 3 (três) dias, a diferença, sob pena de tornar-se sem efeito a arrematação, e, nesse caso, realizar-se-á novo leilão, à custa do exequente.”
3 Art. 130, parágrafo único, do CTN: “Os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, e bem assim os relativos a taxas pela prestação de serviços referentes a tais bens, ou a contribuições de melhoria, subrogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, salvo quando conste do título a prova de sua quitação.
Parágrafo único. No caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço.”
4 STJ – Súmula 392: A Fazenda Pública pode substituir a certidão de dívida ativa (CDA) até a prolação da sentença de embargos, quando se tratar de correção de erro material ou formal, vedada a modificação do sujeito passivo da execução.
5 BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de imóveis. 16ª Ed, São Paulo: Saraiva, 2012, p.532.
6 Art.121, parágrafo único, II, CTN - responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei.
7 FARIA. Luiz Alberto Gurgel de. Código Tributário Nacional Comentado. 6ª Ed, São Paulo: RT, 2013, p.690.
8 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 2º vol. 3ª Edição, 1995, p.513.