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A viabilização do Direito de Sequência por meio da blockchain

O Direito de Sequência, também conhecido como droite de suite, permite que artistas recebam porcentagens sobre a valorização de suas obras, e a Blockchain pode ser a chave para garantir sua aplicação.

27/3/2023

Direito de Sequência e sua subutilização

O artigo 38 da lei de Direitos Autorais1 se debruça sobre um direito patrimonial por muitas vezes esquecido no mundo jurídico: o direito de sequência. Nas palavras de Carlos Alberto Bittar2, trata-se do direito de autor de obra de arte ou de manuscrito original “de participar do aumento de preço que, em favor do vendedor, a eles advieram, em cada nova alienação”.

Tal direito é irrenunciável e inalienável, sendo dever do vendedor ou leiloeiro da obra de arte em depositar pelo menos 5% do valor do aumento de preço advindo da revenda. Trata-se, portanto, de ferramenta importante de vinculação permanente da obra de arte ao autor.

Entretanto, é notável a dificuldade na efetivação deste direito, uma vez que é comum no mercado de arte que o autor não seja notificado de cada revenda de sua obra de arte, sendo necessário o pagamento voluntário pelo vendedor ou leiloeiro do valor devido decorrente do direito de sequência ao autor da obra de arte ou manuscrito.

Outro grande problema é entender qual o valor exato a ser pago ao autor da obra, dado que tal valor tem como base o aumento de preço entre a venda precedente e a venda atual, sendo que muitas vezes esses valores não são nem mesmo identificáveis, dada a falta de transparência do mercado de arte.

Blockchain: A solução para o problema

Entretanto, o mercado de arte pode finalmente ter a resposta para que o direito de sequência não seja mais tão subutilizado: a criação de smart contratcts atrelados a obras de arte e manuscritos, inseridos em uma rede Blockchain.

Smart Contracts podem ser definidos como “um protocolo de transações computadorizadas que executa os termos de um contrato”3. Nada mais é do que um acordo de vontade digital, capaz de cumprir condições contratuais automaticamente, aproveitando-se da segurança e descentralização provenientes da Blockchain.

Esse processo de inserção de obras de arte dentro de uma rede Blockchain, com a possibilidade de registro das condições contratuais chama-se tokenização. A tokenização produz um código único, transparente e imutável chamado de token, capaz de ser transferido a um terceiro interessado. Inclusive, tal processo de tokenização não apenas serve como um contrato inteligente para obras de arte e manuscritos, mas também como um certificado de autenticidade e propriedade, garantindo também a infungibilidade destes bens.

Assim, o próprio autor original da obra de arte ou manuscrito poderá criar um smart contract atrelado a sua obra de arte ou manuscrito que estabeleça condições de transferências futuras, instituindo que o valor decorrente de seu direito de sequência seja revertido automaticamente a sua carteira digital. Percebe-se que, pela própria natureza contratual do token, é possível que, com grande facilidade, o artista coloque condições de porcentagens acima dos 5% sobre o lucro de revenda estabelecidos pela Lei de Direitos Autorais.

Desta forma, a Blockchain traz facilidade e maior certeza não só ao autor de obra de arte e manuscrito, mas também ao revendedor da obra e a possível terceiro interessado que queira colecionar o artigo de arte, repassando de forma automática os valores e bens devidos para cada parte.

Fracionamento dos smart contracts de obras de arte e manuscritos: trazendo liquidez para um mercado ilíquido

Os protocolos de Blockchain atualmente permitem o fracionamento de smart contracts4 em infinitas quota-partes para a revenda destes ativos para possíveis investidores.

Para o mercado de obras de arte e manuscritos, onde a maioria dos bens possui preços de revenda muito altos, o fracionamento dos smart contracts em quota partes é a resposta para a flexibilização da compra destes ativos, garantindo que uma grande quantidade de investidores tenha a oportunidade de possuir uma fração de propriedade de uma obra de arte ou manuscrito.

Claro que, por ser o caso de uma obra física e não de um bem digital, como um NFT5, é impossível que o bem esteja em posse de todos os seus donos. Inclusive, a posse do bem físico poderá estar definida no próprio smart contract, estabelecendo, por exemplo, que a posse esteja nas mãos do investidor que possua a maioria das quotas partes do smart contract, ou então que o bem físico esteja em posse de algum museu de artes (podendo o preço do arrendamento da obra ser dividido para cada respectivo proprietário do smart contract).

Ademais, a liquidez gerada pelo fracionamento dos certificados digitais não acontece apenas na etapa de venda das quota-partes do smart contracts, mas também do valor do direito de sequência devido ao autor da obra de arte ou manuscrito. Logo, seria possível a elaboração de condição contratual na qual, a cada revenda de fração do smart contract referente a obra de arte ou manuscrito, o autor recebesse uma porcentagem sobre a mais-valia do bem, aumentando a frequência do recebimento do valor decorrente do direito de sequência devido ao autor.

Conclusão

A possibilidade de fracionamento de smart contracts trouxe facilidade para que obras de arte e manuscritos originais possuam múltiplos donos, transformando o mercado de arte em uma alternativa plausível para pequenos e médios investidores, criando um mercado plural e diverso e gerando liquidez a um mercado que, no passado, fora tão ilíquido.

Este novo mercado possui como coluna espinhal a tecnologia Blockchain que, anteriormente utilizada apenas como a base de funcionamento de criptomoedas, agora também se mostra como uma resposta para a resolução de problemas dentro do campo da Propriedade Intelectual. Especificamente no mercado de compra e venda de obras de arte e manuscritos originais, a Blockchain será utilizada não só para a comprovação automática da autoria de bens, mas também para que o direito de sequência, outrora tão subutilizado e de difícil comprovação, seja amplamente garantido aos seus autores.

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1 Art. 38. O autor tem o direito, irrenunciável e inalienável, de perceber, no mínimo, cinco por cento sobre o aumento do preço eventualmente verificável em cada revenda de obra de arte ou manuscrito, sendo originais, que houver alienado.

2 Parágrafo único. Caso o autor não perceba o seu direito de seqüência no ato da revenda, o vendedor é considerado depositário da quantia a ele devida, salvo se a operação for realizada por leiloeiro, quando será este o depositário.

3 Bittar, Carlos Alberto. Direito de Autor / Carlos Alberto Bittar: revista, atualizada e ampliada por Eduardo C. B. Bittar. 8ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2022 – páginas 80 – 81.

4 Definição dada por Nick Szabo, criador do conceito de smart contracts em 1994.

5 https://jolt.richmond.edu/2021/11/11/democratizing-nfts-f-nfts-daos-and-securities-law/. Acessado em 10/01/2022.

6 Os NFTs, sigla em inglês para non-fungible tokens, são representações digitais de bens infungíveis, isto é, de bens que não podem ser trocados ou divididos por outros da mesma espécie. Para a obtenção desta "infungibilidade", os NFTs são atrelados a redes blockchains que garantem a sua autenticidade e excepcionalidade. Todo e qualquer bem digital pode ser transformado em um NFT: desde uma simples imagem a até mesmo uma música.

 

Gabriel Abrão Giacummo
Atuação na área de Direito Digital e Propriedade Intelectual.

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