O furto de energia elétrica está previsto no art. 155, §4º, II, do Código Penal, com pena de reclusão de dois a oito anos, e multa, e tem como objeto jurídico tutelado o patrimônio.
Está pacificado, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento que a natureza jurídica da remuneração paga pelo consumidor à concessionária de energia elétrica é conceitualmente considerada tarifa e, portanto, não possui caráter tributário para fins de aplicação do artigo 34, da lei 9.249/95, e do art. 9º, §2º, da lei 10.684/03, nas hipóteses de furto de energia elétrica, onde o infrator paga integralmente a dívida antes do recebimento da denúncia.
O art. 9º, §2º, da lei 10.684/03 possui a seguinte redação:
“Art. 9º - É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.”
O estudo em análise defende a aplicação do princípio da isonomia entre o crime de apropriação indébita previdenciária e o delito de furto de energia elétrica – ambos considerados crimes contra o patrimônio -, utilizando-se como fundamento a aplicação do artigo 9º, §2º, da lei 10.684, de 30 de maio de 2003 ao art. 155, §4º, II, do Código Penal.
Foram analisadas 47 decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça entre os anos de 2012 e 2022. Foi possível constatar que os argumentos utilizados para fundamentar o entendimento consagrado pela Egrégia Terceira Seção do STJ, no julgamento do AgRg no REsp 1.427.350/RJ merecem ser revistos, pois, apesar de o art. 34, da lei 9.249/95 fazer referência expressa à lei 8.137/90, a lei 10.684/03 faz referência expressa ao art. 168-A do Código Penal.
Portanto, se o art. 9º, §2º, da lei 10.684, de 30 de maio de 2003 dispõe que é extinta a punibilidade do crime previsto no art. 168-A do Código Penal, caso ocorra o pagamento integral do débito, essa mesma interpretação deve ser dada ao crime de furto de energia elétrica, uma vez que ambos os institutos possuem o mesmo objeto jurídico tutelado, qual seja o patrimônio.
O atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça nunca foi unânime entre as Turmas Criminais da Corte.
Em 2012, prevalecia o entendimento de que o pagamento do débito antes do recebimento da denúncia não acarretava extinção de punibilidade:
“As hipóteses de extinção da punibilidade pela quitação do débito em matéria tributária têm fundamento na política fiscal específica e, portanto, que a ela se circunscrevem.
(HC 199.959/RJ, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 19/4/12, DJe de 24/4/12.)”
Em 2013, a Quinta Turma adotou novo posicionamento, que serviu de fundamento para decisões similares até 2018. A interpretação proposta pelo Relator HC 252.802/SE Ministro Jorge Mussi foi acompanhado pelos Ministros da Sexta Turma.
“Se o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia enseja a extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, o mesmo entendimento deve ser adotado quando há o pagamento do preço público referente à energia elétrica ou a água subtraídas, sob pena de violação ao princípio da isonomia.
(HC 252.802/SE, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 3/10/13, DJe de 17/10/13.)”
Em 2018, o eminente Ministro Joel Ilan Paciornik, que foi o Relator para lavratura do Acórdão no AgRg no REsp 1.427.350/RJ, alterou o entendimento anteriormente consagrado pelas Turmas Criminais do STJ, e passou a não admitir a aplicação do princípio da isonomia entre o crime de apropriação indébita previdenciária e o delito de furto de energia elétrica.
Sua Excelência motivou essa nova interpretação na divergência existente entre objetos jurídicos tutelados em ambos os delitos:
“O crime de furto de energia elétrica mediante fraude praticado contra concessionária de serviço público situa-se no campo dos delitos patrimoniais. Neste âmbito, o Estado ainda detém tratamento mais rigoroso. O desejo de aplicar as benesses dos crimes tributários ao caso em apreço esbarra na tutela de proteção aos diversos bens jurídicos analisados, pois o delito em comento, além de atingir o patrimônio, ofende a outros bens jurídicos, tais como a saúde pública, considerados, principalmente, o desvalor do resultado e os danos futuros.
(AgRg no REsp 1.427.350/RJ, relator Ministro Jorge Mussi, relator para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 20/2/18, DJe de 14/3/18.)”
Em 2019, essa nova interpretação foi ratificada pela egrégia Terceira Seção do STJ:
“Nos crimes patrimoniais existe previsão legal específica de causa de diminuição da pena para os casos de pagamento da "dívida" antes do recebimento da denúncia. Em tais hipóteses, o Código Penal - CP, em seu art. 16, prevê o instituto do arrependimento posterior, que em nada afeta a pretensão punitiva, apenas constitui causa de diminuição da pena.
A jurisprudência se consolidou no sentido de que a natureza jurídica da remuneração pela prestação de serviço público, no caso de fornecimento de energia elétrica, prestado por concessionária, é de tarifa ou preço público, não possuindo caráter tributário. Não há como se atribuir o efeito pretendido aos diversos institutos legais, considerando que os dispostos no art. 34 da lei 9.249/95 e no art. 9º da lei 10. 684/03 fazem referência expressa e, por isso, taxativa, aos tributos e contribuições sociais, não dizendo respeito às tarifas ou preços públicos.
(RHC 101.299/RS, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 13/3/19, DJe de 4/4/19.)”
Subsequentemente, em respeito ao princípio da colegialidade, a Sexta Turma começou a aplicar a nova interpretação sedimentada no RHC 101.200/RS, que, aliás, prevalece até os dias atuais:
“A decisão ora embargada aderiu à jurisprudência então vigente e, com a ressalva de entendimento pessoal e em respeito à colegialidade, reconheceu a extinção de punibilidade e determinou o trancamento do processo.
Todavia, a Terceira Seção do STJ, no julgamento do RHC 101.299/RS, firmou posição no sentido de que é inviável o reconhecimento da extinção da punibilidade pela quitação de débito no caso de crime de furto de energia elétrica.
(AgRg no HC 386.710/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 23/4/19, DJe de 30/4/19.)”
Como se observa na ementa que alterou o entendimento vigente até 2018, o principal argumento utilizado pelo eminente Ministro Joel Ilan Paciornik, no julgamento do AgRg no REsp 1.427.350/RJ, foi fundamentado na impossibilidade de se aplicar as benesses previstas na lei 10.684/03 a institutos jurídicos distintos:
“O desejo de aplicar as benesses dos crimes tributários ao caso em apreço esbarra na tutela de proteção aos diversos bens jurídicos analisados.”
Ocorre que o art. 168-A do Código Penal possui o mesmo objeto jurídico tutelado do art. 155, §4º, II, do Código Penal, qual seja o patrimônio, e o art. 9º, §2º, da lei 10.684/03 é claro ao declarar a extinção da punibilidade, pelo pagamento integral da dívida, do art. 168-A do Código Penal:
“§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.”
Confira a ementa do HC 122.612/SP, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 5/3/2009, DJe de 30/3/09:
“O crime de apropriação indébita previdenciária, consubstancia delito omisso material, exigindo, pois, para a sua consumação efetivo dano, já que o objeto jurídico protegido é o patrimônio da previdência social, motivo pelo qual a constituição definitiva do crédito tributário é condição de procedibilidade para que se dê início à persecução criminal. Precedente do STF (Inq-AgR 2537/GO).
(HC 122.612/SP, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 5/3/09, DJe de 30/3/09.)”
Aliás, consta da ementa do julgamento que serviu de base para a alteração do entendimento consagrado até o final de 2018, que o objeto jurídico tutelado no crime de furto de energia elétrica é o patrimônio:
“O crime de furto de energia elétrica mediante fraude praticado contra concessionária de serviço público situa-se no campo dos delitos patrimoniais.
(RHC 101.299/RS, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, julgado em 13/3/19, DJe de 4/4/19.)
Portanto, ainda que os crimes previstos nos arts. 1º e 2º da lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337A do Código Penal sejam distintos entre si, há convergência de objetos jurídicos entre o art. 168-A e 155, §4º, II, ambos do Código Penal, ou seja, a tutela do Estado ao patrimônio alheio, e, à luz do princípio da isonomia, as benesses concedidas pelo art. 9º, §2º, da lei 10.684/03 ao crime previsto no art. 168-A do Código Penal devem ser estendidas ao crime do art. 155, §4º, II, do Código Penal (furto de energia elétrica), de modo a fazer valer o entendimento que vigora no âmbito do Superior Tribunal de Justiça até o final de 2018.
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(AgRg no AREsp n. 522.504/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 4/11/2014, DJe de 17/11/2014.)
(RHC n. 56.782/CE, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 7/4/2015, DJe de 22/4/2015.)
(RHC n. 59.656/MG, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, relator para acórdão Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 24/5/2016, DJe de 7/6/2016.)
(HC n. 384.399/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/4/2017, DJe de 5/5/2017.)
(AgRg no REsp n. 1.427.350/RJ, relator Ministro Jorge Mussi, relator para acórdão Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 20/2/2018, DJe de 14/3/2018.)
(AgRg no HC n. 386.710/PR, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 23/4/2019, DJe de 30/4/2019.)”
(AgRg no AREsp n. 1.484.708/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 28/4/2020, DJe de 4/5/2020.)”
(AgRg no AREsp n. 1.763.650/PR, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 30/9/2021.)”
(AgRg no RHC n. 163.108/RJ, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 2/8/2022, DJe de 12/8/2022.)”
(HC n. 30.431/RS, relator Ministro Paulo Gallotti, Sexta Turma, julgado em 2/9/2004, DJ de 10/4/2006, p. 301.)