Migalhas de Peso

Para que serve a avaliação psicológica nos casos de abuso sexual?

Em âmbito jurídico, a condução incorreta e antiética do DE, sem uma devida avaliação psicológica idônea, transforma a criança/adolescente em testemunha de acusação, criando ou agravando sintomas (autênticos ou simulados) como a depressão, TEPT, ansiedade e problemas de aprendizagem.

23/3/2023

Olá, colegas Migalheiros!

De volta ao assunto que nunca se esgota, “abuso sexual infantil”, trago mais algumas ponderações acerca da forma que entendo a correta em realizar a avaliação psicológica, tanto em âmbito clínico como as apurações em processos judiciais.

Já mencionei em outro artigo1 acerca da temeridade que vem ocorrendo nos procedimentos de Depoimento Especial (DE): o psicólogo entrevistador é designado pelo Juiz para fazer uma entrevista prévia com a criança/adolescente vítima ou testemunha de violência, e em vez de utilizar instrumentos apropriados da Psicologia para avaliação das condições de aptidão à participação (personalidade, memória, percepção, vinculação afetiva com os genitores, fabulação, simulação/dissimulação ou transtornos), utiliza precipitadamente os quesitos, geralmente do MP, para questionar a criança/adolescente acerca do relato, “pra saber se a criança sabe contar direitinho o abuso”, e daí emite um relatório de “aptidão” (hã???). Quando é agendado o Depoimento Especial (DE) propriamente dito, ocorre um lapso de tempo em que o(a) acusador(a) influenciará a criança/adolescente nas respostas, e durante a entrevista de DE, a criança/adolescente já “saberá” o que lhe será perguntado, porque também já recebeu o “treinamento” por parte do profissional na entrevista prévia. Nem preciso mencionar a temeridade dessa conduta irresponsável e antiética.

Pois bem. Para que houvesse uma aplicação correta da lei 13.431/17, seria necessária uma reformulação ou acréscimos a determinados dispositivos legais, especificando a forma como a entrevista de avaliação de condições da criança/adolescente em participar (ou não) da DE deveria ocorrer. E entendo que deveria partir de uma Avaliação Psicológica séria e idônea, e não esse simulacro de procedimentos temerários e pseudo-científicos como vêm ocorrendo.

1. Avaliação Psicológica:

A Avaliação Psicológica corresponde ao processo de coleta de dados e interpretações de informações, por meio de teorias, métodos e instrumentos psicológicos. Tem por finalidade obter maior conhecimento do indivíduo, do grupo ou situações, a fim de atingir os objetivos definidos e, assim, auxiliar em processos de tomada de decisões (WECHSLER, 1999), para isso deve-se considerar ainda que o objeto da avaliação, as questões de ordem psicológica, é multideterminado e inserido em um contexto e momento sócio-histórico, passível de mudanças (Resolução CFP 09/18, que após 60 dias a partir do dia 16/12/2022, será revogada pela Resolução CFP 31/22), a saber:

RESOLUÇÃO Nº 31, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2022

Estabelece diretrizes para a realização de Avaliação Psicológica no exercício profissional da psicóloga e do psicólogo, regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos - SATEPSI e revoga a Resolução CFP nº 09/2018.

(...)

Art. 1º. (...)

§ 1º A Avaliação Psicológica é um processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas.

Conforme a referida Resolução, a Avaliação Psicológica deve consistir em procedimentos reconhecidos cientificamente para a investigação de um fenômeno psicológico, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão, no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas (arts. 1º e 2º). E o documento decorrente dessa Avaliação Psicológica deverá ser redigido conforme as diretrizes da Resolução CFP vigente (no caso, 6/19), sendo que os registros e o material deverão ser armazenados pelo(a) psicólogo(a) conforme a Resolução CFP 1/09.

Destaca-se que o objetivo da Psicologia enquanto ciência não é a busca da verdade absoluta, enrijecido pelo viés positivista, antes de tudo o objeto de pesquisa desta ciência é multifacetado, sendo a intenção buscar pela verdade do sujeito ou grupo de pessoas em seu momento contextual, embasando suas conclusões no raciocínio hipotético-dedutivo, possibilitando inferir para compreender os fenômenos.

Conforme RUEDA e ZANINI (2018), a referida Resolução CFP nº 09/2018 atribuiu autonomia ao(à) psicólogo(a) para decidir quais métodos, técnicas e instrumentos utilizará no processo de Avaliação Psicológica que conduzirá, desde, obviamente, que haja fundamentação técnico-científica e normativa correspondente. A Resolução descentraliza os procedimentos apenas nos testes, e estabelece a existência de ‘fontes primárias’ e ‘fontes complementares’ de informação. Por ‘fontes fundamentais’ de informação a Resolução menciona, além dos testes psicológicos com parecer favorável do SATEPSI, a entrevista, anamnese e/ou protocolos ou registros de observação de comportamentos obtidos individualmente ou por meio de processo grupal e/ou técnicas de grupo, o que amplia o trabalho do(a) psicólogo(a). Segundo os autores (cit.):

[...] Entende-se esse fato como um grande avanço para a área, uma vez que regulamentar o processo de AP [Avaliação Psicológica] como maior que a mera aplicação de testes amplia a noção de AP no contexto profissional para diferentes abordagens teóricas ou metodológicas e leva o profissional psicólogo a refletir sobre sua prática e o processo avaliativo que pratica (RUEDA; ZANINI, 2018, p. 20).

Ainda segundo RUEDA e ZANINI (2018, cit.) as ‘fontes complementares’ também representam um avanço, no sentido de permitir que o(a) psicólogo(a) busque outras informações no processo de Avaliação Psicológica para embasar sua decisão final, podendo ser protocolos ou relatórios de equipes multidisciplinares, o que não significa realizar ‘como bem entender’ e sim assegurando a utilização das ‘fontes fundamentais’ na formação de sua compreensão e interpretação dos fatos.

No caso de avaliação psicológica de crianças e adolescentes, devem-se observar determinados critérios para escolha dos instrumentos. Segundo CUNHA (2000, p.113), “(...) o foco da testagem deve ser o sujeito, e não os testes”. Assim, para BORSA e MUNIZ (In: HUTZ et al. (2016)), a infância e a adolescência são etapas do desenvolvimento caracterizadas por importantes aquisições neurológicas, cognitivas, afetivas e sociais. Crianças e adolescentes podem apresentar diferentes características psicológicas, dependendo da etapa do desenvolvimento em que se encontram. Por isso, é preciso considerar essas especificidades ao planejar a testagem. São necessários testes específicos para diferentes fases do desenvolvimento e um ambiente que permita que a criança ou o adolescente sintam-se capazes de se expressar livremente, de acordo com suas próprias demandas e possibilidades.

2. Personalidade infantil, bem-estar subjetivo e desenvolvimento do princípio do juízo moral:

Segundo GASPARETTO, BANDEIRA e GIACOMONI (2016), o estudo da personalidade é embasado em teorias que englobam diferentes esferas comportamentais e cognitivas. As autoras mencionam modelos teóricos que compreendem a personalidade como um conjunto de características do indivíduo que justificam estilos persistentes na forma de sentir, pensar e se comportar diante dos eventos, bem como aquilo que se refere à singularidade, consistência e estabilidade do comportamento. Para ALLPORT (1973), a unidade básica da personalidade é o traço, sendo que a enumeração dos traços de uma pessoa forneceria uma descrição de sua personalidade.

Para EYSENCK e EYSENCK (1985, p.24), a personalidade é “[...] uma organização mais ou menos estável e duradoura do caráter , temperamento , intelecto e físico de uma pessoa, que determina sua adaptação única ao ambiente”. Para este autor, a execução de um ato seria registrada no sistema nervoso e, no futuro, nenhum traço seria exatamente o mesmo em razão da interação de informações. No entanto, a própria história e a interação com o passado e o presente impossibilitaria mudanças intensas e drásticas, predispondo a pessoa a tendências ou disposições, mantendo a personalidade constante e estável, mesmo diante de uma diversidade de situações.

Para MANSUR, FLORES-MENDOZA e ABAD (2010), os pesquisadores do desenvolvimento têm explorado a possibilidade de que a estrutura da personalidade na infância possa compartilhar significativas similaridades com a estrutura dos traços na idade adulta, e para isso utilizam instrumentos embasados no modelo descritivo do Big Five (os Cinco Fatores de personalidade: neuroticismo, extroversão, cordialidade, responsabilidade e abertura a experiências) para verificar essa correlação entre a personalidade infantil e a adulta.

ANGLIM e GRANT (2014, apud NORONHA et al., 2015) apontam evidências de que os fatores de personalidade Extroversão, Socialização e Neuroticismo predizem o bem-estar subjetivo, sendo que o fator Extroversão está fortemente correlacionado com o afeto positivo, e Neuroticismo tem sido associado com baixa satisfação de vida e afeto negativo.

Segundo SISTO (2019, p.16):

A principal característica de uma pessoa com alta pontuação em neuroticismo é uma constante preocupação, acompanhada de uma forte reação de ansiedade. As oscilações de humor são comuns, como também frequentemente deprimida; provavelmente dorme mal e queixa-se de diferentes desordens psicossomáticas; apresenta fortes reações emocionais com condutas, às vezes irracionais. Em outros termos, mostra uma forte instabilidade emocional. Experimenta sentimentos fortes, torna-se desagradável e está em constante tensão. Por sua vez, uma baixa pontuação em neuroticismo indicaria pessoas pouco impulsivas, que recuperam com facilidade o autocontrole.

AVIA e SÁNCHEZ (1995, apud SISTO, 2004) destacam que as experiências precoces com determinadas emoções (alegria, tristeza e decepção, por exemplo) facilitariam a ocorrência de condutas que, se repetidas, podem ser convertidas em traços.

Em suas observações acerca dos jogos de regras de crianças, PIAGET (1994) pesquisou a prática e a consciência das regras, e o respeito moral. Assim, o autor pôde observar que:

Desse modo, PIAGET (1994, cit.) considera necessário abordar as regras efetivamente morais, baseadas no dever, nas quais as crianças estão inseridas. PIAGET (1994, cit.) afirma que o pensamento verbal teórico, resultado das narrações de situações hipotéticas de conflito moral, está atrasado em relação ao pensamento moral efetivo, o qual o sujeito realiza diante de situações reais de conflito. O papel da ação é de ser fonte da reflexão moral na criança, pois ela age primeiro para depois compreender que as regras contêm possibilidades de serem modificadas e criadas. Além disso, ao agir a criança percebe também que as regras não são cristalizadas, nem muito menos são de origem divina ou de um adulto (SOUZA; VASCONCELOS, 2009).

Essas ponderações são relevantes porque, conforme SILVA (2021), as falsas acusações de abuso sexual ocorrem por uma distorção da noção de “juízo moral”, que passa a ser a do(a) alienador(a) interessado(a) em doutrinar e influenciar a criança/adolescente para a formulação da acusação inverídica, com o objetivo de incriminar o(a) outro(a) genitor(a) e destruir os vínculos.

2.1.  Entrevista:

A entrevista psicológica se torna o procedimento mais utilizado para (SILVA, 2021, cit.):

BLEGER (1991) conceitua entrevista psicológica como aquela em que se buscam objetivos psicológicos – investigação, diagnóstico, terapia. Nela configuram-se o tempo e o espaço físicos onde ocorrerá a entrevista, bem como os aspectos subjetivos das pessoas envolvidas na entrevista (entrevistador e entrevistado).

Nesse sentido, a entrevista psicológica não deve se limitar ao que é obtido com a vítima (ou testemunha) mas também com todos aqueles que possam fornecer informações confiáveis (pais, familiares, professores, profissionais, colegas, etc.).

2.2. Instrumentos:

É importante pensarmos em instrumentos validados pelo Sistema SATEPSI-CFP, que sejam condizentes com a faixa etária e nível de compreensão da criança/adolescente, verificar se tem alguma condição especial (ex.: deficiência ou transtorno), e que de fato atinja os objetivos propostos, que é o de conhecer aspectos da personalidade, funções cognitivas, relações familiares, vínculos afetivos, sentimentos e percepções da criança/adolescente com a relação abusiva, entre outros.

Instrumentos baseados no modelo de personalidade dos Cinco Fatores (ou Big Five) se tornam importantes para identificar a influência do neuroticismo na autenticidade das acusações de abuso sexual. Altos índices de neuroticismo identificam indivíduos propensos a sofrimentos psicológicos e que podem apresentar níveis importantes de ansiedade, depressão, hostilidade, vulnerabilidade, autocrítica e impulsividade. O neuroticismo, em níveis mais altos, também inclui tendência a ideias dissociadas da realidade, baixa tolerância à frustração, afetos negativos, baixa capacidade de controle dos impulsos, baixa auto-estima e respostas de coping mal adaptadas (NUNES e HUTZ, 2002 apud ÁVILA e STEIN, 2006).

Considerações finais:

Como se percebe, a acusação de abuso sexual é um tema complexo, com muitas facetas e implicações, e por isso precisaria ser encarado com a devida seriedade pelos profissionais da Psicologia designados para avaliá-la.

Detalhe: a avaliação dessa magnitude deveria acontecer também em âmbito clínico, pois a manifestação de sintomas pode ser autêntica ou simulada, em função do grau de neuroticismo que essa criança/adolescente apresente durante as sessões.

Em âmbito jurídico, a condução incorreta e antiética do DE, sem uma devida avaliação psicológica idônea, transforma a criança/adolescente em testemunha de acusação, criando ou agravando sintomas (autênticos ou simulados) como a depressão, TEPT, ansiedade, problemas de aprendizagem, que serão abordados oportunamente nos próximos artigos.

O que seria preciso para reformulação dos procedimentos dos Setores Técnicos para a ocorrência de avaliações psicológicas apropriadas no DE?

  1. Revisão da lei 13.431/17, com acréscimos de dispositivos legais (pode ser um Anexo!) que estabeleça os principais objetivos e critérios de uma avaliação psicológica fidedigna para se auferir se a criança/adolescente apresenta condições de participar do DE (que não seja a utilização precoce dos quesitos, para “treinar” a criança/adolescente a “responder direitinho sobre o abuso” e depois emitir o temerário (e antiético) relatório de “aptidão” (???)
  2. Boa vontade por parte do Conselho Federal de Psicologia, em admitir a existência de alienação parental, revogar a infame Nota Técnica nº 04/2022 que cerceia a atuação de psicólogos na avaliação e identificação da alienação parental, por motivação ideológica (o que é uma violação ética, que deveria obter pena em dobro por se tratar de ato cometido por Conselheiro Federal, no exercício do poder e atribuições de cargo!) e reconhecer a cientificidade do tema (mais de 4.000 produções científicas, entre artigos, dissertações e teses por todo o mundo, sobretudo em língua inglesa, não são suficientes?). Assim, os psicólogos poderão dar visibilidade aos atos de alienação parental quando autênticos, terão qualificação para identificar as falsas acusações de alienação parental, as falsas acusações de abuso sexual, e poderão sugerir políticas públicas eficazes para orientar essas famílias.
  3. Disponibilização de cursos e treinamentos de qualificação dos psicólogos para utilizar instrumentos confiáveis, reconhecidos cientificamente e validados pelo SATEPSI-CFP. Isso auxiliará também no desenvolvimento de pesquisas e propostas de atuação da Psicologia para essa área.

Ufa! É um assunto que não se esgota mesmo!

Nos próximos artigos, vou falar dos sintomas mais frequentes nas questões envolvendo abuso sexual: ansiedade, culpa, depressão, TEPT...

Fico à disposição para o debate saudável.

Até o próximo, colegas Migalheiros, espero que tenham apreciado a leitura!

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1 SILVA, D.M.P. Avaliação psicológica em abuso sexual. Migalhas. Ribeirão Preto, 28/02/2023. Disponível em: .

2 Caráter: julgamento de valor, conotação de aceitabilidade moral.

3 Temperamento: interações químicas nas quais se desenvolve a personalidade, sendo de origem hereditária.

Denise Maria Perissini da Silva
Psicóloga clínica e jurídica. Coord. PG Psic. Jur UNISA e UNIFOR. Prof. SEWELL/SECRIM. Colab. Comissões OAB/SP e "Leis & L.etras" Autora livros Psic. Jurídica. Perissini Cursos e Treinamentos S/C.

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