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O uso diário da inteligência artificial no escritório de advocacia: um desafiador e empolgante caminho sem volta

Sou um entusiasta das tecnologias que visam a tornar mais eficientes as rotinas do escritório. Há alguns dias, comecei a utilizar duas ferramentas de Inteligência Artificial, ambas com grande potencial disruptivo: o ChatGPT e o Midjourney. Confira como foi minha experiência com esses sistemas.

22/3/2023

Desde sempre, ouço falar que o mundo está mudando rapidamente. Eu tenho a sorte de poder dizer que já vivenciei muitas mudanças no Direito. Vi a chegada da internet ao Brasil, dos e-mails, dos processos judiciais eletrônicos, dos aplicativos de mensagens, das audiências por vídeo, da jurimetria. Sou um entusiasta da tecnologia e das novas ferramentas que visam a tornar mais eficientes as rotinas do escritório.

No entanto, posso dizer que duas das ferramentas que mais me surpreenderam eu só conheci há alguns dias, ambas com grande potencial disruptivo. Uma delas é o ChatGPT.

Para quem chegou a usar máquina de escrever, deparar-se com uma inteligência artificial conversacional, capaz não só de criar argumentações jurídicas complexas, mas também fazer correlações e analogias inesperadas, certamente causa impacto.

A ideia geral dessa ferramenta é que o usuário insira os comandos, agora chamados de prompts (guarde bem essa palavra, porque ela fará parte do seu dia a dia), como se estivesse conversando com um ser humano. Literalmente, um bate papo com a máquina, com o detalhe de que cada comando vai criando no sistema um banco de dados próprio, a partir dos raciocínios que ela mesmo deduz, e com os quais você pode concordar ou não. Noutros termos, você vai “treinando” o seu chat para que ele escreva do modo que você gostaria que ele escrevesse, para que ele pense da maneira como você gostaria que ele pensasse etc.

Criamos, há alguns dias, a primeira petição feita quase que integralmente no ChatGPT. A narrativa dos fatos, a fundamentação jurídica, as citações doutrinárias com a devida fonte, tudo está lá, exceto a jurisprudência, a qual inserimos “manualmente”, pois a ferramenta ainda não tem acesso às decisões mais recentes em tempo real. Todos nós, no escritório, gostamos do resultado.

Mais do que isso, preparando algumas aulas, depois de treinar o chat com vários textos de Platão e outros filósofos, pedi que ele criasse um diálogo imaginário entre Hans Kelsen e sua filha Anna Renata, como se ela tivesse dez anos de idade, explicando de maneira didática a Teoria Pura do Direito.

Veja um trecho do diálogo que a IA criou:

Anna Renata: Papai, o que é Teoria Pura do Direito? Eu ouvi você falando sobre isso com seus alunos.

Hans Kelsen: Bem, minha querida, a Teoria Pura do Direito é como um jogo de construção de blocos. Sabe aquela brincadeira que você adora, de construir com blocos de montar?

A.R.: Sim, eu amo construir torres e castelos com meus blocos!

H.K.: Ótimo! Então imagine que o Direito é como uma torre feita de muitos blocos. Cada bloco é uma norma jurídica, como uma lei ou uma regra, e eles são empilhados um em cima do outro.

A.R.: Entendi! Mas como sabemos se a torre é forte o suficiente para não cair?

H.K.: É aí que entra a Teoria Pura do Direito. Ela nos ajuda a verificar se a torre é forte e estável, olhando para a ordem dos blocos. Cada bloco deve se encaixar perfeitamente com o bloco abaixo e com o bloco acima. Se houver um bloco que não se encaixa bem, a torre pode desabar.

A.R.: Ah, agora eu entendi! É como uma torre de blocos gigante, onde todas as peças precisam se encaixar perfeitamente.

H.K.: Exatamente! Mas, além disso, a Teoria Pura do Direito também nos ajuda a saber quem é o chefe da torre. Isso é chamado de "norma fundamental". É como uma pedra especial que fica na base da torre, e que garante que todos os blocos acima dela sejam fortes e estáveis.

É uma abordagem inicial, preliminar, mas bastante interessante. Correlações e analogias são muito úteis na hora de montarmos nossas aulas; sem falar que a IA não depende de insights, como normalmente ocorre conosco, os humanos.

Além do ChatGPT, outra tecnologia que me impressionou bastante foi o Midjourney.

Essa IA é capaz de criar imagens a partir de descrições. Utiliza-se a ferramenta a partir de uma plataforma chamada Discord (sim, são muitos nomes), e os prompts vão de sentenças simples como “advogado de terno azul e gravata cinza”, até especificidades mais técnicas como o grau de detalhamento e realismo, o tipo de luz que se deseja na imagem, e a abertura da lente e o modelo da câmera que você gostaria que criasse a arte. Alguns prompts estruturados por designers profissionais chegam a ter mais de uma página. Com uma descrição técnica e detalhada, a imagem fica muito próxima daquilo que se imaginou.

A propósito, o comando para que o Midjourney crie as imagens é /imagine. Estamos, portanto, em uma era na qual as máquinas começam a “imaginar” aquilo que nós pensamos. E as repercussões dessa ferramenta começarão a surgir no direito em breve. Aqueles que lidam com Direito Penal, por exemplo, podem ser os primeiros a se beneficiar dessa IA, para criar, digamos, reconstituições de cenas de crimes com alto grau de realismo.

Trouxe esse assunto para lembrar que nós, do Direito, em alguma medida, somos anacrônicos em relação aos avanços sociotecnológicos do mundo. A forma de nos comunicarmos, nossos procedimentos, a prestação de serviços jurídicos como um todo, parece não acompanhar o Zeitgeist, o “espírito de época”.

Ao me deparar com petições com dezenas de páginas, repletas de termos em latim e com longos trechos de jurisprudência desnecessária, percebo uma espécie de descompasso entre nós e o “mundo real”, onde tudo é muito ágil.

Ocorre que, seja por evolução do ofício, seja por uma questão de sobrevivência, “o novo sempre vem”. Isso também vale para nós, do Direito.

O uso cotidiano das ferramentas de Inteligência Artificial já é uma realidade, e isso nos força a repensar o nosso lugar profissional, as habilidades que precisamos aprender e desenvolver ao longo da nossa vida e da nossa carreira. É um desafiador e empolgante caminho sem volta.

A propósito, pedi ao ChatGPT que revisasse este texto. Ele mudou apenas detalhes pontuais: trocou uma ou outra palavra, redistribuiu algumas vírgulas. Discordei de algumas dessas alterações e o treinei para, via de regra, não colocar vírgula antes de “etc.”. Ele me agradeceu. E assim caminha a humanidade.

César Fiuza
Doutor em Direito Civil na UFMG. Professor. Advogado. Atuação nos Tribunais Superiores. Parecerista. Autor do livro "Direito Civil Curso Completo", com mais de 100.000 exemplares vendidos no Brasil.

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