“Nenhum homem é uma ilha”, como nos ensina o poeta inglês John Donne1. No atual contexto da advocacia, podemos dizer que dependemos uns dos outros para seguirmos adiante e superarmos os desafios no desenvolvimento do modelo brasileiro de precedentes vinculantes, por meio de uma atuação estratégica que extrapola os limites da ação individual dos advogados.
A advocacia em rede pode ser compreendida como a conexão de profissionais de diversas áreas, através de propósitos comuns, que compartilhem interesse em um determinado resultado, seja para realização de um projeto, para representação, para suporte mútuo, tendo sempre presente a ideia de cooperação. Trata-se de gestão de processos, por meio de fluxos de ganho de eficiência, pautando-se sempre, é claro, nos parâmetros do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e do Código de Ética e Disciplina da OAB.
Sobre nossa capacidade de cooperação, o psicólogo social Jonathan Haidt2 traz seu contexto histórico: “Podemos passar a maior parte de nossas horas de vigília promovendo nossos próprios interesses, mas todos temos a capacidade de transcender o interesse próprio e nos tornar simplesmente uma parte de um todo.”
O historiador israelense Yuval Harari também reafirma que a cooperação é a chave para a sobrevivência: a cooperação é o superpoder da humanidade3.
Portanto, esse conceito de cooperação e de atuação em rede não é exclusivo da advocacia, mas vem se mostrando cada vez mais presente e efetivo na área jurídica, para a gestão estratégica dos processos, por meio do estabelecimento de um objetivo comum, extrapolando o âmbito de atuação individual de um advogado ou de um escritório, com o compartilhamento de habilidades e experiências.
Advocacia em rede é mais que networking. Trata-se de uma atuação cooperativa e coordenada, relacionada a pensar o futuro, sendo chave, inclusive. para a eficácia da produtividade e resultados de uma empresa.
Como exemplos, podemos citar a utilização de ferramentas digitais para o compartilhamento de peças, atuação em parcerias ou advogados correspondentes (seja para áreas distintas ou instâncias judiciais), desenvolvimento de teses (seja em debates acadêmicos ou em Comissões especializadas), contratação conjunta de pareceres buscando defender um interesse em comum.
O Art. 6º do Código de Processo Civil (CPC) já prevê a cooperação entre os sujeitos do processo4. A advocacia de rede resulta em uma colaboração que abrange não apenas os sujeitos do processo. Trata-se de atuação estratégica com a extrapolação do âmbito individual que traz como benefício o ganho de escala, por meio da identificação de temas que ultrapassem os interesses de uma parte, de uma empresa, de um advogado, de um escritório e estabelece múltiplas conexões, com atuação conjunta a outros agentes externos, outras entidades de vários segmentos, outros atores que possam compartilhar dos mesmos interesses. Por meio do mapeamento do contencioso, identificam-se interesses em comum e define-se a estratégia na coordenação de ações, a fim de se obter um resultado na solução daquela controvérsia, aumentando as chances de êxito do cliente.
O artigo 927, §2º do CPC5 traz previsão que estimula o debate e a participação da sociedade na discussão de teses jurídicas adotadas em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos. O CPC traz, assim, uma sistemática processual que exige cada vez mais a compreensão de situações inéditas e desafiadoras que demandam a participação mais efetiva e mais próxima dos diversos atores processuais na formulação dos precedentes vinculantes. Vivemos hoje uma construção coletiva desse ainda recente modelo de precedentes vinculantes e, nesse contexto, por meio da advocacia de rede, a conexão desses atores processuais faz-se mais eficiente e capaz de trazer melhores resultados na fixação e uniformização das teses, conferindo também maior legitimidade às decisões.
O Supremo Tribunal Federal, ao divulgar calendário com pauta de julgamentos, traz para a sociedade a possibilidade de previsibilidade da discussão da matéria e, assim, a advocacia em rede viabiliza a coordenação de ações para ampliação dessa discussão.
Os atuais mecanismos de objetivação das decisões pelos Tribunais Superiores e os requisitos de admissibilidade dos recursos (repercussão geral, transcendência e relevância) trazem uma situação curiosa em que, muitas vezes, a solução da controvérsia de uma pessoa/empresa/ente vai ocorrer em um outro processo, no qual aquela pessoa/empresa/ente não é parte, o que ressalta ainda mais a necessidade de atuação estratégica em rede, de interação entre os atores processuais, de modo a participarem efetivamente da solução das controvérsias.
Nos Tribunais Superiores, a maior parte dos julgamentos é realizada de forma virtual. Essa realidade demonstra ainda mais a importância da advocacia de rede, pois, de repente, um processo com repercussão geral reconhecida, ou sob o rito dos recursos repetitivos, pode ser pautado e seu resultado pode repercutir na situação jurídica de outras pessoas sem que, ao menos, sejam parte ou estejam acompanhando aquele processo. Daí a relevância do mapeamento dos assuntos de contencioso e da construção de uma rede de conexões, de modo que aquele tema de interesse não seja acompanhado apenas individualmente e possa ser trabalhado, de forma coordenada, por todos os sujeitos que sofrerão os reflexos daquela decisão.
A recente Medida Provisória 1.160, de 12 de janeiro de 2023, que restabeleceu o voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) acabou se revelando uma oportunidade de atuação da advocacia em rede na prática, em razão da urgência, ainda que não preestabelecida. De fato, houve aproximação e articulação entre diversos advogados que impetraram Mandados de Segurança para suspender os julgamentos no CARF, bem como com a OAB, resultando em apresentação de Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Conselho Federal da OAB e na formalização de um acordo6 com o Ministério da Fazenda. O referido acordo prevê, entre outros, a exclusão de multas e o cancelamento da representação fiscal na hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade, representando diálogo institucional de alto nível7. A Advocacia-Geral da União inclusive enviou parecer ao STF, por meio do qual enaltece a cooperação e a busca por um consenso entre as partes8.
Atuação em rede também se verifica nos Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, nos quais, não raro, há articulação entre entidades, associações e advogados das partes, com atuação coordenada, bem como na atuação da figura do amicus curiae, por meio do qual o fornecimento de elementos informativos é capaz de melhor respaldar a decisão judicial que irá dirimir a questão posta nos autos9.
No julgamento do Tema 1076 pelo STJ, a respeito da vedação à fixação de honorários por equidade em causas de grande valor10, também se pode observar a advocacia em rede, pois nos Recursos Especiais figuraram como amici curiae a União, a OAB, o Colégio Nacional de Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, o Instituto Brasileiro de Direito Processual e a Associação Norte e Nordeste de Professores de Processos- ANNEP.
Recentemente, o STF considerou que uma decisão definitiva, a chamada “coisa julgada”, sobre tributos recolhidos de forma continuada, perde seus efeitos caso a Corte se pronuncie em sentido contrário11, no RE 955227 (Tema 885) e RE 949297 (Tema 881). Considerando a relevância da matéria, também figuraram como amici curiae o Conselho Federal da OAB, a Federação das indústrias do Estado de São Paulo- FIESP, o Sindicato das Indústrias de Produtos Químicos para Fins Industriais, Petroquímicas e de Resinas Sintéticas de CAMAC. Em razão dos reflexos do julgamento, verifica-se uma articulação por parte dos contribuintes e especialistas na matéria, o que ainda requer tempo para melhor análise dessa atuação, pois, como visto, a sociedade encontra-se em fase de construção dessa nova forma de advocacia.
Para o bom funcionamento dessa engrenagem composta de múltiplos atores, é preciso buscar amplo diálogo não apenas entre os advogados, mas também com o Judiciário, com o compartilhamento de boas práticas na construção de soluções democráticas.
Nesse contexto de aprendizado coletivo e edificação dessa nova forma de advocacia, a ideia de cooperação ganha densidade, cumprindo trazer mais uma lição de Jonathan Haidt: “A vida humana é uma série de oportunidades de cooperação mutuamente benéfica. Se jogarmos nossas cartas corretamente, podemos trabalhar com outras pessoas para aumentar a fatia que compartilhamos”12.
As presentes ideias são um convite aos colegas para reflexão sobre quais seriam suas oportunidades de atuação em rede, de forma coordenada e com base na cooperação, na soma de esforços para um melhor resultado. Sejamos, juntos, agentes de transformação na resolução das controvérsias.
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1 https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Donne
2 HAIDT, Jonathan. A Mente Moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020, p. 339.
3 Yuval Harari: "A cooperação é a chave para a sobrevivência" (correiodopovo.com.br).
https://www.correiodopovo.com.br/arteagenda/yuval-harari-a-coopera%C3%A7%C3%A3o-%C3%A9-a-chave-para-a-sobreviv%C3%AAncia-1.893963
“Foi isso que permitiu nos espalharmos pela Terra, criar civilizações e até chegar à Lua. Cooperação é também a chave para a nossa sobrevivência no século 21. A humanidade enfrenta muitos e grandes problemas como o colapso ecológico, guerra nuclear, desigualdade global, pandemias e a ascensão da inteligência artificial. A humanidade também é muito poderosa, e temos o conhecimento científico e os recursos econômicos necessários para solucionar todos esses problemas. Mas desde que haja cooperação global”.
4 Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
5 § 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
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"Por meio do diálogo, chegamos a uma situação intermediária que mantém o voto de qualidade e dá vantagens aos contribuintes. Desse modo, saímos do impasse. A OAB atuou para assegurar o direito de defesa dos contribuintes ante o Estado. O acordo foi o consenso possível. Ele protege o interesse público nas discussões do Carf, sem onerar excessivamente os contribuintes em casos de controvérsia, e confere segurança jurídica às discussões em torno do voto de qualidade", disse Simonetti.
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“Este é um momento histórico de diálogo institucional de alto nível, preservando os interesses públicos e as garantias dos contribuintes. O Brasil necessita da construção de consensos e de pacificação, como o que se vê nesse entendimento firmado”, diz Marcus Vinicius Furtado Coelho, ex-presidente nacional da OAB e atual presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, que representou a OAB nas negociações.
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9 Amicus curiae: os amigos da corte na jurisprudência do STJ
10 STJ veda fixação de honorários por equidade em causas de grande valor com apoio no CPC
11 Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br)
12 HAIDT, Jonathan. A Mente Moralista: Por que pessoas boas são segregadas por política e religião. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020, p. 145.