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Dilemas éticos sobre nomeações ao STF: corrigindo equívocos

Restrições a conflitos de interesses devem ser específicas.

20/3/2023

No cenário de vacância iminente no Supremo Tribunal Federal do cargo hoje ocupado pelo ministro Ricardo Lewandowski, emergiram questionamentos de natureza ética dirigidos à hipótese de indicação do advogado Cristiano Zanin Martins, que atuou como defensor do presidente Lula em inúmeros processos judiciais.

Em suma, a aventada possibilidade veio a ser objeto de críticas, fundadas em suposições de violação ao princípio da impessoalidade e de conflito de interesses, considerando não apenas o desempenho profissional do advogado em favor do presidente como também a amizade entre ambos. Além disso, surgiram contestações ao pretenso risco à imparcialidade judicial, tendo em vista a alegada identidade ideológica entre presidente e indicado, assim como uma inclinação favorável de Zanin ante à agenda política do atual governo.

Essas ilações de potencial ocorrência de conflito ético resultam de equívocos que desconsideram as implicações objetivas da mutação profissional que sofre um advogado militante ao migrar para a magistratura. Ao despedir-se da profissão, o advogado deixa a condição de representante judicial de seus clientes e encerra os seus vínculos contratuais. Seu compromisso passa a ser com uma atividade de índole distinta, na qual não valem apenas os argumentos de quem o contrata para sustentar interesses.

O juiz decide a partir de uma contraposição de razões e argumentos, destituído da obrigação de exercício parcial de um trabalho técnico. Assumindo função judicial, o antes advogado não mais se obriga a referendar designíos da clientela que possuía. Porém, uma vez guindado ao mister judicial, ressalve-se, deve se afastar —declarando suspeição— do exame de causas que tenha patrocinado ou em relação às quais haja emitido parecer específico. Essa é a praxe habitual, respeitada inclusive pelos ministros do STF, sem que existam contestações relevantes.

Observadas tais contenções, não há impedimento à indicação de advogado ao cargo de ministro do Supremo, nem mesmo quando tenha havido a representação profissional pretérita do próprio presidente da República. Isso porque a noção de conflito de interesses não está relacionada à condição anterior à assunção da função judicial, senão à manutenção contemporânea de relações indevidas durante o exercício da magistratura, ou mesmo ao que diz respeito à possível obtenção de vantagens posteriores ao desligamento da judicatura, em caso de haver sido constituído nesta função algum benefício em prol de quem posteriormente vem compensar a vantagem auferida.

Desse modo, a atuação de Cristiano Zanin Martins como advogado pessoal de Lula não obsta a sua indicação para o cargo de ministro do STF, seja à luz do texto da Constituição, que exige requisitos por ele ostentados (reputação ilibada e notável saber jurídico), seja pela consonância com pressupostos de ética pública, haja vista a inexistência de potencial conflito de interesses no caso concreto.

Note-se que a cogitação de obstáculos decorrentes da presumível amizade entre o presidente da República e o indicado apenas ganharia sentido jurídico em caso da demonstração de existência de amizade íntima. E, mesmo nesse caso, as restrições se limitam aos processos de interesse personalíssimo, que em nada se confundem com matérias de índole político-administrativa ou governamental. Convém assinalar que a relação advogado-cliente, embora baseada na confiança recíproca, não necessariamente implica aproximação afetiva. 

É um engano supor que patronos e representados de regra mantenham amizade íntima a ponto de desnaturar a independência profissional que o advogado poderá desfrutar quando venha a desempenhar encargo diverso. Ademais, é bom lembrar que a vitaliciedade é uma garantia que assegura ao juiz o rompimento de qualquer tipo de dependência em relação àquela autoridade que o tenha nomeado, porquanto por ela não poderá ser dispensado, como se fora ocupante de cargo demissível "ad nutum".

Vale ainda salientar que a afinidade de ideias entre o presidente da República e o seu escolhido para o cargo de ministro do STF, ao contrário do quanto erroneamente vem sendo propalado, não constitui espécie alguma de deformidade jurídico-institucional, muito menos induz a conclusão de haver violação à imparcialidade.

Na verdade, o alinhamento do indicado com o projeto político democraticamente preponderante e encarnado na figura do presidente da República é algo absolutamente natural quando se trata do provimento de cargos em cortes constitucionais mundo afora. Isso não quer dizer, entretanto, que a isenção do magistrado reste prejudicada devido a essa compreensível empatia ideológica existente entre ambos.

Aos magistrados do STF se impõe proceder aos seus juízos sob o fundamento lógico dos textos legais e, sobretudo, do conteúdo da Constituição. Não se trata, portanto, do exercício de uma função política criativa, tampouco desatrelada de vínculos e condicionantes normativos.

Nada obstante, tem-se como bastante plausível o esforço do presidente da República no sentido de nomear para o STF um jurista que seja aos seus olhos comprovadamente competente, além de capaz de exercitar a jurisdição constitucional, na medida do possível, em harmonia com o propósito de privilegiar os direitos fundamentais e sociais enunciados em seu programa de governo.

Mauro de Azevedo Menezes
Advogado, é ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (2016-2018, governos Dilma e Temer), mestre em direito público (UFPE) e doutorando em ciências jurídicas e políticas (Universidad Pablo de Olavide); professor convidado na Universidad Castilla La Mancha.

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