Prezados estudantes, em toda a minha vida de professor de Direito Comercial – oficialmente iniciada em 1975 – devo ter tido por volta de quinze mil alunos! Dessa forma eu acho que tenho certa autoridade para trazer-lhes algumas considerações sobre o seu futuro como operadores do direito, na condição de advogados, juízes, promotores, consultores etc.
Ao tempo em que comecei os meus estudos no bacharelado as fontes de informação eram, fundamentalmente, os livros (relativamente poucos e caros para o nosso orçamento), as apostilas das aulas que eram preparadas por estenógrafos contratados pelos centros acadêmicos e as próprias aulas, objeto das anotações em nossos cadernos. Havia revistas jurídicas que não tínhamos condições de assinar, tendo acesso a elas nas bibliotecas da faculdade ou dos locais onde trabalhávamos, fossem esses escritórios, o Judiciário, o Ministério Público e as entidades governamentais. Observo a propósito que a Revista de Direito Mercantil – RDM que bem mais tarde coordenei por cerca de trinta anos era uma fonte extremamente rica de material daquela área.
A vida profissional começava pelos estágios e se convertia nas carreiras privadas da advocacia ou nas públicas do Judiciário, do Ministério Público, das procuradorias etc. O céu não era o limite, a ser alcançado pelo esforço próprio. Os escritórios de advocacia tinham a sua estrutura básica fundada sobre o trabalho dos paralegais, dos estagiários e dos advogados-júnior. Um belo dia no futuro o estagiário chegaria a sócio. Era esse o conhecido e funcional modus-vivendi. Claro que muitos bacharéis constituíram isoladamente ou em sociedade os seus próprios escritórios.
Vou pular as várias décadas que se passaram desde então para chegar logo aos dias atuais, nos quais a informática e a perspectiva do metaverso correspondem a alterações profundas no modelo histórico do exercício profissional do direito. Desde algum tempo programas de computador – que evoluíram para os tão falados algoritmos – têm preparado peças jurídicas, cada vez com maior perfeição. Agora mesmo um dos robôs de inteligência artificial conhecido como ChatGPT “teria sido aprovado” em um exame da OAB. A par das lendas urbanas que podem ter sido estabelecidas a respeito dessa façanha, algumas implicações bastante importantes devem ser reconhecidas. A advocacia de massa já tem sido exercida e será praticamente toda ela operada no ambiente virtual (direito do consumidor, tributário, bancário em parte etc.).
Verifica-se que a automação na atividade jurídica é um caminho sem volta, não se sabendo o seu tamanho, pois sua complexidade e profundidade são desconhecidas. Tão somente será possível estabelecer alguns mecanismos de controle, de maneira a que não seja um robô o autor autônomo de petições, de pareceres e decisões judiciais. Essa é uma tarefa para o legislador que, por sua vez, não seja ele mesmo outro algoritmo.
As profundas mudanças acarretadas pela automação já se têm feito notar claramente, vendo-se o desaparecimento progressivo das funções de paralegal, de estagiário e até mesmo do advogado júnior, se a este permanecerem designadas funções meramente burocráticas, concernentes à coleta bruta de dados e à sua transferência para as esferas superiores da cadeia da organização.
No mundo do direito, como acontece em todos os ambientes nos quais se busca e se exerce informação tudo pode ser feito hoje diretamente on line pelo próprio interessado, que não necessita mais de recorrer a uma extensa cadeia de auxiliares. Basta um pouco de esforço e de organização.
Dessa maneira, em termos genéticos, a sobrevivência do operador do direito passa necessariamente por um diferencial que ele possa oferecer que vá além da fria análise de dados e na montagem de opiniões pelos algoritmos, me parecendo que com a sua evolução ficará superada em boa parte dos casos a possibilidade de identificação de um robô dotado de inteligência artificial por meio do conhecido Teste de Turing, o qual verifica a possibilidade de um robô em demonstrar que tem a mesma inteligência dos seres humanos. Acho que isso ficará cada vez mais difícil. Essa questão se coloca quando se trata da elaboração de juízos de valor, próprios dos seres humanos, sabendo-se que os animais ditos irracionais pautam o seu comportamento por meio do instinto e da recompensa por gratificações.
Na medida se e em que o ChatGPT ou qualquer outro se revelar capaz de fazer juízos de valor essa qualidade acarretará uma substituição mais extensa e mais profunda da mão de obra produzida pelas pessoas, incluindo os operadores do direito. Vejamos alguns exemplos bem simples de um diálogo que tive com o nosso amigo que assim se deu nas minhas perguntas e nas suas respostas:
- O azul é mais bonito do que o amarelo?
- A cor não é bonita ou feia, é apenas uma questão de preferência.
- Você gosta mais do azul ou do amarelo?
- Eu gosto do azul.
- Por quê?
- Porque é uma cor calma e tranquila.
- O Brasil é um país desigual?
- Sim, o Brasil é um país desigual.
- Por quê?
- O Brasil é um país desigual porque há muita desigualdade de renda e de oportunidades entre as pessoas.
Como se verifica, juízos de valor estão presentes nas respostas às perguntas feitas, tendo se notado apenas um defeito de lógica em relação à última questão, estando presente uma definição pelo definido, ou seja, foi utilizada na resposta o mesmo termo presente na pergunta. Fora isso, nesse ambiente de questões simples, o robô se houve muito bem, o que é deveras preocupante se o mesmo comportamento for denotado diante de indagações mais profundas.
Diante desse quadro assustador, como poderá o operador do direito sobreviver e progredir? Uma resposta que pode parecer simplória é a de que ele terá de se tornar criativo em toda a sua essência e isso implica em uma mudança completa dos parâmetros da educação que deverá se iniciar desde os tenros anos, voltada para o desenvolvimento do senso crítico. “Decoreba, go home!”.
Já disse Decartes “eu penso, logo existo” no seu “Discurso do Método”, cuja leitura eu veemente aconselho a todos os operadores do direito que ainda não a fizerem. Mas há um reparo a fazer. Nem todo mundo pensa, no sentido de sopesar argumentos e deles tirar uma conclusão lógica. O pensar daquele filósofo deve ser tomado nesse sentido e não tão somente no exercício da capacidade cerebral motora tão somente receptiva, que digere o alimento e o reproduz sem qualquer transformação. Esses não pensantes são papagaios presos no poleiro pela corrente da inércia volitiva. Afinal de contas pensar dá muito trabalho e chega mesmo a doer, tal como eu e a Professora Rachel Sztajn costumamos dizer aos alunos nos nossos cursos de pós-graduação.
E, tendo em conta que as gerações passadas foram criadas em um ambiente de não se pensar, como fazer para quebrar esses grilhões aos quais temos estado atados a tanto tempo? Eu acho que para começar devemos voltar saudosos às obras infantis de Monteiro Lobato e nos louvarmos no espírito sempre crítico da Emília, que de boneca somente tinha o corpo de pano. É claro que ela e seus companheiros do sítio do Picapau Amarelo tinham como orientadora a querida Dona Benta que não é encontrada muito facilmente. Do nosso lado, desde cedo muitos dos nossos professores, que deveriam ser orientadores no desbravar dos conhecimentos a serem ministrados eram apenas mestres no ensino burocrático, na repetição cansativa dos dogmas do passado, que era exigida como tal nas infames avaliações em que tão somente a memória era requerida. Tive um professor na faculdade que décadas atrás havia preparado fichas para dar as suas aulas e as usava desde então sem qualquer atualização, que com o passar dos anos haviam ficado verdadeiramente ensebadas. Certa feita para ser aprovado em determinada matéria no curso de bacharelado precisei memorizar dezenas de definições que eram as respostas diretas das questões da prova. Dias depois de ter feito o exame já não me lembrava de quase totalidade delas. E isso se deu na Faculdade de Direito da USP!
Nesse ambiente os trabalhos de pesquisa jurídica adquiriram a natureza de compêndios de pensamentos alheios, recheados de citações e de notas de rodapé que ultrapassavam até mesmo a parte principal do texto. “Nada de novo no front ocidental do direito”, poderia se dizer. E esse problema chega ao mestrado e ao doutoramento. O primeiro, a ter a sua materialização em uma dissertação construída “no estado da arte”, não pode ser uma mera resenha da doutrina existente, mas a sua apreciação criativa e aí é onde o calo dói. Quanto ao doutoramento a minha pergunta de quase sempre está em saber qual a nova contribuição do candidato para o direito, alguma coisa que não existia antes de sua tese. E o resultado é muitas vezes o da busca de uma agulha no palheiro.
Nos termos acima, entendo que um robô dotado de IA se revelará plenamente capaz de fazer um TCC – Trabalho de Final de Curso. E pelo jeito do andar da carruagem, talvez seja mesmo possível dar aquele salto de qualidade em um mestrado, acima do estado da arte. Quanto às contribuições pessoais relativas a um doutoramento tenho cá as minhas dúvidas, mas não afasto a possibilidade em vista da evolução da IA, ignorante que sou a seu respeito.
No caso das decisões judiciais sabe-se que elas têm sido proferidas cada vez mais pelo recurso a padrões presentes na jurisprudência e no recurso a súmulas, em um processo que se pode dizer de natureza mecânica. Nesse ambiente um robô não terá a mínima dificuldade de dar uma sentença formalmente correta e materialmente de acordo com os padrões prevalentes nos tribunais, com a vantagem de não deixar de lado qualquer fonte por descuido ou esquecimento, defeitos que qualificam os seres humanos.
Bem a propósito, foi anunciado que em alguns países a IA está sendo usada para proferir sentenças, cuidando-se, entre outros, dos Estados Unidos da América (processos de multas de trânsito) e na Estônia (relativamente a causas de valor inferior a sete mil euros). Em um estudo a esse respeito fora apontadas desvantagens inerentes ao eventual não atendimento dos valores fundamentais do direito, a par da ausência da discricionariedade do elemento humano1.
Caros estudantes, diante desse cenário, qual será a nossa contribuição como seres jurídicos pensantes que nos torne insubstituíveis por um robô? Voltando ao meu argumento, eu penso que a resposta está no diferencial da criatividade e isso dependerá de se aprender a pensar, mudança que é extremamente difícil para quem já está no jogo da comodidade cerebral há muito tempo, incapaz de um movimento disruptivo. Para ficar no campo do direito, percebe-se que as universidades devem tomar a iniciativa na busca de uma intensa renovação do ensino com gente nova, dotados de cabeças ferventes e não de uma mornidão sonolenta.
Vocês, estudantes de direito, comecem a cobrar com toda a sua força essas mudanças porque elas jamais serão feitas de dentro para fora, isto é, pela iniciativa dos departamentos das faculdades e de suas congregações, que vivem pacatos na sua tradição de inércia, com as exceções que confirmam a regra. Ainda é tempo!
Ah, sim! Com a remuneração sofrível que se paga se paga aos professores universitários não haverá como se colocar gente verdadeiramente pensante nas universidades, o que somente tem acontecido na medicina, por exemplo, quando fundações ou institutos de pesquisa dotados de recursos relevantes financiam o seu trabalho sem a exigência de resultados no curto prazo. E não se trata somente de remuneração financeira, mas daquela que forma um ambiente satisfatório de trabalho e de enriquecimento intelectual, tal como aconteceu com o grupo dos Inklings, formado por Talkien, C. S. Lewis e por outros integrantes da Universidade de Oxford nas primeiras décadas do século passado, que nos deram as memoráveis obras que tanto nos enriqueceram.
The game is afoot! Temos de agir como Sherlock Holmes e como Hercules Poirot e não como o pretensioso Inspetor-Chefe Japp.
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1 Matéria divulgada por Exyon Tecnologia de Gestão em 14.03.2023, www.e-xyon.combr.