Migalhas de Peso

O “Caso Americanas” e a até então pouco comentada ação individual do credor trabalhista em face do administrador

Sob censura, entendemos que, em casos como o ocorrido com a Americanas S.A., pode o trabalhador demandar diretamente contra o administrador que descumpriu seu dever.

9/3/2023

Se há um assunto recorrente na pauta empresarial brasileira em 2023, esse assunto é o “Caso Americanas”. Com a deflagração do escândalo contábil consistente da ausência de lançamentos da operação de risco sacado (ou forfait), a companhia entendeu por bem ingressar com pedido de recuperação judicial, suspendendo a cobrança de créditos da ordem de R$50 bilhões. O quadro de credores vai desde os maiores bancos do país, passando pelas maiores companhias de tecnologia do mundo, gigantes do setor de eletrônicos, companhias pertencentes ao bloco de controle da própria Americanas S.A., microempresas e empresas de pequeno porte até chegar, finalmente, nos credores trabalhistas. E é sobre esse último grupo que aqui se pretende tratar.

Ao que consta do quadro geral de credores, a companhia está endividada em cerca de R$ 65 milhões com credores trabalhistas, valor esse que, de acordo com reportagem do jornal A Folha de São Paulo, pode estar subestimado1. Para além dos valores já liquidados e reconhecidos como devidos a trabalhadores pela companhia, há ainda as reclamações trabalhistas em curso, que poderão (ou não) vir a constituir outros créditos contra a varejista, bem como as prováveis demissões que, lamentavelmente, virão a acontecer, dado o cenário de stress contábil da companhia.

De forma a garantir ao menos o pagamento desses credores, os administradores da recuperação judicial pediram à 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro a liberação de valores para quitação de dívidas com os trabalhadores, pleito que vem sendo contestado por alguns bancos, mas que acabou por ser deferido, de acordo com recente publicação do jornal Valor Econômico2. Apesar de a lei 11.101 de 2005, que regula a recuperação judicial, prever uma série de mecanismos protetivos ao credor trabalhista, fato é que o caminho do trabalhador para receber o crédito, fruto de seu trabalho, em face de uma companhia em estado recuperacional, acaba sendo muito ingrato, especialmente quando os administradores responsáveis pela manutenção do bom funcionamento da companhia não cumprem com os deveres de diligência, informação e vigilância, que a Lei 6.404 de 1976 os incumbe de seguir.

A Lei das Sociedades Anônimas prevê, em seu art. 1583, que o administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão, salvo quando proceder com culpa ou dolo, ou quando violar lei ou disposição do estatuto social da companhia. Enquanto no primeiro caso o ônus probatório da atuação culposa ou dolosa de administrador que atua dentro de suas funções recai sobre o prejudicado, no segundo incumbe ao administrador provar que não violou lei ou disposição do estatuto social da companhia. Como forma de viabilizar o exercício de direito contra administrador que cause prejuízo à companhia, acionista ou terceiro por violação de dispositivos legais ou estatutários, a Lei 6.404/76 previu, no artigo subsequente, a ação de responsabilidade civil contra o administrador.

O art. 159 da Lei das S.A.4 prevê dois tipos de ações, as chamadas ações sociais e a ação individual. Dentro da modalidade de ações sociais, existem (i) a ação social ut universi, prevista no caput do artigo e por meio da qual a companhia, mediante prévia deliberação em assembleia-feral, ajuizará ação de responsabilidade civil contra o administrador pelos prejuízos causados ao seu patrimônio, (ii) a ação social ut singuli derivada, prevista no §3º do artigo5 e por meio da qual qualquer acionista, na qualidade de substituto processual, poderá propor a ação, se aprovada e não proposta em até três meses da deliberação, e finalmente (iii) a ação social ut singuli originária, prevista no §4º do artigo6 e por meio da qual acionistas que representem pelo menos cinco por cento do capital social (ou inferior, conforme ICVM 627, editada em 22 de junho de 2020), também na qualidade de substitutos processuais, promovem a ação em benefício da companhia.

Diferentemente das ações sociais elencadas acima, a ação individual, prevista no §7º do art. 1597, cabe a acionista ou a terceiro, que tenha sido diretamente prejudicado por ato de administrador, e que demande em nome próprio contra o administrador. Muito se fala sobre a dificuldade de enquadramento da ação do §7º quando se trata de acionista no polo ativo, uma vez que, pelo entendimento majoritário da doutrina e jurisprudência, a maior parte dos danos suportados pelo acionista são, em realidade, danos “indiretos”, visto que, em regra, a parte diretamente lesada é a companhia, sofrendo o acionista apenas danos reflexos dos causados à sociedade.

Todavia, o que se busca com o presente artigo é tratar do “terceiro” a que se refere a lei, mais especificamente o terceiro credor de natureza trabalhista, a partir de duas relevantes perspectivas: (i) quais são as situações em que a atuação do administrador causa danos diretos ao trabalhador da companhia e (ii) seria a “ação de responsabilidade civil” prevista no art. 159, de fato de responsabilidade “civil” quando ajuizada por credor “trabalhista” diretamente lesado?

Antes de se adentrar à condição direta ou indireta do dano, cabe refletir sobre a condição em que um credor, cujo crédito é oriundo de relação de trabalho com a companhia, passa a adquirir tal condição de credor. E isso nos parece simples: algum direito, previsto em legislação trabalhista, é violado pela companhia, culminando, assim, em dano ao trabalhador. Agora, se um administrador, que viola lei ou estatuto social, fazendo com que trabalhadores que mantenham relação jurídica com a companhia venham a ser lesados, não estariam eles, ao fim e ao cabo, causando danos diretos ao trabalhador? Nos parece que sim.

Sem qualquer pretensão de exaurir os tipos de danos sofridos pela companhia, acionistas ou terceiros, nos parece que a diferença elementar entre os danos suportados pela companhia, vis-à-vis os danos suportados por acionistas ou terceiros, está estruturalmente na segregação dos direitos que possui a companhia e dos inerentes às condições de acionista ou terceiro, sob a ótica preservacionista e garantista das sociedades que previram os idealizadores da Lei 6.404/76. Em outras palavras, o acionista ou terceiro não deveria ser considerado um lesado direto, caso seu dano seja mero “espelhamento” de um dano que foi sofrido, em realidade, pela companhia.

Nesse sentido, para se aferir se o terceiro trabalhador sofre dano direto por ato de administrador, optamos por fazer, de forma análoga, uma análise acerca de quais os danos que se entende por danos causados diretamente ao acionista. A doutrina pátria entende que são alguns dos danos causados de forma direta ao acionista: o impedimento ilícito de exercício de direitos pelos acionistas, a exclusão ilícita do acionista da distribuição de dividendos, o impedimento de exercício de direito de preferência, a diluição de participação societária injustificada, o impedimento de exercício de direito societário, o erro na determinação da relação de troca em operações de reorganização e, finalmente, a falha em divulgação de informações ao mercado.

Ora, ao se fazer uma análise dos “danos diretos” que sofre o acionista, nos parece bastante claro que dizem respeito a danos oriundos de violação de direitos do próprio acionista, devidamente previstos em lei, e inerentes a tal condição de acionista. Mais do que isso, violados esses direitos, deve-se aferir qual patrimônio foi efetivamente dilapidado, se o da própria companhia, se o do acionista, ou se de ambos. Se o acionista tem seu patrimônio violado, em virtude de um descumprimento de um direito que lhe é garantido por sua condição de acionista, sofre o acionista um “dano direto”.

O mesmo nos parece valer para o terceiro trabalhador. Se há violação de obrigações oriundas de legislação trabalhista, de direitos que o trabalhador possui em face da companhia, às custas de um ato do administrador que extrapola suas obrigações legais ou estatutárias, esse terceiro trabalhador é sim “diretamente” prejudicado, para efeito do §7º do art. 159 da Lei das S.A.

Nesse sentido, poderia o trabalhador/empregado demandar diretamente contra a pessoa desse mal administrador? Não deveria antes, ou ao menos concomitantemente, voltar-se contra seu direto ex empregador, qual seja a companhia? Em nosso entender, não necessariamente. Tem ele, sim, pela Lei das S.A., a faculdade de acionar apenas o administrador.

Primeiro, porque estamos diante de uma responsabilidade solidária do administrador com o empregador e, nos termos do artigo 275 do Código Civil, pode o credor escolher contra quem irá demandar; segundo porque a figura do administrador, in casu, se confunde com o empregador; e, por último, porque se o empregado for obrigado a ter no polo passivo da ação a pessoa jurídica de seu empregador, acabará necessariamente sofrendo os efeitos da recuperação judicial que aquele requereu e, com isso, ter possível redução dos valores de seu crédito, bem como longa espera para recebe-los.

Superado o ponto do elo direto ou indireto do dano, uma vez compreendido que o trabalhador tem sim uma ação direta contra o administrador, cabe discutir: seria essa uma ação de “responsabilidade civil”? Teria, por consequência, a justiça comum competência para julgar uma ação individual proposta por trabalhador?

Entendemos que a ação é mais específica do que uma oriunda da abrangente responsabilidade civil.  Nesta macrodefinição temos um grande leque de possibilidades, mas na hipótese vertente que estamos a discutir, há a responsabilidade por específicos direitos trabalhistas, normalmente elencados na CLT, mas também em esparsa legislação e até na própria Carta Magna.

Não se trata da extensa indenização civil por irresponsabilidade do administrador, que demandaria um arbitramento judicial de valores indenitários, onde aí cremos que a competência seria mesmo mais adequada para um magistrado civil, mas estamos a falar do não pagamento específico de verbas trabalhistas, em seus sentidos estritos, como, por exemplo, férias, décimos terceiros, horas extras etc., que estão normatizadas na legislação trabalhista. Sobre estas, é o juiz trabalhista quem tem conhecimento e competência para decidir acerca de sua procedência, ou não. Ele tem a expertise. É a sua competência material.

Em resumo: sob censura, entendemos que, em casos como o ocorrido com a Americanas S.A., pode o trabalhador demandar diretamente contra o administrador que descumpriu seu dever, tal como previsto na Lei das S.A. e poderá fazê-lo perante a Justiça do Trabalho. Com isso, quiçá seu prejuízo possa ser amenizado.

___________

1 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/02/divida-trabalhista-da-americanas-e-mais-que-o-dobro-do-apresentado-na-recuperacao-judicial.shtml

2 https://valor.globo.com/empresas/noticia/2023/03/01/americanas-comea-a-pagar-credores-trabalhistas-e-de-menor-porte-cuja-dvida-de-r-1924-milhes.ghtml 

3 Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder: I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; II - com violação da lei ou do estatuto.

4 Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio.

5 §3º Qualquer acionista poderá promover a ação, se não for proposta no prazo de 3 (três) meses da deliberação da assembléia-geral.

6 §4º Se a assembléia deliberar não promover a ação, poderá ela ser proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social.

7 §7º A ação prevista neste artigo não exclui a que couber ao acionista ou terceiro diretamente prejudicado por ato de administrador.

João Gabriel Rodrigues
Advogado, focado em financiamento e aquisição de direitos oriundos de litígios, na Jive Investments.

José Augusto Rodrigues Jr.
Advogado, sócio fundador do escritório Rodrigues Jr. Advogados.

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