“No Brasil, até o passado é incerto”. A frase, cuja autoria é atribuída tanto ao ex-presidente do Banco Central Gustavo Loyola quanto ao ex-ministro Pedro Malan, sintetiza a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 8 de fevereiro, ao não aplicar a modulação de efeitos na série cessação da eficácia da coisa julgada em matéria tributária.
Independentemente das questões tributárias específicas dos julgados, um ponto que chamou a atenção diz respeito à possibilidade de cessação automática da eficácia da coisa julgada a partir da ponderação de valores constitucionais em jogo, com afastamento de eventual modulação dos efeitos da declaração de constitucionalidade/inconstitucionalidade, não apenas por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social1 o que poderia “autorizar” a extensão desse entendimento para casos envolvendo obrigações de trato sucessivo de diversas outras áreas.
Antes de abordarmos especificamente essa questão, é importante lembrar os desdobramentos até então sedimentados no STF sobre a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma.
A eficácia da declaração de constitucionalidade/inconstitucionalidade se divide em duas espécies:
- eficácia normativa, relacionada à manutenção ou exclusão de determinado preceito normativo do ordenamento jurídico; e
- eficácia executiva, correspondente à atribuição de força impositiva em relação aos atos supervenientes.
No julgamento do RE 730.462 (Tema 733 da repercussão geral), de relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki, o STF reconheceu que “a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das sentenças anteriores que tenham adotado entendimento diferente; para que tal ocorra, será indispensável a interposição do recurso próprio ou, se for o caso, a propositura da ação rescisória própria, nos termos do art. 485, V, do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495)”.2
A razão subjacente ao entendimento acima é a de que, uma vez proferida a decisão judicial observando os critérios previstos para que seja considerada válida (apresentando uma das interpretações possíveis para os dispositivos aplicáveis ao caso), essa refletirá um ato de aplicação do direito e, pois, uma norma individual e concreta, cujo escopo é disciplinar a relação jurídica entre os sujeitos que integraram os polos da demanda. Ainda que o sistema brasileiro de precedentes preveja situações nas quais a decisão decorrente do julgamento de alguns instrumentos possua efeito vinculante, não se pode negar que, para que tenham aptidão de regular certa relação jurídica, é imprescindível que o entendimento a ser seguido esteja refletido em uma norma individual e concreta.
Contudo, o cenário até então sedimentado3 parece ter se modificado nas últimas semanas, a partir do julgamento do RE 949.297 e do RE 955.227.
Isso porque os julgados definem se e como as decisões do STF fazem cessar os efeitos futuros da coisa julgada em matéria tributária, quando a decisão, com efeitos declaratórios, tiver como base a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de um tributo.
Para exemplificar, considera-se que uma empresa X questiona judicialmente a cobrança de determinado tributo pela União. Após obter decisão favorável, transitada em julgado, deixa de efetuar o pagamento da exação. Posteriormente, o STF decide pela constitucionalidade da cobrança do imposto em controle concentrado ou difuso com repercussão geral.
Quais os efeitos desse posterior pronunciamento do STF em relação ao contribuinte titular da coisa julgada que lhe exime do recolhimento do tributo? Continua produzindo efeitos? Pode ser desconstituída via ação rescisória? Os seus efeitos cessam a partir da conclusão do julgamento pelo STF em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade no rito da repercussão geral?
No recente julgamento pelo STF, prevaleceu a terceira opção. Isto quer dizer que, no momento em que o STF decide pela constitucionalidade da cobrança do tributo (no caso concreto, isso aconteceu em 2007, por meio de ADI), a coisa julgada que o contribuinte possuía deixa de produzir efeitos para o futuro, independentemente do ajuizamento de ação rescisória. Uma observação foi feita: somente ocorrerá a cessação automática da eficácia da coisa julgada quando a posterior decisão do STF for proferida em controle concentrado ou difuso e concreto de constitucionalidade segundo o rito da repercussão geral.
Esse entendimento está alicerçado em dois principais fundamentos expressos na decisão da Suprema Corte:
- "se estaria produzindo injustiça tributária e econômica, pois a modulação em favor dos que, mesmo sabendo da claríssima posição do Supremo, ainda assim persistiram em não recolher”; e
- “à manutenção das decisões transitadas em julgado que declaram a inconstitucionalidade da incidência da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) – em reação a fatos geradores posteriores a esse ano – revela discrepância passível de violar a igualdade tributária, diante do tratamento desigual, bem como da livre concorrência. Isso porque o contribuinte dispensado do pagamento de tributo por decisão transitada em julgado ostenta vantagem competitiva em relação aos demais, uma vez que não destina parcela dos seus recursos a essa finalidade – situação diferente da dos seus concorrentes que são obrigados a pagar –, de modo a baratear os custos da sua estrutura e produção”.
Claramente, o STF colocou frente a frente valores constitucionais, para decidir não só sobre a modulação ou não dos efeitos da declaração de constitucionalidade, mas também reconhecer a possibilidade de cessação automática da eficácia da coisa julgada. No caso concreto, temos um embate. De um lado, a segurança jurídica (coisa julgada), de outro, a igualdade e livre concorrência.
Um aspecto que chamou muita atenção, de forma negativa, foi a não modulação dos efeitos da decisão e, pois, atribuição de efeitos retroativos ao novo entendimento. Até o julgamento do RE 949.297 e do RE 955.227, a jurisprudência do STF reconhecia que a coisa julgada somente teria sua eficácia obstada caso houvesse ajuizamento de ação rescisória, ainda que a posição nela refletida não estivesse em sintomia com o posicionamento superveniente da Corte (Tema 733 da repercussão geral).
Com a edição do CPC de 2015, foi introduzido o art. 927, § 3º4, que contém redação semelhante à do art. 27 da lei 9.868/99, o qual autoriza o STF a modular os efeitos de suas decisões desde que ocorra modificação de sua jurisprudência ou em julgamento de recursos repetitivos. A razão para justificar a modulação dos efeitos deverá ser o interesse social e segurança jurídica. E aqui, chama-nos atenção a circunstância de não mais se exigir que a decisão a ser modulada seja aquela que tenha declarado a inconstitucionalidade de dispositivo de lei ou ato normativo. O parâmetro passa a ser a jurisprudência do tribunal ou a prolação de decisão em julgamento de recursos repetitivos.
De todo modo, a premissa é a existência de um entendimento com amplo alcance e que cuja modificação tenha o condão de afetar um número expressivo de relações jurídicas, razão essa que permite sejam calibrados os efeitos da decisão, com o estabelecimento de um momento específico a partir do qual a nova interpretação deverá ser observada.
Admitir a atribuição de efeitos retroativos à decisão que altera jurisprudência dominante, como a decorrente do julgamento dos RE 949.297 e do RE 955.227 é afronta à segurança jurídica, em especial porque os contribuintes que se comportaram ao longo de muitos anos de acordo com a coisa julgada de sua titularidade cumpriram determinações, válidas, eficazes em vigentes emanadas do Poder Judiciária.
Entretanto, passado muitos anos, o mesmo Poder Judiciário decide que aquelas decisões não deveriam produzir efeitos, mesmo que os interessados não tenham se utilizado dos instrumentos que o sistema processual coloca à disposição para contestar as decisões que se tornaram definitivas.
Não reduzimos a importância dos primados da isonomia e livre concorrência, mas é extremamente perigoso sancionar os contribuintes que se comportaram de acordo com uma decisão proferida pelo Poder Judiciário e que definiu os limites da sua relação jurídica com a União no tocante a um tributo específico. Por isso que, mesmo que se autorize a cessação da eficácia da coisa julgada em virtude de um novo julgamento com força vinculante, a proteção da segurança jurídica requer que os atos concretizados segundo uma ordem emanada do próprio Poder Judiciário sejam preservados, determinando-se que a nova orientação se aplique para o futuro.
Ou seja, há verdadeira inovação do regramento sobre o instituto da coisa julgada previsto no artigo 502 do Código de Processo Civil, ao se admitir a possibilidade de quebra automática de sua eficácia a partir da ponderação de valores constitucionais, afastando-se a necessidade de emprego da ação rescisória.
Por mais que os precedentes discutidos pelo STF digam respeito a obrigação tributária de trato sucessivo, nada impede que questões desse gênero de outras áreas possam sofrer impactos (por exemplo, contratos administrativos ou civis de trato sucessivo que possuem repercussão constitucional, aptos a atrair a competência do Supremo Tribunal Federal para dirimir eventual conflito) . Nesse ponto reside a preocupação de todos os operadores do direito de acompanhar os desdobramentos futuros dessa decisão, visto que a sua orientação poderá afetar relações jurídicas de diversos ramos.
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1 Conforme preconizam o art. 27, da lei 9.868/99, e o art. 535, §6º, do CPC.
2 De acordo com o entendimento do ministro Teori Zavascki: “A eficácia normativa (= declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade) se opera ex tunc, porque o juízo de validade ou nulidade, por sua natureza, dirige-se ao próprio nascimento da norma questionada. Todavia, quando se trata da eficácia executiva, não é correto afirmar que ele tem eficácia desde a origem da norma. É que o efeito vinculante, que lhe dá suporte, não decorre da validade ou invalidade da norma examinada, mas, sim, da sentença que a examina.
Derivando, a eficácia executiva, da sentença (e não da vigência da norma examinada), seu termo inicial é a data da publicação do acórdão do Supremo no Diário Oficial (art. 28 da lei 9.868/99). É, consequentemente, eficácia que atinge atos administrativos e decisões judiciais supervenientes a essa publicação, não atos pretéritos. Os atos anteriores, mesmo quando formados com base em norma inconstitucional, somente poderão ser desfeitos ou rescindidos, se for o caso, em processo próprio”.
3 Não podemos deixar de trazer para debate o disposto no art. 535, §§ 5º a 8º, do CPC, que considera também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
Além disso, autoriza que os efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal poderão ser modulados no tempo para favorecerem a segurança jurídica. Por fim, especifica que, se a decisão for proferida após o trânsito em julgado da decisão em execução, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
É bem verdade que esse dispositivo trata da declaração de inconstitucionalidade da norma. Contudo, por questão de simetria, não pode ser afastada para os casos de determinado título executivo se tornar inadmissível ainda que pela declaração de constitucionalidade da norma, principalmente em se tratando do caso concreto objeto deste artigo, já que as empresas beneficiárias dispunham de um título executivo sobre uma obrigação de não pagar de trato sucessivo.
4 Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.