Lendo o Tomo XVI do Tratado de Direito Privado do jurista alagoano Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda1, escrito lá pelos idos do final da década de 50 e início da de 60 do século passado, deparei-me com uma passagem lúcida e curiosa ao seu tempo acerca da expressão “direito moral”, que aqui transcrevo:
“[...]. A primeira expressão para o direito autoral de personalidade que na conferência de Roma se propôs foi "droit moral", cujo ridículo salta aos olhos. Natural, podia-se conceder; ¡mas direito moral! Duas dimensões sociais, confundidas.
INFELICIDADES TERMINOLÓGICAS. - A expressão "droit moral", lançada pelo jurista francês André Morillot, em 1872, é vazia, mal-sonante, híbrida e quase diremos monstruosa, por ser de uma dimensão social o substantivo e de outra o adjetivo. No mesmo despenhadeiro de imprecisões, outro escritor francês, foi mais longe: a adjetivação "moral" parecia-lhe boa, porque o objeto último do direito é o "belo" (escusez du peu!); o imaterial justificaria o nome (S. De Gorguette D'Argoeuves, Du Droit moral de l'auteur sur son oeuvre artistique et littéraire, 59). [...].”2
Salta aos olhos a diversidade doutrinária (novamente diga-se, de seu tempo) a que Pontes recorreu para embasar seus argumentos durante todo o Tomo XVI e o XVII (os dois, focados em direito de autor e propriedade industrial). De raras doutrinas alemãs, passando pelas clássicas francesas e italianas, pelas desconhecidas anglo-saxãs e não se esquecendo das brasileiras contemporâneas suas (a exemplo das de J. X. Carvalho de Mendonça, Antônio Chaves e João da Gama Cerqueira).
Não é à toa que um dos exímios leitores e intérpretes da argumentação ponteana, André Lucas Fernandes, em sua dissertação de mestrado apontou que:
“Estar dentro do sistema jurídico, lógico, é operar uma estrutura conceitual mental, mundo da mente, dentro do mundo dos fatos, em relação inescapável com ele. Que troca, comunica, mas não é alheamento ou solapamento dessas condições fáticas das quais o processo de adaptação se irmana – como na metáfora dos jarros com águas de cores diferentes, posta no Sistema [de Ciência Positiva do Direito].”3
Voltando à “malfadada” expressão, mas crucial instituto autoralista4, é necessário mencionar que a Convenção de Berna (de 1886, com sucessivas revisões ao longo do tempo) é quem nutre a presença originária e significância do “droit moral”, de forma consagrada no teor do Artigo 6bis (1), (2) e (3)5. Tal produção político-normativa6 de direito internacional, como se sabe, influenciou e influencia o direito positivo de muitas nações, sobremaneira as de sistema civilista:
“Desde a revisão de Roma de 1928, o art. 6bis da Convenção de Berna —modificada posteriormente nas revisões de Bruxelas (1948) e Estocolmo (1967) — prevê a proteção dos direitos morais. [...]. Em especial, o art. 6 bis da Convenção de Berna contém uma regulamentação mínima, articulada por meio de três regras: (i) é garantido que o autor preservará, independentemente dos direitos patrimoniais e mesmo após a transferência desses direitos, o direito à paternidade e à opor-se a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação da obra ou a qualquer ataque à mesma que cause dano à sua honra ou reputação; (ii) se exige que, após a morte do autor, os referidos direitos morais sejam mantidos, pelo menos, até a extinção dos direitos patrimoniais; e (iii) a proteção desses direitos será efetivada por meio dos instrumentos processuais previstos na legislação processual do país em que sua proteção for reivindicada.”7
O atualizador do Tomo XVI, advogado Marcos Alberto Sant’anna Bitelli, corretamente pontua que:
“Quanto à expressão ‘direito moral do autor’. apesar de ser razoável a crítica realizada com respeito à impropriedade da expressão, as legislações autorais são praticamente unânimes na adoção desse qualificativo para as faculdades extrapatrimoniais do autor. No entanto, existe doutrina que entende que a utilização da expressão é imprópria e equívoca, pois contém uma dimensão social que inexiste entre as faculdades inerentes a pessoa do autor. Dessa forma, parte da doutrina entende que a expressão mais adequada para se referir a esses direitos, em oposição ao direito patrimonial, seria a de direitos pessoais.”8
O professor alemão Haimo Schack, sobre a designação droit moral em contraponto a construção do Urheberpersönlichkeitsrecht alemão, afirma que o moral “deve ser entendido menos no sentido de moral [sittlich] propriamente dito e mais no sentido de espiritual [geistig], semelhante ao termo personne morale para a pessoa jurídica”9.
Já o professor português Alberto de Sá e Mello, ao mencionar sobre a presença da expressão10 direito moral em dogmáticas lusófonas, reforça sua contestação a tal expressão:
“Nos termos do art. 9°/1 e /3 do Código de Direito de Autor e Direitos Conexos português (CDADC), a par das faculdades de utilização patrimonial da obra ligadas à sua exploração económica, o autor ‘goza de direitos morais’. Dão-lhe esta mesma designação as leis de autor brasileira e cabo-verdiana. A lei de autor angolana caracteriza-os mesmo como ‘de carácter moral’, enquanto a lei de autor moçambicana, quanto a nós avisadamente, prefere referi-los como ‘direitos de natureza pessoal, denominados não patrimoniais’. Já a lei de autor macaense muito bem diz o direito pessoal de autor apenas como "um direito pessoal sobre a obra protegida". Escrevemos já sobre as razões pelas quais achamos preferível a designação direitos pessoais para nomear o conjunto destas faculdades. Preferimo-la, não obstante a terminologia da lei, já que a expressão ‘direitos morais’ não só nada diz que elucide sobre a natureza destas faculdades, como deixa supor erroneamente a existência de direitos ‘não morais’ ou a inserção dos direitos pessoais de autor numa ordem de valores extra-jurídica (moral), o que equivoca sobre a realidade.”11
E, concordado com o professor Alberto, o professor português José Alberto Vieira complementa que:
“Em Portugal, Alberto de Sá e Mello recorre à expressão direito pessoal de autor, a que nós aderimos igualmente desde os primeiros estudos nesta matéria. Esta terminologia acentua a natureza da protecção em causa, uma protecção de indole pessoal, sem envolver um compromisso com o conceito de direito da personalidade. Por isso, será esta a expressão que utilizaremos doravante para referir o conteúdo pessoal de protecção do criador intelectual.”12
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1 A edição que tenho em mãos é: Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2013. [Tomo XVI, atualizado por Marcos Alberto Sant’anna Bitelli]
2 § 1.835, 3-4. (p. 67 da edição)
3 Entre sistema e tratado: o pensamento de Pontes de Miranda e a modelização da sociedade global. Curitiba: CRV, 2018. p. 108 da versão da monografia.
4 Que não se reserva somente à esfera civilista. “[...] se as prerrogativas que compõem o aspecto moral do direito autoral possuem relevância social suficiente para serem protegidas pelo ordenamento jurídico, o que aliado à sua não contradição com os valores do Estado social e democrático de direito constitucionalmente estabelecidos, constitui pressuposto básico para legitimar o exercício do poder punitivo estatal. Mas, além disso, em relação ao princípio de intervenção mínima, deve ser estabelecido se a intervenção do direito penal é necessária para sua proteção, o que implica que todos os outros meios menos severos foram esgotados; especificamente, a suficiência ou não da via civil para a defesa da faceta moral dos direitos autorais deve ser determinada.” (Paula Beatriz Bianchi Pérez. La vertiente moral del derecho de autor: su incongruente tutela en el ámbito penal - un estudio de Derecho comparado. Barcelona: J. M. Bosch, 2020. p. 114 [tradução livre])
5 “(1) Indépendamment des droits patrimoniaux d’auteur, et même après la cession desdits droits, l’auteur conserve le droit de revendiquer la paternité de l’œuvre et de s’opposer à toute déformation, mutilation ou autre modification de cette œuvre ou à toute autre atteinte à la même œuvre, préjudiciables à son honneur ou à sa réputation. (2) Les droits reconnus à l’auteur en vertu de l’alinéa 1) ci-dessus sont, après sa mort, maintenus au moins jusqu’à l’extinction des droits patrimoniaux et exercés par les personnes ou institutions auxquelles la législation nationale du pays où la protection est réclamée donne qualité. Toutefois, les pays dont la législation, en vigueur au moment de la ratification du présent Acte ou de l’adhésion à celui-ci, ne contient pas de dispositions assurant la protection après la mort de l’auteur de tous les droits reconnus en vertu de l’alinéa 1) ci-dessus ont la faculté de prévoir que certains de ces droits ne sont pas maintenus après la mort de l’auteur. (3) Les moyens de recours pour sauvegarder les droits reconnus dans le présent article sont réglés par la législation du pays où la protection est réclamée.”
6 E aqui, sem a intenção de se querer confundir as duas dimensões.
7 Carles Vendrell Cervantes. Articulo 14. Contenido y características del derecho moral. In: Felipe Palau Ramírez/Guillermo Palao Moreno. Comentarios a la ley de propiedad intelectual. Valencia: Tirant lo Blanch, 2017. p. 268 [tradução livre]
8 Página 71.
9 Urheber- und Urhebervertragsrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 2020. p. 187 [tradução livre]
10 Repise-se, da expressão, eis que o instituto se faz presente em todos os países mencionados pelo autor.
11 Manual de Direito de Autor e Direitos Conexos. Coimbra: Almedina, 2020. p. 133-134
12 Direito de Autor: dogmática básica. Coimbra: Almedina, 2020. p. 214-215.