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A proteção dos espaços ocupados pela mulher nos ambientes públicos e privados para avanço na política

Como afirma Scott , a “igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. Não é a ausência ou a eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-la em consideração”.

7/3/2023

A solitária e aparente habilidade das mulheres no acúmulo de papeis tem mostrado seu custo à qualidade de vida feminina e aos avanços nos espaços públicos, sem que se tenha tomado ainda medidas sociais e jurídicas relevantes para evitá-lo. Desenvolve-se o discurso progressista da conquista de direitos pelas mulheres, mas sem levar o pó de pensamentos antiquados que as deixam reféns de um cenário opressor, sobretudo para aquelas que querem dedicar tempo para viver seus talentos para o exercício da vida pública. A mulher continua com o ônus dos cuidados domésticos, enquanto avança no desempenho das funções públicas. 

Por isso, não podemos refletir sobre a necessidade de proteção dos espaços ocupados pela mulher nos ambientes públicos e privados sem resgatarmos o processo de politização  do “pessoal”1, o qual promoveu a expansão do “significado de justiça” e a reinterpretação das injustiças não decorrentes apenas da lei (visão dos liberalistas) ou da economia política (análise marxista), mas também das “injustiças localizadas em outros lugares – na família e em tradições culturais, na sociedade civil e na vida cotidiana” e que eram frutos das “desigualdades sociais que tinham sido negligenciadas, toleradas ou racionalizadas desde tempos imemoráveis”2.

Há inúmeras barreiras para as mulheres acessarem os espaços públicos, sendo uma delas até mesmo a própria ausência de vontade ou desejo pessoal. Contudo, dentro do universo das mulheres que querem inserir-se na política, não podemos mais ignorar que temas relacionados à sexualidade, serviços domésticos, violência doméstica, dedicação e cuidado com os filhos precisam ser debatidos de forma urgente e necessária.

Dedicar-se às atividades políticas exige tempo. Estar como candidato(a) em um processo eleitoral exige não apenas tempo integral, mas dedicação exclusiva. Essa premissa já é reconhecida pelo direito brasileiro quando concede licença ao servidor público efetivo, com percepção integral de remuneração, para, por 3 (três) meses, na condição de candidato(a), dedicar-se à campanha eleitoral (LC 64/90, art. 1ª, II, alínea “L”).

Para que a conquista dos espaços públicos pelas mulheres e o alcance da igualdade política não seja mera retórica, é preciso enfrentarmos e debatermos a respeito dos fatores reais que podem minar o interesse desse grupo em entrar na política. E as barreiras da vida privada da mulher não minam sua participação na política apenas de forma reflexa, mas sim direta.

O Estado brasileiro, signatário da Convenção Internacional para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, aceitou e já está implementando uma série de ações do tipo afirmativas para proteger e garantir que mais mulheres se insiram nos espaços políticos.

E, para além da complexidade dos múltiplos obstáculos presentes na cultura e na estrutura já consolidadas de poder, temos amadurecido nossas reflexões e estudos sobre o tema, principalmente a partir da realidade empírica de cada eleição, e chegamos à conclusão de ser essencial a proteção também dos espaços de privacidade e de intimidade da mulher.

As desigualdades e injustiças históricas que afetam esses espaços estão diretamente relacionadas seja à falta de interesse ou, ainda que presente este, à ausência de condições para dedicação ao desenvolvimento de um projeto candidatura eleitoral que, como dito, exige dedicação exclusiva da mulher à sua realização.

Os papeis tradicionais de gênero, o dever de cuidado e assistência com os filhos, com o gerenciamento do lar, questões íntimas relacionadas aos “acordos” matrimoniais, em geral, limitam a liberdade da mulher, ou impedem, dificultam ou tornam muito difícil a dinâmica e a qualidade da vida privada daquelas que pretendem adentrar a política. A política de Estado que é, portanto, o alcance da paridade de gênero na política, segue sendo uma promessa não cumprida e – mais grave - alvo de fraudes e violações sistemáticas dos direitos das mulheres, aumentando ainda mais o problema a ser enfrentado pelas instituições estatais.

Assim, para que as mulheres possam avançar mais nos espaços públicos é preciso reconhecer que essas atividades referentes à vida doméstica e à maternidade requerem tempo e estrutura para serem praticadas e, muitas vezes, têm um ônus econômico. O trabalho não remunerado das mães, dentro dos lares, historicamente invisível, possui um custo que se torna muito evidente quando precisa ser substituído. 

Esse custo é sopesado pelas mulheres quando pensam em dedicar-se à carreira política. A questão, para além de gênero, também se torna um problema de classe, pois, apenas as mulheres que, com planejamento familiar e condições financeiras para arcá-los, acabam tendo condições de, com segurança, tomar a decisão por dedicar-se – ou não – a uma campanha eleitoral. É muito comum o relato desafiador, extenuante e heroico de mulheres, mães, oriundas da periferia, que se candidatam. Mas não deve ser assim; não precisa ser.

Muitas vezes, as mulheres não desenvolvem sequer estímulos mínimos que as façam cogitar participar da política, pois já antecipam todas as questões e limitações que os papeis tradicionais atribuídos ao seu gênero implicam nessa escolha.

Por isso, não há como enfrentarmos esse tema sem falarmos da singularidade do financiamento das campanhas femininas e sobre o custeio da rede de apoio da vida privada das mulheres enquanto estas então em atividades de campanha.

Algumas candidatas mães de crianças pequenas, por exemplo, precisam pagar creches e ter suporte para efetivamente fazerem campanha. É inquestionável que esse é um custo inerente à sua “cruzada eleitoral” e, portanto, seria, no mínimo, um valor a ser contabilizado como gasto eleitoral. Não há restrições na lei; há apenas uma realidade esquecida e que não é objeto de debate e enfrentamento.

Mas a complexidade não se limita a esse aspecto. Examinada bem a questão, importa refletir de onde deve vir o valor a custear essa despesa. Não se pode negar que é mesquinha a forma como o valor do Fundo Partidário e o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) vem sendo utilizado em campanhas femininas.

Para além da complexa divisão do valor total entre cargos majoritários e proporcionais, o custo antes referido não poderia ser suportado apenas por uma mulher ou pelas mulheres. Trata-se de um valor a ser investido no interesse de todos, dado que é do interesse da sociedade a educação de crianças, assim como a participação de mulheres mães na política.

Desta forma, entendemos que o valor dado às mulheres para cuidar de seus filhos não devem vir, portanto, dos 30%, mas do fundo total, porque é do interesse de homens e mulheres, da sociedade. Afinal, a maternidade é uma função social e a responsabilidade pelo seu exercício deve ser partilhada pelos pais, sociedade e Estado.

Se a maternidade já foi, historicamente “oferecida como a explicação para a exclusão das mulheres da política”3, se “a subordinação das mulheres era sistêmica, fundamentada nas estruturas profundas da sociedade”4 e, por fim, se foi o Estado que estruturou e regulamentou a sociedade capitalista de forma androcêntrica e atuou legitimando a não remuneração do trabalho doméstico das mulheres, a atribuição de salários maiores ao homem, a subordinação matrimonial e a dominação do sistema político pelos homens5, nada mais justo que reconhecer toda a dívida histórica e esse atual problema estrutural – herança das escolhas estatais realizadas - para darmos mais condições, apoio e incentivo para as mulheres ingressarem na política e poderem dedicar-se, com segurança e tranquilidade, às suas campanhas eleitorais, sem prejuízo do cuidado com seus filhos(as).

O acúmulo de papeis revela seu custo à qualidade de vida feminina e soma-se às demais barreiras para o acesso das mulheres aos espaços políticos. Por isso, para o avanço da inclusão de mulheres na política, é preciso haver uma rede de proteção integrada tanto dos espaços ocupados pela mulher nos ambientes públicos como privados.

Como afirma Scott6, a “igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. Não é a ausência ou a eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-la em consideração”.

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1 Conferir, O Pessoal é Político, de Carol Hanisch (1969) em http://carolhanisch.org./CHArticlesList.html.

2 FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 11-33, Jul/Dez. 2009, p. 18.

3 SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005, p. 16.

4 FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 11-33, Jul/Dez. 2009, p. 18.

5 FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 11-33, Jul/Dez. 2009, p. 18.

6 SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 11-30, janeiro-abril/2005, p. 15.

Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Mestre pela UFC, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, do ICEDE, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e da Transparência Eleitoral Brasil.

Jéssica Teles de Almeida
Mestre e Doutoranda pela UFC. Professora de Direito Eleitoral e Direitos Humanos da UESPI. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP, da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/CE e do Grupo Ágora (UFC).

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