No decorrer da história, no que tange à fase de investigação preliminar, o Direito Processual Penal brasileiro assumiu diversas faces e, por quase quarenta anos, prevaleceu a figura do juiz inquisidor, o qual detinha vastos poderes de investigação dentro das funções policiais e judicantes (SILVA, 2012).
Isso somente começou a perder intensidade na década de 70, período em que houve a separação entre as funções supramencionadas. Estabeleceu-se, ali, o inquérito policial, cuja presidência está centralizada na figura da autoridade policial (ANSELMO, 2015).
Com o advento do Código de Processo Penal, em 1941, e, posteriormente, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, tal disposição foi mantida e formalmente consolidada, permanecendo em vigor até os dias atuais.
Embora a lei processual tenha sofrido algumas modificações pontuais ao longo dos anos, a sua estrutura básica sempre permaneceu e até então se encontrava firmada em bases inquisitoriais (LIMA, 2020), sendo possível extrair diversos dispositivos legais que ainda autorizam iniciativas do próprio magistrado.
Em que pese o juiz não mais comande a fase investigatória, conforme se extrai do Código de Processo Penal, ainda lhe são facultados alguns poderes que revelam a subsistência de resquícios inquisitoriais como, por exemplo, a determinação, ex officio, do sequestro (art. 127, CPP), da produção antecipada de provas (art. 156, I, CPP) ou a de buscas domiciliares (art. 242, CPP) (SILVA, 2012).
Além disso, até pouco tempo o juiz poderia ordenar – sem provocação da autoridade policial ou do Ministério Público – a prisão preventiva em qualquer fase do inquérito policial.
Eis que aos 23 de janeiro de 2020 entra em vigor o Pacote Anticrime, instituído pela lei 13.964/19, trazendo, dentre diversas outras modificações, uma “nova” figura à seara processual pátria: o juiz das garantias, que será o responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais do acusado, promovendo, assim, a garantia da imparcialidade (LIMA, 2020).
Como medida auspiciosa para uma tentativa de se mitigar a inquisitoriedade presente no âmbito processual penal (LEITE, 2020; NUCCI, 2020), a lei 13.964/19 mencionou que o processo penal terá estrutura acusatória e instituiu a figura do juiz das garantias, incluindo no Código de Processo Penal os arts. 3º-A a 3º-F.
A partir de agora, então, conforme disposição do art. 3º-A do CPP, a lei processual penal brasileira passa a adotar expressamente o sistema acusatório (NUCCI, 2020), que já era a opção da Constituição Federal de 1988:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
Um dos pilares de defesa da implementação do juiz das garantias firma-se na necessidade de separação das competências dos magistrados que atuam na fase investigatória e na fase da instrução processual, com vistas a garantir a imparcialidade do juiz que atuar na fase processual, afastando a possibilidade de que este se contamine pelos dados colhidos na investigação preliminar (SILVA, 2012).
A imparcialidade do magistrado atuante na fase processual estaria mais bem resguardada com a absoluta separação entre as figuras dos juízes atuantes nas duas fases (SILVA, 2012), visto que “o exercício prévio no processo de determinadas funções processuais pode provocar dúvidas de parcialidade” (BADARÓ, 2011).
Assim, pode-se dizer que a implementação do juiz das garantias se mostra bastante benéfica porque tal medida afasta problemas de comprometimento decisório prévio (MACHADO, 2020) ao garantir a imparcialidade do magistrado que, após o recebimento da exordial, terá condições de instruir o processo verdadeiramente livre de máculas.
Acredita-se, então, que a medida terá o condão de mitigar significativamente os vieses inquisitoriais ainda presentes no processo penal brasileiro, garantindo, assim, o princípio da imparcialidade e a efetivação do devido processo legal.
Oportunamente, insta ressaltar que o Ministro Luiz Fux, do STF, Relator das ADIn’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, ajuizadas em face do Pacote Anticrime, suspendeu cautelarmente a eficácia dos arts. 3º-A a 3º-F do CPP. A constitucionalidade formal e material da referida inovação ainda será apreciada pelo Plenário do STF, contudo, já em 2023, ainda não há previsão para a demanda ser levada à pauta.
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ALSELMO, Márcio Adriano. A presidência do inquérito policial e a requisição de diligências. Disponível em: . Acesso em fevereiro de 2023.
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