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O risco de uma Justiça (totalmente) virtual. A hora do retorno

A pandemia provocada pelo coronavírus trouxe, a fórceps e por conta das urgências então postas, a necessidade de que se empreendesse uma imediata readaptação, com reflexos em todos os setores da sociedade.

3/3/2023

In Medio Stat Virtus. Com esta frase, Aristóteles propunha que a virtude está no meio, na média ponderada dos fatos. Tal aforismo, sublinhe-se, representa um aspecto importante da virtude moral. É saber caminhar pelos extremos, sem se deixar seduzir para nenhum dos abismos laterais. É a busca pela solução razoável, proporcional “em meio” à infinidade de possíveis respostas.

A pandemia provocada pelo coronavírus trouxe, a fórceps e por conta das urgências então postas, a necessidade de que se empreendesse uma imediata readaptação, com reflexos em todos os setores da sociedade. No Judiciário, No Judiciário, por exemplo, conhecido por sua estrutura tradicional e secular, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a realização de sessões virtuais ou audiências por videoconferência durante o período da pandemia de covid-19.

Entretanto, ponderamos, passada a fase mais aguda de tão infausto período, é preciso ter muito cuidado quando se considera a perspectiva de se consolidar o trabalho remoto como via exclusiva mesmo após o fim da pandemia.

Com efeito, ninguém estava preparado para lidar com a crise provocada pela nova peste, o que, de fato, exigiu de todos nós adaptações para que o mundo não interrompesse sua evolução natural. Uma situação de exceção, não negamos, demandava novas soluções.

Porém, segundo propomos, há que tratar-se aquilo que é excepcional, com o perdão da tautologia, como excepcional que é, razão pela qual nem todas as medidas adotadas no período extremo, conquanto alguns reconhecidos benefícios, precisam ser permanentemente adotadas ou adotadas em sua íntegra. “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, diria Aristóteles…

É o caso do Judiciário. Os julgamentos por vídeoconferência foram a opção viável, naquele momento histórico, para se assegurar o direito à Justiça mediante o fechamento dos fóruns e a suspensão das atividades presenciais por causa da necessidade de isolamento social.

Porém, o que foi idealizado como solução em curto prazo, de forma duradoura pode prejudicar esse mesmo direito à Justiça.

Sem falar na importância econômica do pleno funcionamento que o conglomerado Fórum atrai, pois, como ex., só no Rio passam cerca de 50.000 pessoas por dia em seus corredores, movimentando restaurantes, bancas, bancos, lanchonetes, lojas etc., que oferecem emprego.

É preciso entender, ainda, que o Judiciário apresenta uma ritualística própria, que é fundamental para preservar direitos e garantias processuais. Um dos principais exemplos é o contato direto da defesa com o réu, que fica impossibilitado em julgamentos virtuais e afeta a própria dinâmica da audiência.

É inegável que o trabalho do advogado é limitado com as audiências virtuais. A retórica presencial, por exemplo, tem um impacto muito maior do que aquele que se tem visto nas videoconferências. Toda a formação adquirida na faculdade é voltada para a performance nos tribunais e não em uma tela de vídeo.

A própria legislação que rege o trabalho dos magistrados ratifica a importância de julgamentos in loco. Por isso, é obrigatório que o julgador more na comarca em que atua. Autorizações para que juízes possam residir em outras comarcas são excepcionais, dada a importância de se ter uma estrutura que evite o adiamento das audiências.

Nessa discussão, é preciso considerar que vivemos em um país que ainda registra grande desigualdade, que se reflete na falta de acesso em diversas regiões do país a uma conexão de internet de qualidade, que é um item básico para a realização de audiências virtuais. Não ter à disposição uma tecnologia eficiente ou uma conexão confiável implica diretamente em prejuízo para as partes de um julgamento, colocando em xeque a paridade de armas.

Aliás, atento a tais reclamos, e descortinando uma nova realidade pós pandêmica, o CNJ, pela Resolução Nº 481, de 22.nov.2022, regulamentou a dinâmica dos atos telepresenciais, sublinhando a presencialidade das audiências, ao dispor que

“Art. As audiências só poderão ser realizadas na forma telepresencial a pedido da parte, ressalvado o disposto no § 1º, bem como nos incisos I a IV do § 2º do art. 185 do CPP, cabendo ao juiz decidir pela conveniência de sua realização no modo presencial. Em qualquer das hipóteses, o juiz deve estar presente na unidade judiciária.” (grifos nossos).

Ainda em boa hora, o CNJ, na mesma resolução, estabeleceu standards que delimitam quando a realização das audiências se dará na forma telepresencial, por designação de ofício pelo magistrado:

 ·         1º …:

I – urgência;

II – substituição ou designação de magistrado com sede funcional diversa;

III – mutirão ou projeto específico;

IV – conciliação ou mediação no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de Conflito e Cidadania (Cejusc);

V – indisponibilidade temporária do foro, calamidade pública ou força maior. 

Por certo, seria inadmissível saber que nas pequenas e médias comarcas estariam presentes, prefeito, presidente da Câmara de Vereadores, promotor de Justiça, defensor, delegado de polícia, Polícia Militar, médico, bombeiros, padre, pastor etc., e o magistrado… em home office.

Neste passo, como que antecipando o espírito de tal resolução, tenho procurado em minha prática diária como magistrado, atuante perante o 2º grau de jurisdição, prestigiar a presencialidade nas sessões de julgamento, como consectário do princípio da ampla defesa, corolário da cláusula geral de tutela da pessoa humana, que impõe aos órgãos judiciais a fiel oportunização de todos os mecanismos necessários para que o patrono do litigante possa, efetivamente, cumprir o seu mister, que não se esgota, à toda evidência, na sustentação oral, mas espraia-se, do mesmo modo, no amplo acesso aos atos do processo, o que inclui o direito de presença nas sessões de julgamento.

Não se trata, defendo, de mero diletantismo ou superfetação desnecessária, pois que eventuais questões de ordem, tidas como de somenos importância, podem revelar temas que se incorporam ao conjunto de atos processuais, como mais um elemento do amplo direito de defesa, trazendo, em grande número, participações que acabam elucidando questões que, caso não fossem manejadas, poderia desaguar em nulidades ou injustiças, aliás, o que apenas corrobora o entendimento do STJ.

Penso, neste contexto, que assegurar aos causídicos o acesso ao julgamento presencial é consectário lógico da ampla defesa, inscrita no artigo 5º, inciso 55, da Constituição e revela conquista civilizatória que não pode receber interpretação restritiva.

Sob hipótese nenhuma, ressaltamos, se quer repelir os benefícios que a tecnologia pode trazer para a Justiça. Pelo contrário, o Judiciário está atento à forma como a modernidade traz mais celeridade aos tribunais. Mas, insistimos, passada a fase aguda da pandemia, concitamos à comunidade jurídica para que reflita acerca desse “novo normal” que está por vir, sendo preciso ponderar com responsabilidade as mudanças que afetarão o nosso dia a dia.

Um Poder Judiciário digno e acessível encontra-se nos direitos e garantias individuais do cidadão, consolidados no artigo 5°, inciso 35, da nossa Constituição. O processo deve também ser acessível, independente do poder aquisitivo, devendo ser prestada assistência jurídica gratuita aos necessitados, garantindo aos litigantes o contraditório, e ampla defesa, dentre tantas outras garantias que não podem ser, de forma alguma, prejudicadas.

No livro “Nem Home Nem Office”, o CEO de um dos maiores Grupos de co-working do mundo, Tiago Alves, defende que o futuro do trabalho é híbrido. Não há dúvida, porém nos cabe separar o joio do trigo, e inserir no antigo normal os atos judiciais, processos, temas e assuntos de maior relevância.

Enquanto não se tem essa verdadeira medida, faz bem o CNJ e o Corregedoria Nacional em decidir pelo retorno dos trabalhos presenciais, criando, inclusive, um painel onde todos poderão acompanhar esse retorno. Disse o ministro Salomão:

“Temos notícia que, em muitos estados o que estava acontecendo era uma situação de quase abandono, principalmente no interior”. De acordo com Salomão, além do Painel, que registrará o retorno ao trabalho e mostrará a retomada das audiências e de todos os atos processuais, também foi criado um grupo de trabalho (GT) para acompanhar a volta às atividades no Poder Judiciário.

Juntamente com orientações para os tribunais, o GT –que é presidido pelo corregedor nacional de Justiça e composto por integrantes de cada segmento da Justiça de todas as regiões do país– também fiscalizará o cumprimento dos critérios de retorno ao trabalho presencial, conforme determinação do CNJ.

Chegando ao fim, lembro das virulentas críticas assacadas contra a magistratura, quanto ao comparecimento nas comarcas somente às terças, quartas e quintas-feiras, no que os maledicentes se referiam a tal “semana TQQ de trabalho”. Pois bem, agora que há uma quase institucionalização ou imposição dessa prática, soa contraditório integrantes do Judiciário criticarem a imposição do comparecimento, pelo menos, nestes dias da semana.

Assegurar que essas garantias se mantenham intactas significa, como alhures proposto, “…saber caminhar pelos extremos, sem se deixar seduzir para nenhum dos abismos laterais…” ponderando-se os avanços tecnológicos implementados ao longo da pandemia com a garantia da presencialidade nos atos processuais, numa atividade contínua, democrática e dialética.  É o desafio e a prioridade na retomada pós-pandemia.

Marcelo Buhatem
Presidente da Associação Nacional dos Desembargadores (ANDES).

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