Que a inteligência artificial (IA) e suas consequências rondam a sociedade contemporânea não é algo inédito. É possível observar que cada vez mais empresas vêm adotando a IA para aprimorar suas atividades e as Legal Techs que oferecem esse serviço vêm apresentando resultados exponenciais nas últimas décadas. Chamado de “pai da computação”, o matemático inglês Alan Turing, pioneiro da IA, questiona “as máquinas podem pensar? ” em sua obra “Computing Machinery and Intelligence” (1950), e desenvolve um teste chamado de “Teste de Turing”. Tal teste determina se um computador pode demonstrar resultados da mesma maneira como se fossem demonstrados por um ser humano.
Um estudo da IBM Cloud Education, no livro “Artificial Intelligence: a Modern Approach”, Stuart Russell e Peter Norvig, tratou das possibilidades de definições e diferenças na abordagem humana e abordagem ideal. Enquanto a abordagem humana distingue os sistemas que pensam como pessoas e sistemas que agem como pessoas, a abordagem ideal diferencia sistemas que pensam racionalmente e sistemas que agem racionalmente.
Em uma básica conclusão sobre as definições de IA pelos cientistas, independente de qual seja o foco de estudo, conclui-se que a IA se dá por computadores programados para imitar o comportamento humano, sendo necessário utilizar dados expansivos e complexos para que a precisão seja eficaz no resultado apresentado.
Seguindo o raciocínio do cientista Turing, algoritmo é um conjunto não ambíguo de instruções simples e precisas, que são descritas com um número finito de códigos. Significando que o sistema de “inteligência artificial funciona a partir de sistemas de dados programados para dar respostas conforme a base de dados disponível” (Nunes, p. 3, 2018). Logo, a configuração da IA acontece a partir do processamento de uma base extensa de dados repetidas vezes, até que a execução ocorra de forma autônoma.
Apesar de não ser um tema novo, sua aplicação está tomando proporções jamais vistas. A questão principal é que a IA tornou-se o instrumento de solucionar problemas em diversos segmentos comumente acessados pela sociedade no geral, como os exemplos apontados pelo IBM: (i) reconhecimento de voz; (ii) atendimento ao cliente; (iii) visão computacional; (iv) mecanismos de recomendação e (v) negociação automatizada de ações.
O Judiciário não seria exceção na aplicação dessa tecnologia e já se pode observar que o sistema judiciário brasileiro apresentou impactos positivos no que diz respeito, principalmente, aos litígios. Contudo, o âmbito jurídico possui características específicas que envolvem a arbitragem das problemáticas da sociedade, não podendo ser banalizadas pelas empresas que constroem esses sistemas.
IA no setor judiciário
As instituições governamentais e internacionais vêm dedicando atenção para que os direitos fundamentais sejam garantidos na implementação de projetos de IA.
Em setembro de 2015, 193 Estados Membros da ONU adotaram a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e um dos objetivos traçados pelas Nações Unidas para 2030 é a existência de sistemas judiciais acessíveis a todos, providos de eficácia, responsabilidade e inclusão. Logo, verifica-se uma preocupação pela qualidade do sistema judiciário dos países e a busca pela implementação de tecnologias mais avançadas dentro do Judiciário brasileiro se faz cada vez mais necessária.
Para estar em conformidade com os objetivos impostos pela Agenda 2030, o STF submeteu a testes a ferramenta tecnológica chamada de “RAFA 2030 – Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030”, que, por comparação semântica, irá auxiliar os magistrados e servidores na identificação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) colocados pela ONU, em textos de acórdãos ou de petições iniciais em processos do STF.
Em 2018, o Conselho da Europa adotou a primeira Carta Ética Europeia1 sobre o uso da IA no sistema judicial na União Europeia, que se destina tanto ao setor público, quanto ao setor privado que sejam responsáveis pela utilização dos instrumentos e serviços de IA.
A carta apresenta cinco princípios essenciais para a aplicação ética e justa da IA: (i) princípio do respeito pelos direitos fundamentais; (ii) da não discriminação; (iii) da qualidade e segurança; (iv) da transparência, imparcialidade e justiça, e (v) princípio “sob controle do usuário”.
O primeiro objetiva garantir a compatibilidade total da tecnologia com os direitos fundamentais. O segundo abrange a prevenção específica do desenvolvimento ou intensificação de qualquer discriminação de indivíduos. O terceiro versa sobre as decisões e dados judiciais, de forma que sejam feitos em ambiente tecnológico seguro. O penúltimo refere-se à transparência em tornar os métodos de tratamento de dados acessíveis, autorizando auditorias externas. Por fim, o último tem como objetivo garantir que os usuários estejam informados e no controle de suas escolhas.
Fazendo um paralelo entre os princípios trazidos pela Carta de Ética do Conselho da Europa, e a Resolução 332 de 2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), percebe-se que ambos tratam sobre a ética, transparência e governança na produção e no uso da IA no Poder Judiciário.
A Resolução aborda pontos que foram definidos pelos princípios na Carta Ética, entre eles: respeito aos direitos fundamentais; não discriminação; publicidade e transparência; governança e qualidade; segurança; controle do usuário; pesquisa, desenvolvimento e implantação de serviços de IA; prestação de contas e responsabilização. Conclui-se que o Brasil vem adotando as medidas necessárias para o desenvolvimento pleno dessas ferramentas dentro do Judiciário.
O CNJ enfatiza a necessidade da proteção dos direitos fundamentais quanto à aplicação e uso da IA observando-se o previsto na Constituição Federal e tratados dos quais o Brasil é signatário. Além disso, uma dose extra de cautela deve ser aplicada em relação à proteção no uso dos dados pessoais sensíveis e os de segredo de justiça.
A IA aplicada no Judiciário Brasileiro
Uma problemática que assola o Brasil há muitos anos é a quantidade de litígios pendentes de solução definitiva — em 2020 eram 75,4 milhões. Houve uma redução de 21% em relação a 2019, com 27,9 milhões de processos baixados segundo o Relatório Justiça em Números do CNJ2. Todavia, a quantidade de litígios em trâmite é expressiva e permanece sendo um problema para o país. Portanto, para que a aplicação das inovações atinja o objetivo de melhorar o impacto econômico e social atrelado à justiça é necessário que sejam aprimoradas as técnicas de gestão dos órgãos e associados destes.
A ascensão da IA no Judiciário demonstra ser cada vez mais imponente e o governo brasileiro dispôs-se a realizar pesquisas condizentes com a atualidade no quesito tecnologia e avaliações mais específicas dentro do ramo. O Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário, da Fundação Getúlio Vargas, fez uma pesquisa sob a coordenação do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, que revelou diversos dados interessantes sobre a aplicação da IA no Judiciário.
Com o título “Inteligência Artificial - Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário com ênfase em inteligência artificial”, seu objetivo foi realizar um levantamento do uso da IA nos tribunais brasileiros, em específico no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, nos Tribunais Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça. O estudo demonstrou que cerca de metade dos tribunais brasileiros já possuem algum projeto de IA em desenvolvimento ou já implantado.
O relatório identificou que as novas tecnologias aumentam a produtividade, qualidade, gerenciam a escassez a longo prazo, e, conforme mencionado anteriormente, são ferramentas essenciais à gestão dos tribunais.
A atualização constante dentro dos meios de administração dos sistemas de justiça é primordial para que os ordenamentos jurídicos comportem as constantes mudanças em prol da sociedade. Como por exemplo a quantidade de litígios, o próprio relacionamento da sociedade com o sistema de justiça, bem como os tipos de demandas levadas ao judiciário.
Como já mencionado, as ferramentas de IA agregam funcionalidade, mas também podem oferecer riscos. Para assegurar a manutenção da ordem pública e a proteção de todos os interesses e direitos envolvidos, não existe dispensa de análise dos limites a serem submetidos a qualquer implementação de IA.
A pesquisa realizada pela FGV detectou que todos os Tribunais Superiores, Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e grande parte dos Tribunais de Justiça contam com projetos de IA em diferentes fases de implementação; uma boa parcela desses projetos foi desenvolvida ao longo de 2019 e 2020. Segundo o “Relatório Justiça em Números 2021”, do CNJ, o investimento para a aplicação dessas ferramentas no Judiciário ficou em um patamar de R$2,2 bilhões.
A celeridade na tramitação processual, a otimização do atendimento dos advogados e do público, a segurança, a automação de atividades, uma melhor gestão dos recursos humanos para atividade-fim do Judiciário, são os objetivos principais para a implementação de IA nos sistemas judiciários.
A pesquisa do CNJ aponta que o percentual de processos que ingressaram na Justiça pela via eletrônica saltou de 90% do total, em 2019 para 96,9% no ano de 2021. O relatório apresenta diversas medidas implantadas: Juízo 100% Digital, Balcão Virtual, Plataforma Digital do Poder Judiciário e o Programa Justiça 4.0. Apesar desses programas não serem totalmente de IA, os resultados revelam que conforme mais dados são inseridos nas plataformas da Justiça, melhor será a assertividade dos robôs que fazem as análises e projeções.
Três problemas identificados por Isabela Ferrari, Daniel Becker e Eric Wolkart (apud Brito, 2020), são desafios na aplicação da IA na jurisprudência: (i) emprego de datasets viciados; (ii) opacidade dos algoritmos não programados e; (iii) discriminação que pode ser gerada por algoritmos de machine learning.
Os datasets viciados decorrem de uma base de dados de qualidade duvidável, ou até mesmo incompleta. A opacidade dos algoritmos refere-se às informações que serão inseridas e àquelas que serão desconsideradas pelo programador, possibilitando o risco em desconsiderar informações importantes. Por fim, a discriminação do algoritmo, tange ao viés inconsciente do programador, podendo refletir em discriminação de cunho social, racial, de gênero etc., mesmo que não esteja explicito no código.
Os riscos trazidos pela implementação de IA são consideráveis e, portanto, não devem ser minimizados. Os estudos concluem que é através da constante necessidade de aperfeiçoamento de cada sistema que utiliza ferramentas de IA que o combate a esses desafios poderá ser mais eficaz.
Iniciado em 2019, o STJ implementou o Projeto Sócrates que faz análise semântica das peças processuais, identificando casos com matérias semelhantes e pesquisando julgamentos no tribunal que possam servir de precedente para o julgamento do processo em questão. Posteriormente surgiu o Sócrates 2.0, que tem a capacidade de apontar a autorização constitucional invocada para a interposição de recurso especial, os dispositivos de lei apontados como violados ou objeto de divergência jurisprudencial, bem como os paradigmas citados para justificar a divergência.
No tocante ao STF, a ferramenta de IA, VICTOR, é fruto de uma parceria do STF com a Universidade de Brasília (UnB), que tem a capacidade de identificar os principais temas de repercussão geral e a identificação e separação das principais peças do processo. Segundo Brito (2020), a agilidade do VICTOR é impressionante, tomando apenas 5 segundos para realizar esta função que antes demorava 30 minutos. Ou seja, evidente que se fossem realizadas por humanos estas tarefas despenderiam mais tempo e mais verba do Judiciário.
É indiscutível que a IA no Poder Judiciário trouxe muitos impactos positivos e negativos. Em comparação a outros países, o Brasil ainda não tem os mesmos alcances e resultados. Como Brito (2020, p. 93) cita, “ainda estão eles distantes do grau de evolução verificada na experiência americana, limitados à fase de digitalização dos processos e mineração de dados”. Logo, observar as experiências estrangeiras enseja mais chances de escolher os melhores sistemas.
Para orientar países iniciantes, instituições internacionais divulgam suas resoluções sobre o tema, como a Carta Ética Europeia e a Agenda 2030. No mesmo caminho, o STF inicia a fase de testes do RAFA 2030.
Ante o cenário da pandemia do Covid-19, o Poder Judiciário Brasileiro, por meio do relatório Justiça em Números 2021, enfatizou o interesse em acompanhar o contexto internacional apresentando bons resultados em pesquisas estrangeiras.
O Judiciário do Brasil está caminhando na mesma direção que a maioria dos países desenvolvidos, considerando as novas revoluções tecnológicas. Logo, além de melhorar o levantamento de dados sobre os projetos aplicados, é preciso acompanhar as atualizações e resultados de outras experiências para que se possa melhorar os chamados blindpots dos algoritmos e importar as soluções que atendem à demanda da jurisprudência brasileira.
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1 (European Ethical Charter on the Use of Artificial Intelligence in Judicial Systems and Their Environment)
2 Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 2021.
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BRITO, Thiago Souza; FERNANDES, Rodrigo Saldanha. Inteligência Artificial e a Crise do Poder Judiciário: Linhas Introdutórias sobre a Experiência Norte-Americana, Brasileira e sua Aplicação no Direito brasileiro. Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife - ISSN: 2448-2307, v.91, n.2, p. 84-107 set. 2020. ISSN 2448-2307.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Relatório Justiça em Números 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/11/relatorio-justica-em-numeros2021-221121.pdf. Acesso em 28 fev. 2022.
COUNCIL OF EUROPE. European Ethical Charter on the Use of Artificial Intelligence in Judicial Systems and their environment. 31st plenary meeting of the CEPEJ. Estrasburguês, França. Dezembro 2018.
FGV. “Inteligência Artificial - Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário com ênfase em inteligência artificial”. Disponível em: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/estudos_e_pesquisas_ia_1afase.pdf. Acesso em: 01 mar. 2022.
IBM Cloud Education. O que é Inteligência Artificial? Disponível em: https://www.ibm.com/br-pt/cloud/learn/what-is-artificial-intelligence#toc-aplicativo-LCOINXXr. Acesso em 28 fev. 2022.
NUNES, Dierle; MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho. Inteligência artificial e direito processual: vieses algoritmos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. Revista de Processo, v.285, p. 421-447, nov. 2018.
Supremo Tribunal Federal. Projeto VICTOR do STF é apresentado em congresso internacional sobre tecnologia. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/630364706/projeto-victor-do-stf-e-apresentado-em-congresso-internacional-sobre-tecnologia. Acesso em 01 mar. 2022.
Supremo Tribunal Federal. Revolução tecnológica e desafios da pandemia marcaram gestão do ministro Noronha na presidência do STJ. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/23082020-Revolucao-tecnologica-e-desafios-da-pandemia-marcaram-gestao-do-ministro-Noronha-na-presidencia-do-STJ.aspx. Acesso em: 01 mar. 2022.
Supremo Tribunal Federal. STF desenvolve Inteligência Artificial aplicada à Agenda 2030 da ONU. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=481995&ori=1. Acesso em 01 mar. 2022.