Migalhas de Peso

A família transexual: algumas reflexões jurídicas e sociológicas acerca da afirmação de gênero

Se a identidade de gênero do paciente não for respeitada, isto poderá gerar sofrimento psicológico, podendo ser considerada violência obstétrica, e, inclusive, gerar, uma indenização pela dor moral suportada, uma vez que é direito das pessoas trans serem reconhecidas pelo nome e gênero autodeterminado.

1/3/2023

1) Introdução

Não é difícil imaginar os inúmeros desafios enfrentados pelas pessoas transgênero, seja no seio familiar, seja na vivência social.

O preconceito social e as lutas políticas das pessoas transexuais, notadamente, possuem mais visibilidade acadêmica que as batalhas suportadas, primeiramente, em casa, no seio familiar.

Dentro e fora da família, a transição de gênero do pai, da mãe ou do filho enfrenta quotidianamente uma série de provocações decorrentes da nova identidade que envolve a transição de gênero e a paternidade. O impacto dessa reorganização das relações individuais parece eclodir mais fortemente na relação do casal e, deste com os filhos. Há certa preocupação com o olhar do filho para a figura parental.

Há um atravessamento da família pela exclusão e rejeição no tocante à transição. Os pais se inquietam por não saberem lidar com os parentes, com os vizinhos, com a escola, com a comunidade religiosa etc. Este pertencimento grupal familiar tem ampla relevância para a pessoa trans.

A família se vê atravessada por angústias, sobretudo quando a pessoa trans manifesta interesse em modificar o seu corpo, por meio de hormônios ou cirurgias. Alguns familiares manifestam: “se ele/ela  fizer isso, será o fim do contato conosco”. A família teme mais a estigmatização social do que o sofrimento da pessoa trans ao se ver abandonada.

2) Passar juntos pela transição

O apoio familiar parece ser imprescindível neste dificil momento, uma vez que a empatia e a compreensão da diversidade funcionam como refúgio e abrigo. O respeito à identidade de gênero do membro da família é essencial, uma vez que o processo de afirmação de gênero abrange questões diversas concernentes ao ambiente de saúde, escolar e laboral, principalmente.

A implicação de toda a família é inteiramente necessária para impedir ou amenizar a  rejeição  ou solidão. A busca da afirmação da própria identidade e a construção de estereótipos sociais podem levar a uma situação de forte estresse para a pessoa que não se identifica com o gênero conferido por ocasião do nascimento.

As pessoas que possuem identidade de gênero conforme a norma gozam de privilégios não usufruídos por pessoas trans. O desprezo, a discriminação, o bullying e a repulsa são constantes e presentes no quotidiano daquele que luta para ver reconhecida a sua verdadeira identidade.

A transição necessita de cuidados, importante momento em que a família deve estar presente com seu afeto e apoio emocional.

A aceitação da nova identidade do pai ou da mãe durante o processo de transição é progressiva e testa os sentimentos a todo instante, carecendo de diálogo franco e equilíbrio. Os vínculos afetivos se constroem, se reconstroem, independentemente da aparência física, mas esta parece muito contribuir para o julgamento social da pessoa trans.

3) Transfobia

Em decorrência da brutal violência sofrida pela população transgênero, passou-se a considerar crime a prática discriminatória ou preconceituosa contra essas pessoas. Desde junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, criminaliza a transfobia no Brasil, ao estender a incidência da lei 7.716/89, que versa sobre o crime de racismo, por crer apropriada a sua aplicação aos casos de homofobia e transfobia. Vejamos:

“Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por  identidade  de  razão e mediante adequação  típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na lei 7.716, de 8/1/89, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”)”. (BRASIL, 2021)

Consoante aludida lei, serão punidos, os crimes resultantes de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, com penas de reclusão de um a três anos e multa para aquele que praticar, induzir ou incitar essas condutas.

Assim, por analogia, a transfobia, por decisão do Supremo Tribunal Federal, será  enquadrada como crime de racismo. A ofensa à dignidade e ao decoro em razão de  transfobia também é considerada crime de injúria, cuja pena  é a mesma de ofensa por questões de racismo, ou seja,  reclusão de um a três anos e multa.

4) O uso do vocábulo “mãe” para homens trans constitui violência obstétrica?

Cite-se aqui que, desde 2016, o decreto 8.727 rege a obrigatoriedade do uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais nos órgãos e entidades na esfera da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

A propósito, o Provimento 73, de 28 de junho de 2018, dispõe que toda pessoa capaz, maior de dezoito anos, pode alterar o prenome e o gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais, a fim de adequá-los à identidade autopercebida.

Muitos homens trans que dão à luz reclamam do tratamento desrespeitoso e abusivo praticado em alguns hospitais ou casa de saúde durante a gestação ou parto. Suas queixas se referem à chamada violência obstétrica, ou seja, ato e comportamento perpetrados por profissionais de saúde que não respeitam a integridade física, mental e social dos pacientes.

Só recentemente que referidas práticas passaram a ser analisadas sob o prisma  da "violência". No tocante aos homens trans, as críticas se pautam no tratamento “feminino”, como “a mãe”, “a paciente”, “a gestante”, “a parturiente”. Comentários descabidos sobre a identidade de gênero e o processo reprodutivo em pessoas trans são emitidos e propagados, desnecessariamente, por parte de alguns membros da equipe de saúde.

A desumanização do cuidado demonstra o despreparo dos profissionais com a pessoa trans, no importante momento da chegada de um filho. Se o nome e o gênero já estão alterados, por que a insistência em tratar no feminino. Ressalte-se aqui que a pessoa trans não perdeu a sua autonomia ou capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e sua sexualidade. Esse tipo de conduta causa um impacto negativo na qualidade de vida da pessoa trans, levando a sentimentos de perda de auto-estima ou causando transtorno de estresse pós-traumático, podendo  impactar no acompanhamento ginecológico, obstétrico, levando à desistência e à recusa de cuidados médicos.

Alguns homens trans chegam a considerar a possibilidade de dar à luz fora de instituições de saúde. Embora em casa imaginem estar cercados por seus entes queridos e familiares, sendo acompanhados por uma parteira, avaliam que os riscos em possíveis casos de emergência poderiam ser maiores.

5) Considerações finais

O tema deve integrar a pauta dos cursos de atualização dos profissionais da saúde, principalmente médicos e enfermeiros, para que as histórias das pessoas trans sejam analisadas nas maternidades e informadas sobre a caraterização dessa violência. Esta medida permitirá que mais pessoas trans dêem à luz nestas instalações, com maior consideração por parte dos funcionários e prestadores de serviço.

Se a identidade de gênero do paciente não for respeitada, isto poderá gerar sofrimento psicológico, podendo ser considerada violência obstétrica, e, inclusive, gerar, uma indenização pela dor moral suportada, uma vez que é direito das pessoas trans serem reconhecidas pelo nome e gênero autodeterminado.

Cumpre lembrar que, para a caracterização do crime de racismo é demandada a presença do dolo, instituto jurídico que consiste na ação ou omissão consciente e volitiva com a finalidade de causar dano.

É importante reconhecer que as famílias edificadas sob a diversidade são igualmente dignas de deferência, consideração e respeito, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADO%2026%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 22 fev. 2023.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transgêneros. Brasília: Editora Zakarewicz, 2020.

Tereza Rodrigues Vieira
Pós-Doutora em Direito Université de Montreal. Mestre/Doutora em Direito PUC-SP. Especialista em Bioética Fac. Medicina da USP. Docente Mestrado Direito Processual e nagraduação em Medicina e Direito

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