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Análise Inicial do programa Mais Médicos e do Revalida frente à tragédia Yanomami

A pandemia da COVID-19, decretada pela OMS em 11/3/20 , trouxe à tona uma urgência inerente à saúde pública, com a necessidade crescente de médicos na chamada “linha de frente” do combate às doenças.

28/2/2023

O título do artigo já traz a pergunta que o originou. No final de janeiro de 2023, o mundo tomou conhecimento da chamada “Tragédia Yanomami”, como visto nas redes sociais e na imprensa, a ser investigada como possível crime de genocídio dos povos originários ocorrido em pleno século XXI. Descortinou-se a situação a que essa população isolada na Floresta Amazônica, na maior região brasileira habitada por população nativa (que se estende até a Venezuela em área que, somada à brasileira, equivale ao território de Portugal), foi submetida ao longo desses últimos anos: destruição de biomas, desmatamento e alto índice de mortes por desnutrição aguda, malária, contaminação por mercúrio, COVID-19 e doenças sexualmente transmissíveis, além de problemas relacionados ao alcoolismo.

A Pandemia da COVID-19, decretada pela OMS em 11/3/201, trouxe à tona uma urgência inerente à saúde pública, com a necessidade crescente de médicos na chamada “linha de frente” do combate às doenças.

“E os médicos cubanos, onde estão?” – frase repetida quando o público em geral tomou conhecimento da questão que assola um de nossos povos nativos mais representativos e relativamente intocados ressalta como a presença dos médicos cubanos nos rincões mais afastados está no imaginário brasileiro.

Os médicos cubanos foram inseridos no mercado de trabalho brasileiro através do Programa Mais Médicos (PMM), mas pouco se debate sobre as consequências da internalização para os próprios profissionais de saúde intercambistas, que, num primeiro momento, foram autorizados ao exercício da medicina no Brasil, mas ao final do intercâmbio, para poder exercer seu mister em território nacional, devem ser submetidos ao Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos pela Instituição de Educação Superior Estrangeira – REVALIDA.

A investigação é desenvolvida a partir da atual situação do povo Yanomami e traz como hipótese inicial a ampliação do Programa Mais Médicos, definido como Política Pública de Estado, passando pelo redimensionamento da necessidade de revalidação do diploma obtido no exterior pelos médicos cubanos que já trabalharam além do prazo de 3 anos no Brasil pelo PMM, e, ao mesmo tempo, questionando constitucionalmente os seus aspectos jurídicos, que, atualmente, mediante normas infralegais constantes de Editais de Convocação, obstam a participação dos profissionais que não tenham revalidado seus diplomas, compreendendo a interpretação do arcabouço constitucional e legal que envolve a matéria. Essa técnica também será aplicada ao REVALIDA.

Busca-se responder às seguintes questões: os médicos cubanos que integraram o PMM pelo prazo de 3 anos podem exercer a medicina no Brasil? O número de médicos cubanos nessa situação pode oferecer risco à reserva de mercado nacional para o exercício da medicina? Os médicos cubanos na situação mencionada poderiam ser utilizados na emergência de atenção de saúde ao povo Yanomami? O serviço prestado pelo médico intercambista é suficiente para que o seu diploma seja reconhecido pela sociedade brasileira? Apenas a comprovação da prática da medicina é suficiente para atestar a aptidão técnica? A revalidação automática do diploma para os médicos cubanos fere o princípio constitucional de isonomia? O racismo estrutural pode influenciar a tomada de decisão com relação ao tema? Por que os médicos cubanos simplesmente não se submetem ao REVALIDA, como fazem os brasileiros graduados em Medicina que inundaram as Faculdades do Paraguai e da Bolívia, em geral filhos da classe média alta? Os médicos cubanos seriam obrigados a atender às populações nativas brasileiras como condição para permanecerem no Brasil?

Esta é apenas a primeira parte de mais questionamentos que se desdobram à medida em que avançaremos no estudo. No segundo artigo (Parte II), serão analisados os aspectos constitucionais e do bloco de legalidade que envolve a matéria.

O Programa Mais Médicos foi instituído pela Lei 12.871/20132 e visava à melhoria do ensino superior da Medicina e do atendimento à população pelo Sistema Único de Saúde (SUS), levando médicos para regiões com escassez ou ausência de profissionais médicos e, a princípio, interioranas. Nessa fase inicial do PMM, os médicos intercambistas não necessitavam ter registro no CRM para o exercício da Medicina, pelo prazo de até 3 anos3, prorrogável. O art. 16 trata do registro dos médicos intercambistas da seguinte forma: 

Art. 16. O médico intercambista exercerá a Medicina exclusivamente no âmbito das atividades de ensino, pesquisa e extensão do Projeto Mais Médicos para o Brasil, dispensada, para tal fim, nos 3 (três) primeiros anos de participação, a revalidação de seu diploma nos termos do § 2º do art. 48 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.             (Vide Decreto nº 8.126, de 2013)             (Vide Lei nº 13.333, de 2016)

§ 1º (VETADO).

§ 2º A participação do médico intercambista no Projeto Mais Médicos para o Brasil, atestada pela coordenação do Projeto, é condição necessária e suficiente para o exercício da Medicina no âmbito do Projeto Mais Médicos para o Brasil, não sendo aplicável o art. 17 da Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957.

§ 3º O Ministério da Saúde emitirá número de registro único para cada médico intercambista participante do Projeto Mais Médicos para o Brasil e a respectiva carteira de identificação, que o habilitará para o exercício da Medicina nos termos do § 2º.

§ 4º A coordenação do Projeto comunicará ao Conselho Regional de Medicina (CRM) que jurisdicionar na área de atuação a relação de médicos intercambistas participantes do Projeto Mais Médicos para o Brasil e os respectivos números de registro único.

§ 5º O médico intercambista estará sujeito à fiscalização pelo CRM.

Esse tipo de convite à interiorização e à realocação da mão-de-obra médica especializada não é novidade, havendo programas semelhantes no Canadá, Austrália e África do Sul (RIOS E SILVA, 2020), países com extenso território, assim como o Brasil.

O site do PMM descreve que havia urgência com relação à questão. Porém, transcorrida quase uma década do início do Programa, parece que a situação calamitosa não arrefeceu.

Em 2019, Cuba encerrou o intercâmbio de seus profissionais de medicina com o Brasil, ao mesmo tempo em que era editada a lei 13.959/2019, que instituiu, nos moldes que hoje conhecemos, o REVALIDA, exame utilizado para que os médicos formados no exterior possam revalidar seus diplomas para o exercício profissional no Brasil. Apesar de tal modalidade específica de exame para fins de revalidação, qualquer diploma de ensino superior sempre teve que se submeter a algum tipo de revalidação junto ao Governo Brasileiro.

Nesse ponto, os médicos cubanos que optaram por ficar no Brasil não tiveram revalidados seus diplomas e, com isso, criou-se um verdadeiro limbo, posto que ficaram impedidos de exercer a medicina no País4. A própria Lei do Mais Médicos tem proibição expressa para exercício da medicina fora do programa, conforme art. 21, §3º.

Embora surpreendam as pouquíssimas e desatualizadas análises técnico-jurídicas sobre o assunto, há literatura médica sofisticada a ser explorada sobre o tema (FRANCO et al., 2019; PINTO e CÔRTES, 2022; RIOS e SILVA, 2020), com marcos teóricos iniciais para a análise das controvérsias apresentadas. Para o desiderato ora almejado, postas de lado preferências ou ideologias políticas, a integração dos médicos cubanos ao mercado interno encontra posições jurídicas opostas com base em dois enfoques: no primeiro, contrário, argumenta-se que a aglutinação desses profissionais fere a reserva de mercado e a legalidade inerente aos interesses da classe médica, dando tratamento anti-isonômico aos médicos cubanos; no segundo, favorável, defende-se justamente a premência contida na atenção primária à saúde e o fato de que o PMM alcança locais interioranos que os médicos brasileiros, oriundos em sua maioria da classe média alta, desprezam, bem como asseveram que o PMM representa verdadeira ajuda humanitária.

Em tempos de redes sociais com debates acalorados, muito se criticou o Programa Mais Médicos e a internalização de médicos cubanos no Brasil como Política Pública implementada a partir de 2013. Mas, quanto conhecemos de Cuba, sua história, costumes e educação? Como consta de ampla literatura internacional, os escassos meios de produção cubanos, que até a Revolução se resumiam praticamente a uma monocultura de cana-de-açúcar, aliados ao embargo econômico imposto pelos EUA, tiveram grande impacto na economia da ilha.

De acordo com o sítio oficial da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL)5, tomando-se em conta os marcadores Produto Interno Bruto (PIB) em conjunção com renda per capita, o desempenho de Cuba se mostra abaixo da média da América Latina e Caribe. Entretanto, em 2021, a taxa de crescimento da economia foi de 1,3%, com renda per capita de 5.890 US$6, o que mostra certa resiliência do país ao longo de tantas décadas de privações e restrições econômicas. A partir desses dados empíricos, pode-se inferir a situação vivida pelos médicos cubanos, que, apesar da inegável qualidade técnica, constituem mão-de-obra qualificada não remunerada ou sub-remunerada.

Por todos esses aspectos se dessume que o problema econômico pode ser considerado o principal motivo para que os médicos cubanos tenham buscado o Brasil para trabalhar, vendo no PMM uma oportunidade de vida condigna7.

O médico cubano intercambista que aderiu à primeira fase do Programa Mais Médicos para o Brasil vive hoje um dilema: o Programa permitia o exercício da medicina em território nacional sem a revalidação do diploma pelo período de 3 anos, todavia, após esse período, o médico cubano cujo diploma não foi submetido ao Revalida está proibido de exercer a medicina no Brasil. De acordo com os dados oficiais a Universidade Federal do Rio Grande8, cerca de 2.500 médicos cubanos9 ainda vivem no território nacional. Passemos a debater as implicações da situação desses profissionais na Saúde Pública brasileira.

Observou-se ao longo dos últimos anos uma verdadeira batalha de narrativas nas redes sociais sobre a internalização dos médicos cubanos. Esse tipo de discurso aparenta estar ancorado na teoria da modernização, que, grosso modo, culpava o Sul Global pela sua própria indigência, sobretudo econômica, deixando ao largo a divisão internacional do trabalho (GALEANO, 2022, p. 17), que relegou a América Latina e Caribe ao empobrecimento.

Por essa teoria-justificativa da rapinagem europeia e, mais tarde, estadunidense, a América Latina estaria no estado de subdesenvolvimento, enquanto seus algozes históricos seriam o “primeiro mundo”. Quem nunca ouviu a expressão “esse hospital é de primeiro mundo” para se referir a um estabelecimento de qualidade? Essa teoria está enraizada no imaginário da latinidade.

Numa análise inicial da questão examinada, que entrelaça os destinos dos médicos cubanos e da população indígena brasileira, talvez devêssemos refletir até que ponto o preconceito estrutural molda as atitudes sociais e políticas. De acordo com a malfadada teoria da modernização, indígenas representariam um “atraso”, com seu estilo de vida conectado à natureza. Garimpo e extração predatória de madeira, por outro lado, representariam um estágio de “progresso”.

Diante desse quadro, em 2019, os médicos cubanos foram sacados do Programa Mais Médicos. Alguns retornaram a Cuba e outros permaneceram no Brasil sem nenhuma condição de vida comparável àquela que tinham desde 2013, com o início do PMM.

Os discursos de ódio da Internet podem ter influenciado parte da opinião pública sobre a “incapacidade” dos médicos cubanos, ao passo que o próprio Governo Cubano recomendou a volta dos seus profissionais de saúde, mas foi a alteração deliberada dos Editais de Convocação do PMM que fizeram a maior parte do serviço. Numa vista no sítio oficial do programa, é possível ver a exigência da inscrição no CRM para os médicos intercambistas10. Essa exigência não era feita na primeira fase do PMM, que objetivava levar médicos estrangeiros onde os médicos brasileiros, repita-se, geralmente oriundos da classe média alta, não queriam ou não tinham interesse de trabalhar.

Na análise da topografia constitucional sobre o assunto, há que se ponderar o direito social fundamental à saúde (art. 6º da Constituição de 1988) com o inciso XIII, do art. 5º, que dispõe que "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelece".

A prática da medicina, em particular, é registrada e fiscalizada pelos Conselhos Federais de Medicina. O art. 17 da lei 3.268/57 estabeleceu os requisitos necessários ao exercício da profissão: "os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diplomas, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade". Por sua vez, o decreto 44.045/1958, que trata do regulamento dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina, determina no art. 2º, § 1º, alínea "f", que o requerimento de inscrição perante os quadros dos Conselhos Regionais de Medicina deve ser instruído com prova de revalidação do diploma pertinente para aqueles que tenham frequentado o curso de medicina no exterior, dentre outros documentos. E, finalmente, a lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), estabelece, no art. 48, § 2º, que os diplomas estrangeiros devem ser revalidados.

O que pode nos levar à conclusão, então, de que os médicos cubanos estariam isentos da revalidação dos seus diplomas?

Prossigamos com a controvérsia.

Em 21 de janeiro de 2023, descortinou-se a situação degradante que aflige o povo originário Yanomami. Na Casa de Saúde Yanomami, em Boa Vista, capital de Roraima, encontravam-se 715 indígenas em tratamento, a maioria sofrendo de desnutrição severa, malária e contaminação por mercúrio, além de doenças correlatas. As fotografias ganharam o mundo: crianças e adultos yanomamis esquálidos, desnutridos, quase sem conseguir se manter de pé de tanta fraqueza, o que lembrava a calamidade humana vivida no Holocausto.

Os números oficiais são estarrecedores: de 2019 a 2022, 570 crianças yanomamis morreram de causas contornáveis, como desnutrição severa, malária e contaminação por mercúrio. Isso sem se considerar os indígenas afetados na Pandemia de COVID-19.

Mas por que os yanomamis estão vivendo essa situação?

A imagem de satélite disponível a todos parece apontar uma resposta: garimpo ilegal de ouro. Com investimentos massivos em aeronaves, helicópteros e maquinário, as áreas da Floresta Amazônica são rapidamente devastadas e se inicia a extração do ouro, com métodos bastante invasivos para o bioma, como o uso de metais pesados, a exemplo do mercúrio.

Os Yanomamis habitam larga extensão de terra na Floresta Amazônica, distribuídos em cerca de 300 aldeias. Estima-se que a população yanomami seja de 30 mil nativos, ao passo que o garimpo ilegal levou 20 mil garimpeiros ilegais para o mesmo território, aumentando rápida e artificialmente a população da área, trazendo como consequência o aumento de doenças, de crimes e da contaminação da população nativa.

Diante desses fatos, poderíamos supor que os Yanomamis estão montados em verdadeiras minas de ouro? Não é o caso. Há evidências de que há ouro, mas não em quantidades abundantes ao ponto de a terra Yanomami ser considerada uma nova “Serra Pelada”11. De acordo com a ONG Amazônia Real, esta é a quarta escalada do garimpo contra as Terras Indígenas Yanomamis12. A questão, todavia, é que a extração ilegal do ouro yanomami atrai o crime organizado e o narcotráfico, para fins de crimes relativos à lavagem de dinheiro, segundo alguns especialistas.

Essa enxurrada populacional artificial trazida pelo garimpo tornou a caça, a pesca e a coleta – fontes da alimentação dos yanomamis – escassas, o que gera a fome.

O que pôde ser constatado pela comissão governamental de janeiro de 2023 foi uma diminuição considerável dos contratos de locação por viagem de aeronaves, o único meio de transporte possível de acesso ao povo Yanomami, situação que dificultou a ida de médicos e a entrega de medicamentos. Os indígenas em estado mais grave eram levados das aldeias para a capital Boa Vista e deixados à própria sorte na Casa de Saúde Yanomami.

Em julho de 2020, o Ministro do STF Roberto Barroso, no âmbito da ADPF 709, intentada pela Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) e mais seis partidos políticos, determinou ao Governo Federal uma série de providências para o enfrentamento da Pandemia da COVID-19 com relação aos povos originários13, destacando-se: 

1. SALA DE SITUAÇÃO: Que o governo federal instale Sala de Situação para gestão de ações de combate à pandemia quanto a povos indígenas em isolamento ou de contato recente, com participação das comunidades, por meio da APIB, da Procuradoria-Geral da República e da Defensoria Pública da União. Os membros deverão ser designados em 72 horas a partir da ciência da decisão, e a primeira reunião virtual deve ser convocada em 72 horas depois da indicação dos representantes;

2. BARREIRAS SANITÁRIAS: Que em 10 dias, a partir da ciência da decisão, o governo federal ouça a Sala de Situação e apresente um plano de criação de barreiras sanitárias em terras indígenas;

3. PLANO DE ENFRENTAMENTO DA COVID-19: Que o governo federal elabore em 30 dias, a partir da ciência da decisão, com a participação das comunidades e do Conselho Nacional de Direitos Humanos, um Plano de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas Brasileiros. Os representantes das comunidades devem ser definidos em 72 horas a partir da ciência da decisão;

4. CONTENÇÃO DE INVASORES: Que o governo federal inclua no Plano de Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para os Povos Indígenas medida de contenção e isolamento de invasores em relação a terras indígenas. Destacou, ainda, que é dever do governo federal elaborar um plano de desintrusão e que se nada for feito, voltará ao tema.

5. SUBSISTEMA INDÍGENA: Que todos os indígenas em aldeias tenham acesso ao Subsistema Indígena de Saúde, independente da homologação das terras ou reservas; e que os não aldeados também acessem o subsistema na falta de disponibilidade do SUS geral. 

Em atenção ao item 5 supra, a reintegração do contingente de médicos cubanos que ficaram no Brasil na primeira fase do Programa Mais Médicos, sem a imposição do REVALIDA, pode ser um meio sensato e eficaz de agregar à Saúde força de trabalho remunerada altamente qualificada? A resposta é afirmativa porque, além de tudo, não se tratam de quaisquer médicos com registro para trabalhar no país de origem, mas sim de profissionais de saúde que vieram de um país reconhecidamente avançado na ciência médica e com prêmios mundiais em educação, que trabalharam por três anos na linha de frente dos rincões mais isolados do Brasil, sendo constantemente avaliados.

Os números também são favoráveis: 2.500 médicos não parece ser um abalo na reserva de mercado para a comunidade médica brasileira, a qual conta hoje com cerca de 490 mil médicos brasileiros inscritos nos CRMs. Evidentemente, caberia aos médicos cubanos essa manifestação de vontade. Não se trata de não lhes dar outra opção, mas a abertura dessa possibilidade poderia suprir a carência de assistência médica atinente aos povos originários, entre eles, os Yanomamis. A Política Pública é de Estado, como visto, mas a reintegração atual dos médicos cubanos pode ser dirimida por vontade política dos atores envolvidos.

No cotidiano, BARDACH (2001) pondera que os problemas gerados na implementação das políticas públicas se apresentam como um confuso conjunto de detalhes, com a pressão dos grupos de interesses, as exigências retóricas legislativas em especial, a escassez orçamentária, judicialização, rotinas burocráticas e incerteza do comportamento humano.

A integração dos médicos cubanos à comunidade médica brasileira para que possam trabalhar com o Programa Mais Médicos, sem a necessidade de revalidação formal do diploma estrangeiro, afigura-se medida de necessidade do Estado Brasileiro frente aos desafios sociais do século XXI.

RIOS E SILVA (2020) notaram crescimento do índice médico/habitantes no Brasil durante a estada dos médicos cubanos, com significativa redução da carência de médicos em locais tradicionalmente desassistidos. Além disso, a população assistida demonstrou grande apoio ao PMM e ao exercício do trabalho realizado pelos médicos cubanos, a quem consideravam tecnicamente superiores aos profissionais brasileiros, aduzindo que essa excelência não era apenas técnica, mas se estendia ao trato humano (RIOS E SILVA 2020), numa visão holística do atendimento, que levava em consideração técnicas de escuta ativa, algo que não vemos constantemente no atendimento médico dos profissionais de saúde.

Após a saída dos médicos cubanos, houve uma mudança no perfil dos médicos que aderiram ao PMM, com o aumento da candidatura de brasileiros (RIOS E SILVA, 2020).

Mesmo que se retorne ao primeiro estágio do PMM, verificado como o mais promissor para o Brasil, o combate à grave situação do povo Yanomami, por outro aspecto, é complexo e depende de várias vertentes multidisciplinares, com instrumentos de monitoramento e fiscalização, e depende basicamente da reabilitação dos sistemas legais e governamentais14.

A reintegração dos médicos cubanos da primeira fase do PMM pode tornar-se o primeiro passo para agregar ao sistema de reabilitação da população Yanomami. Para tanto, um novo bloco de legalidade também poderia iniciar a reintegração dos médicos cubanos, oferecendo-lhes a possiblidade de se juntar à Força Nacional do SUS15.

Num segundo momento, como um reconhecimento dos serviços prestados à sociedade brasileira, a concessão da licença oficial, qual seja, a inscrição no CRM, atende os princípios da ética e da equidade que cercam os objetivos do Programa Mais Médicos.

Evidentemente, o atual Governo pode ressignificar a questão, adotando a linha de governança inclusiva, e para tanto, não se requer um aparato constitucional ou legislativo de grande força normativa, basta decisão política.

Uma boa notícia, já amplamente divulgada e que faz com que os argumentos aqui compreendidos tomem uma força de autoridade, transgredindo fronteiras, se refletem na decisão proferida em 28/1/23, pelo Desembargador Federal Carlos Augusto Pires Brandão, do Tribunal Regional da 1ª Região (TRF1), que atendeu a um pedido da Associação Nacional dos Profissionais Médicos Formados em Instituições Estrangeiras e Intercambistas, para que a 20ª Turma do Programa Mais Médicos, formada por médicos intercambistas cubanos, fosse reintegrada ao Programa.

Na decisão, ainda não-exauriente, foi fixado o prazo de 10 dias para a recontratação de tais profissionais. A fundamentação tem espeque em duas vertentes: a primeira, residente no momento de crise humanitária envolvendo os indígenas Yanomami, de modo que a recontratação dos médicos pode permitir a implementação de ações de Saúde Pública na Região Amazônica ("não se pode negar que esse programa prioriza a ocupação de vagas nos municípios mais carentes, inclusive com a função de combater os efeitos da pandemia do coronavírus"); e, segundo, o destaque à segurança jurídica que envolve a situação dos médicos cubanos que criaram laços no Brasil (“cabe ressaltar que questões humanitárias também se materializam em torno do núcleo familiar dos profissionais. Mostra-se evidente a quebra de legítima expectativa desses médicos, que, em ampla maioria, já constituíram famílias em solo brasileiro").

No segundo artigo (Parte II), será debatido se o arcabouço legislativo e constitucional atualmente existente permite o registro dos médicos cubanos e dos demais intercambistas egressos do PMM perante os CRMs, independentemente da revalidação dos seus diplomas.

________________

1  https://www.paho.org/pt/brasil

2 http://maismedicos.gov.br

3 Apesar das necessidades prementes de assistência médica no vasto território brasileiro, Rios e Silva (2020) ponderam que “apesar de pela primeira vez uma ação governamental integrar em um mesmo programa a proposta de redistribuição dos profissionais médicos, a implementação de mudanças no processo de formação médica, bem como a melhoria da infraestrutura das unidades básicas de saúde, o mesmo foi amplamente criticado pela categoria médica e por outros setores sociais, que caracterizavam o PMM como ‘uma farsa’, elaborado apenas com objetivos políticos, visto que a baixa adesão de profissionais brasileiros a determinados territórios dar-se-ia em decorrência das ‘péssimas’ condições de trabalho na atenção primária do Brasil.”

4 Vide reportagem sobre a situação atual de alguns dos médicos cubanos que ficaram no Brasil no link https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2022/12/17/a-vida-de-medicos-cubanos-que-ficaram-no-brasil.htm

5 www.cepal.org

6 Dólares norte-americanos

7 Gaelano já advertia: “(...) atualmente, segundo o escritório Internacional de Educação da UNESCO, Cuba apresenta a menor porcentagem de analfabetos e a maior porcentagem de população escolar, primária e secundária, da América Latina. No entanto, a herança maldita da ignorância não pode ser superada de um dia para o outro – tampouco em doze anos. A falta de quadros técnicos capazes, a incompetência da administração, a desorganização do aparato produtivo e a temerosa resistência à imaginação criadora e à liberdade de decisão continuam interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas a despeito de todo o sistema de impotências, forjado por quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está nascendo de novo, com um entusiasmo que não cessa: multiplica suas forças, alegremente, entre os obstáculos” (p. 110). No site da CEPAL, é possível encontrar evidências de que o Governo Cubano vem aumentando o gasto em educação, desde 2019, numa linha ascendente (https://statistics.cepal.org/portal/cepalstat/dashboard.html?indicator_id=460&area_id=408&lang=es)

8 https://ppgsp.furg.br

9 Dados do Ministério da Saúde demonstram que, com relação ao número de médicos brasileiros em exercício no Brasil, “de 2010 a 2020, o número de profissionais passou de 315.902 para 487.275 e, segundo o modelo proposto, deve chegar a 815.570 médicos até 2030” (www.gov.br)

10 http://maismedicos.gov.br/editais-abertos-anteriores

11 A mina de ouro chamada Serra Pelada se localizava no Sul do Estado do Pará, no Brasil, e era conhecida por ter grandes jazidas. A falta de planejamento e políticas públicas causou a devastação ambiental, propiciou diversas atividades criminosas e consequências horríveis para a população do local e aquela que migrou do Nordeste do Brasil, nos anos 1980. Quando o ouro acabou, restou um quadro de terra arrasada na região, que nunca se reergueu.

12 www.amazoniareal.com.br. De acordo com o sítio, “o Brasil vive a sua quarta grande corrida do ouro legal na Terra Indígena Yanomami. A primeira ocorreu nos anos 1970, patrocinada pelos militares e em plena ditadura. A segunda, nos primeiros anos da Nova República; e a terceira nos anos 1990 que resultou, em 1990, no assassinato de 16 Yanomami da aldeia Haximu, na Venezuela. Dos 23 garimpeiros acusados pelos massacres e extração ilegal do ouro, apenas 5 foram condenados pelo genocídio. Alguns daqueles criminosos operam hoje dentro da TI Yanomami, em solo brasileiro. Nesta atual corrida, intensificada desde 2019, já são mais de 26 mil garimpeiros invasores em Roraima, um estado hostil aos direitos indígenas”.

13 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=447103&ori=1

14 Cabe ao atual governo punir os empresários financiadores do garimpo ilegal, aqueles que procedem à receptação do ouro e, nesse ponto, a certificação do produto é imprescindível (Sosa e Ibarra, 2001), para que se constate a origem sustentável do produto no mercado exterior e que os lucros sejam revertidos para os próprios Yanomamis. Vê-se, portanto, que a comunidade internacional tem um papel fundamental para a preservação do meio-ambiente e da população Yanomami.

15 https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/saes/dahu/forca-nacional-do-sus

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Síldilon Maia Thomaz do Nascimento
Especialista em Direito Processual Civil - UnP, Especialista Direito e Processo Eleitoral - UnP, Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB. Advogado.

Andréia Alvarenga de Moura Meneses
Mestranda em Direito e Políticas Públicas - UNIRIO. Servidora Pública Federal.

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