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Recuperação judicial da Americanas: desafios e oportunidades

O caso do Grupo Americanas se constituirá em ímpar oportunidade de se explorar todas as possíveis alternativas normatizadas para o processo de recuperação e falência de empresa.

27/2/2023

No mundo dos negócios sabe-se que nem tudo se mantêm sólido de modo permanente, ficando, evidentemente, sujeito às intempéries da própria atividade do mercado no cenário nacional e internacional. Em razão disso, por diversos motivos, em dado ciclo do tempo, é possível que uma empresa, independentemente de sua pujança, possa entrar em uma fase, transitória ou não, de grandes dificuldades econômico-financeiras que possam impactar sobremaneira na manutenção de suas atividades essenciais, embora sendo patente sua viabilidade no segmento de atuação, com indiscutível relevância no âmbito social e econômico, até mesmo de considerável interesse de políticas governamentais, de modo a exigir deliberações que permitam restabelecer a confiança e sustentabilidade nos negócios reposicionando-a em condições de normalidade. Tem-se aí, como alternativa, a via da recuperação judicial (LRF: lei 11.101/05) em cujo procedimento se apresenta o que se pretende, as condições e prazos para cumprimento, levando-se a um debate interativo com a universalidade de credores existentes para oportuna deliberação em sede própria, a Assembleia de Credores, sobre as propostas apresentadas, com ou sem aditivo, no plano de recuperação judicial, sem desconsiderar a possibilidade de plano alternativo ofertado pelos credores (art. 56, § 7º). Mas, não se pode olvidar, tratar-se de instrumento que viabiliza meios para sua recomposição em condições competitivas na dinâmica e lógica de mercado, pois “a superação da crise econômico-financeira da devedora deve buscar a proteção do emprego dos trabalhadores, dos interesses dos credores, a manutenção da fonte produtora e a realização da função social da empresa.” conforme lição de Daniel Carnio Costa.1

Não se desconhece que o procedimento de recuperação judicial de empresas, em especial, não está isento de alto índice de litigiosidade, o que é natural, pois as propostas apresentadas no mais das vezes causam considerável desconforto nas expectativas dos credores em suas respectivas classes, isso sem desconsiderar as hipóteses em que, mesmo não sendo determinados créditos sujeitos aos seus efeitos, como aqueles com garantia de alienação ou cessão fiduciária de bens ou direitos, acabam, de maneira tangenciada, sendo afetados em razão de questões relativas à essencialidade desses para a manutenção das atividades da recuperanda, o que leva ao acirramento de embates nos tribunais para que se façam prevalecer as normas de regência, evitando fragilizar a segurança dos negócios jurídicos firmados entre partes.

Mas, quando então se depara com uma recuperação judicial de macro dimensões, de abrangência  transcontinental, como é o caso do Grupo Americanas, que agitou o mercado como um todo, sem dúvida os desafios são elevados índices de proporções geométricas. Exige de todos e, em especial, do conjunto de credores, uma atuação diferenciada e assertiva que, por um lado, permita a plena defesa de seus créditos e, por outro, que não resulte na inviabilidade do procedimento que poderia levar ao indesejável, à quebra, que seria o pior dos cenários.

É de se consignar, outrossim, que nesse ambiente recuperacional as habilidades negociais, aquele tino de articulação do convencimento, de ambos os lados, são fundamentais para que por meio de debates constantes e construtivos seja possível alcançar um denominador comum que torne possível uma solução menos traumática. Logo, estando na recuperação judicial uma oportunidade quase única para se instalar um cenário de convergência de interesses contrapostos, no sentido da doutrina de Fabio Ulhoa Coelho para quem “o procedimento da recuperação judicial, no direito brasileiro, visa criar um ambiente favorável à negociação entre o devedor em crise e seus credores.”2

Eventuais ilicitudes que porventura sejam detectadas em atos de gestão dos negócios da recuperanda, inclusive, de movimentações atípicas de ativos – blindagens patrimoniais –, devem ser apuradas por via própria, no devido processo legal, contando-se com atuação pontual do órgão do Ministério Público no caso concreto sob o crivo do juízo recuperacional.

Por certo, em determinado momento, quando diante de alta concentração de litigiosidade que esteja comprometendo sobremaneira a regularidade da tramitação do processo recuperacional, suas deliberações e conclusões relativas aos objetivos principais desse procedimento, é possível que se adote o instrumento da gestão democrática3, designando-se audiência para esse fim, visando, em especial, estimular um debate construtivo entre partes e eliminar o máximo de arestas eventualmente existentes e com isso permitindo o destravamento de seu fluxo regular, levando-se as propostas ao seio deliberativo com considerável margem de segurança jurídica nessa modalidade de  instrumento de soerguimento da empresa em recuperação judicial.

Proporcionar às recuperações judiciais esse viés mais negocial, com participação ativa dos credores nos processos, nitidamente foi um dos objetivos visados pelas alterações introduzidas pela lei 14.112/20 a qual tipificou diversas possibilidades de negociação entre as partes antes e durante o curso do processo recuperacional, o que pode ser verificado por meio da inclusão da Seção II-A na norma com o tópico “Das Conciliações e das Mediações Antecedentes ou Incidentais aos Processos de Recuperação Judicial’.

No entanto, ante aos conflitos de interesses que envolvam processos dessa natureza, as negociações nem sempre se mostram possíveis. De um lado, temos o princípio da preservação da empresa e sua função social; de outro, estamos diante dos princípios que protegem os interesses e direitos da coletividade de credores. Gera-se assim a necessidade de superação desse dualismo pendular, visando dar efetividade à norma para se atingir a finalidade do instituto da recuperação judicial. Como a própria denominação diz, o objetivo é recuperar a empresa, isso significando tirá-la de um ambiente nocivo de adversidade.

Indo de encontro a isso, visto que o objetivo maior da norma é recuperar a empresa, reinserindo-a no mercado, sabe-se que se exigir uma conjugação de esforços múltiplos de todos os envolvidos, o  que torna inevitável que os credores tenham que assumir ônus para viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, suportando os impactos diretos no pagamento de suas dívidas, justamente para evitar o não recebimento do seu crédito, o que ocorreria na hipótese de a empresa vir a falir e não possuir ativos suficientes para quitação do seu passivo.

Dessa forma, mostra-se essencial que haja um equilíbrio entre os interesses de todos quando estamos diante de um processo recuperacional, considerando a litigiosidade, a quantidade de pessoas envolvidas e os riscos iminentes de uma eventual falência, fato este não desejado ante aos prejuízos que seriam causados a todos.

Dentre os benefícios concedidos pelo instituto, temos que ele gera ao credor a possibilidade do recebimento de seu crédito, mesmo que parcialmente e em condições menos favoráveis, ao Estado, pois se evita o descumprimento de obrigações tributárias por parte da recuperanda. A empresa evita sua falência, pois a norma proporciona um ambiente seguro à devedora para renegociar seu passivo de forma conjunta com todos os seus credores, por meio da apresentação de um plano de recuperação no processo no qual preveja a aplicação de deságio (desconto) no pagamento da dívida, carência, possibilidade de extenso parcelamento e aplicação de critérios de atualização menos onerosos, com taxas de juros plausíveis para esse tipo de proposta, se comparadas às praticadas no mercado.

Importante ressalvar que o deferimento da recuperação judicial somente deve ser concedido a empresas viáveis, ou seja, aquelas que possuem reais condições financeiras de se recuperar e que não estejam em um cenário pré-falimentar, justamente para dar efetividade ao instituto, no qual após deferido o processamento, concedendo-se o benefício, a devedora passa a usufruir de um período de blindagem patrimonial, chamado de stay period, previsto no art. 6º, § 4º da lei 11.101/05 que é a suspensão por 180 dias prorrogáveis por mais 180 dias, das execuções ajuizadas contra o devedor em questão, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial, sendo este prazo essencial para que a empresa possa confeccionar seu plano e renegociar suas dívidas com os credores, tornando factível submetê-lo à deliberação pela Assembleia Geral de Credores em momento oportuno.

Com a alterações inseridas pela lei 14.112/20 o stay period citado poderá vir a ser concedido mesmo antes do ajuizamento da ação recuperacional, por meio do ajuizamento de tutela provisória cautelar de urgência, em caráter antecedente, preparatória de um processo recuperacional, com fundamento nos art. 189 e 6º, § 12 da lei 11.101/05 (LRF) e nos art. 305 e seguintes do CPC vigente, visando antecipar total ou parcialmente os efeitos do deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial, como ocorrido no caso do Grupo Americanas. No entanto, cumpre ressaltar que a norma impõe nos termos de art. 20-B § 3º da LRF que o prazo de suspensão concedido na tutela de urgência será deduzido do período de suspensão previsto após o deferimento da ação recuperacional, do stay period, fato este não ocorrido no processo recuperacional do grupo citado, tratando-se assim de importante precedente que possa vir a ser utilizado em situações similares.

Outros benefícios inerentes à recuperação judicial é a possibilidade da venda integral da empresa, em que se permite, desde que garantidos os direitos dos credores não sujeitos à recuperação ou não aderentes ao plano apresentado, a formalização do DIP Financing que nada mais é que a celebração de contratos de financiamento garantidos pela oneração ou alienação fiduciária de bens e direitos pertencentes ao ativo não circulante, visando suprir a falta de fluxo de caixa da recuperanda para financiar as suas dívidas, e a possibilidade da venda dos bens da empresa sem nenhuma sucessão das dívidas pelos adquirentes, fatos esses que proporcionam à recuperanda um ambiente mais seguro e favorável para honrar os compromissos assumidos e, permitir a quitação de seu passivo.

Em contrapartida temos algumas desvantagens do instituto, já que para a recuperanda se apresenta como os custos do processo a serem dispendidos com os honorários dos advogados, do administrador judicial, de perito técnico, dentre outros profissionais especializados que se fazem necessários em processos dessa natureza. Tem-se, ainda, as consequências referentes a sua exposição no mercado como uma empresa em recuperação judicial, pois em muitas vezes se vê em dificuldades de acesso a novos créditos, o encerramento de contratos pactuados com fornecedores, dificuldades em manter e angariar clientes, o impacto do vencimento antecipado de suas dívidas, além do risco de ter sua falência decretada, caso não haja o cumprimento dos prazos e exigências legais, ou na hipótese de não ter seu plano aprovado pelos credores.

Já para os credores as principais desvantagens do processo recuperacional é a novação da dívida em face da empresa com condições de pagamento muito mais prejudiciais às pactuadas originalmente e com uma morosidade muito maior no recebimento do seu crédito – cujo pagamento via de regra se inicia após considerável período de carência –, a impossibilidade de prosseguir com suas ações de cobrança ajuizadas em face da empresa recuperanda com relação a créditos sujeitos aos efeitos recuperacionais, a impossibilidade de penhorar bens que podem ser considerados essenciais à atividade da empresa, mesmo referentes a créditos extraconcursais, além da impossibilidade de autoliquidar-se, mesmo com previsão desta hipótese nas cláusulas contratuais pactuadas entre as partes.

Além disso, em análise ao processo recuperacional do Grupo Americanas, outro ponto que pode representar preocupação aos credores, em específico as instituições financeiras, reside em decisão proferida no processo que ordenou a devolução de valores compensados para quitação de uma dívida antes mesmo da distribuição do pedido de tutela de urgência pelo credor. Sustentou-se a tese de que as decisões proferidas neste tipo de procedimento possuem efeitos apenas ex nunc sendo, portanto, a retroatividade incabível, sob pena de se causar insegurança jurídica aos atos praticados antes da instalação do processo recuperacional, no qual a discussão ainda se encontra em curso, o que poderia ocasionar a criação de um importante precedente a repercutir em diversos outros casos semelhantes.

Em que pesem vantagens e desvantagens previstas no instituto da recuperação judicial, fato é que a norma proporciona um ambiente propício para que haja, sim, uma ampla renegociação de dívidas com os credores, que deve ser considerada e utilizada como uma valiosa ferramenta para defesa dos interesses de todos os envolvidos no litígio, visando proporcionar eficácia ao instituto e tornar o plano menos gravoso aos credores e à própria empresa recuperanda, obtendo, assim, objetivos comuns, quais sejam o recebimento do crédito pelos credores, evitar uma decretação da falência da empresa e proporcionar a esta sua reinserção no mercado em condições competitivas, com  crescimento de forma sustentável.

Reportando-se especificamente ao caso do Grupo Americanas, a dinâmica não será diferente, considerando a expressiva dimensão dos valores  envolvidos, bem como a imensa quantidade de credores interessados na solução do caso, os interesses correlatos no contexto social e de mercado, cenário esse em que a habilidade de negociação de todos se mostrará como uma ferramenta fundamental para proporcionar mais efetividade aos objetivos do pleito recuperacional, permitindo uma melhor expectativa de todos os envolvidos, levando à necessidade da mudança de paradigma para a efetiva resolução dos conflitos, repensando o processo sob o enfoque da conciliação.

Concluindo, o caso do Grupo Americanas se constituirá em ímpar oportunidade de se explorar todas as possíveis alternativas normatizadas para o processo de recuperação e falência de empresas, sobretudo, para se atingir, com margens consideráveis de segurança jurídica, os objetivos principais regidos nesse sistema, em especial, concretamente e com efetividade, permitir que  empresa em dificuldade obtenha aprovação de propostas que a um só tempo vá de encontro às suas expectativas e, de outro, que não reflita em prejuízos expressivos à universalidade de credores em suas respectivas classes de enquadramento, sem olvidar, por oportuno, ser indispensável o resgate de sua credibilidade no mercado para permitir, inclusive, sua sustentação por meio de credores que optem por se manterem como parceiros da empresa nessa fase de calmaria de tormentas, contribuindo para o êxito dos planos propostos e aprovados, dentro das balizas da legalidade.

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1 O fresh start no novo sistema de insolvência empresarial brasileiro. Revista do Advogado. São Paulo, 150, jun/2021, p. 9

Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 243

3 “Os processos andam mais rápido na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. As tomadas de decisões foram facilitadas depois que o juiz Daniel Carnio Costa resolveu inovar e implantar o que batizou de "gestão democrática". Por meio de audiências com todas as partes, define-se os passos de uma recuperação judicial ou de uma falência, reduzindo o tradicional vai e vem de petições e despachos.” - Magistrado inova em recuperação judicial | TMA Brasil - disponível em 15/2/23.

Jorge Chagas Rosa
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos / Pós graduado em Direito Empresarial / Pós graduado em Direito Processual / Inteligência Artificial e Direito / Compliance / LGPD / Advogado Master

Joice Chiarotti D’Andrade
Advogada especialista em Recuperação Judicial e Falência do escritório Reis Advogados (SP), graduada em Direito pela UNAERP (universidade de Ribeirão Preto) e cursou MBA executivo em Direito: Gestão e Business Law pela FGV - Fundação Getulio Vargas.

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