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A desconsideração da personalidade jurídica e o sócio minoritário

O fato de o sócio ser minoritário não faz concluir, automaticamente, que ele não tem poderes de gestão e que, portanto, não deve responder com seu patrimônio pessoal.

27/2/2023

A redação original do art. 50 do Código Civil admitia que a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade devedora alcançasse os bens particulares de quaisquer sócios desta, já que não havia diferenciação expressa entre minoritários e majoritários:

Art. 50 - Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica1.

Em decorrência disso, muitos julgados, ao decretar a superação temporária da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, acabavam por incluir, no polo passivo da demanda, a integralidade dos sócios, pouco importando se havia ou não poderes de gestão. Veja-se:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. 1. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. SÓCIO MINORITÁRIO. INDIFERENÇA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. 2. EX-SÓCIO. INAPLICÁVEIS AS REGRAS DOS ARTS. 1.003 E 1.032 DO CC. SÚMULA 83/STJ. 3. AGRAVO DESPROVIDO.

1. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, não há distinção entre os sócios da sociedade empresária no que diz respeito à disregard doctrine, de forma que todos eles serão alcançados2. Assim, tendo o acórdão a quo asseverado estarem preenchidos os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, torna-se inviável infirmar tais conclusões sem que se esbarre no óbice da Súmula 7/STJ.

2. Não se aplicam os arts. 1.003 e 1.032 do CC para os casos de desconsideração da personalidade jurídica, a qual tem como fundamento o abuso de direito efetivado quando a parte ainda integrava o quadro societário da pessoa jurídica alvo da execução.

Acórdão recorrido em harmonia com a jurisprudência desta Corte Superior, atraindo a incidência da Súmula 83/STJ.

3. Agravo interno desprovido”.

(AgInt no AREsp 1.347.243/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 18/3/19, DJe de 22/3/19)

“agravo de instrumento. Ação de Indenização. Fase de cumprimento de sentença. Oposição de Exceção de Pré-Executividade por sócia minoritária contra decisão que deferiu a desconsideração da personalidade jurídica da Empresa executada. inconformismo da executada deduzido no Recurso, anunciando o propósito de prequestionamento. rejeição. Desconsideração da personalidade jurídica que atinge administradores ou sócios da pessoa jurídica, "ex vi" do art. 50 do Código Civil. Decisão mantida. recurso não provido”. (TJSP, Agravo de Instrumento 2226747-76.2017.8.26.0000, Relatora Daise Fajardo Nogueira Jacot, 27ª Câmara de Direito Privado, data do Julgamento: 31/7/18)

“agravo de instrumento. ação declaratória de inexigibilidade de cambiais c/c danos morais. cumprimento de sentença. decisão interlocutória que rejeitou exceção de pré-executividade, reconhecendo a legitimidade da parte. insurgência do sócio incluído no polo passivo da ação em cumprimento de sentença após desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora. insurgência da parte somente quanto a legitimidade. defesa de que foi incluído no contrato social como formalidade que se fazia necessária. alegação de não ter se beneficiado com a empresa e de ser sócio minoritário. indiferença. situações que não afastam sua responsabilidade pelo adimplemento das obrigações contraídas pela empresa que teve sua personalidade desconsiderada3. decisão mantida. agravo de instrumento conhecido e não provido”. (tjpr - 13ª Câmara Cível - 0008243-48.2019.8.16.0000, Relatora Desembargadora Rosana Andriguetto de Carvalho -  j. 21/8/19)

Ou seja, caso estivessem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, bastava a condição de sócio para que houvesse o redirecionamento da execução.

No entanto, com o advento da Lei da Liberdade Econômica – Lei 13.874/19 –, o art. 50 do Código Civil passou a estender as obrigações da sociedade, após desconsideração, aos administradores (sócios ou não) e àqueles sócios que tivessem sido beneficiados, direta ou indiretamente, pelo abuso.

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Assim, além de finalmente conceituar o desvio de finalidade e a confusão patrimonial (art. 7.º) – requisitos da disregard doctrine até então não definidos legalmente –, a lei de 13.874/19 identificou, ainda, quem poderá ser alcançado após superada a autonomia patrimonial da pessoa jurídica4.

Não é mais possível, portanto, afirmar que todos os sócios, indistintamente, responderão pelos débitos da pessoa jurídica caso ocorra a desconsideração. De acordo com a nova sistemática, o procedimento executivo apenas será redirecionado àqueles que, comprovadamente, forem beneficiados, direta ou indiretamente, pelo ato fraudulento.

Pode-se dizer, então, que o sócio minoritário está excluído dos efeitos da desconsideração? A resposta é negativa.

Principalmente após a edição da lei 13.874/19, a jurisprudência tem se direcionado no sentido de que o sócio minoritário, por não possuir poderes de gestão, não pode ser atingido pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

Todavia, o que importa aferir, no caso concreto – além dos requisitos específicos da desconsideração –, é se o sócio, ainda que minoritário, efetivamente teve ou não poderes de gerência ou administração. Deve também ser levado em consideração se esse sócio, ainda que sem poderes de gestão, tinha conhecimento ou se se beneficiou, de alguma forma, com o ato ensejador da desconsideração. Observe-se:

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. HERDEIRA. SÓCIO MINORITÁRIO. PODERES DE GERÊNCIA OU ADMINISTRAÇÃO. ATOS FRAUDULENTOS. CONTRIBUIÇÃO. AUSÊNCIA. RESPONSABILIDADE. EXCLUSÃO.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos 2 e 3/STJ).

2. Cuida-se, na origem, de ação de indenização por danos morais e materiais na fase de cumprimento de sentença.

3. A questão central a ser dirimida no presente recurso consiste em saber se a herdeira do sócio minoritário que não teve participação na prática dos atos de abuso ou fraude deve ser incluída no polo passivo da execução.

4. A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica.

5. No caso dos autos, deve ser afastada a responsabilidade da herdeira do sócio minoritário, sem poderes de administração, que não contribuiu para a prática dos atos fraudulentos.

6. Recurso especial não provido”.

(REsp 1.861.306/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 2/2/21, DJe de 8/2/21.)

“CIVIL E SOCIETÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. EX-SÓCIO MINORITÁRIO. AUSÊNCIA DE PODERES DE GERÊNCIA OU ADMINISTRAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO DE ATOS FRAUDULENTOS. EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.

1. A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou quem comprovadamente contribuiu para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica. Precedentes.

2. As obrigações que geram solidariedade entre cedente e cessionário, nos termos do art. 1.003 do CC, são aquelas vinculadas diretamente às quotas sociais, não alcançando outras decorrentes da eventual prática de ato ilícito. Precedentes.

3. No caso dos autos, foi afastada a responsabilidade de ex-sócia ao fundamento de que jamais participou da gestão da sociedade, tampouco teve sua conduta vinculada à prática de ato abusivo ou fraudulento.

Ao assim concluir, o acórdão recorrido harmoniza-se com o entendimento desta Corte Superior, atraindo a incidência da Súmula 83/STJ.

4. Agravo interno não provido”.

(AgInt no REsp 1.924.918/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 12/12/22, DJe de 14/12/22)

Isto é, o fato de o sócio ser minoritário não faz concluir, automaticamente, que ele não tem poderes de gestão e que, portanto, não deve responder com seu patrimônio pessoal. Outros elementos devem coexistir (gerência, benefício ou ciência), a fim de se afastar, por completo, o redirecionamento da execução.

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1 Redação original.

2 Grifo nosso.

3 Grifo não contido no original.

4 Conforme se extrai da exposição de motivos da Medida Provisória 881/2019, convertida posteriormente na Lei 13.874/2019, as definições claras quanto aos requisitos da disregard doctrine refletem o desiderato da leigarantir que aqueles empreendedores que não possuem condições muitas vezes de litigar até as instâncias superiores possam também estar protegidos contra decisões que não reflitam o mais consolidado entendimento”.

Giuliane Gabaldo
Advogada e membro do Escritório Professor René Dotti.

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