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A prática de sham litigation no rol legal de infrações à ordem econômica

Espera-se que o projeto seja aprovado e venha a ganhar força de lei, reforçando a importância e relevância da coibição de práticas anticompetitivas de forma ampla.

27/2/2023

Foi aprovado no Senado Federal o PLS 144/18, que visa a incluir no rol legal de condutas anticompetitivas o abuso do direito de petição com finalidades anticoncorrenciais, prática conhecida como sham litigation.

Embora louvável a intenção de reconhecer expressamente o sham litigation como uma prática anticoncorrencial, o Projeto de Lei em questão, além de nada inovar na seara do direito econômico concorrencial, como se passará a explicar, deixa em aberto a definição dos elementos caracterizadores da infração. Em outras palavras, o PLS visa apenas a listar uma prática já amplamente reconhecida pelos tribunais administrativos de defesa da livre concorrência, sem inovar em nenhum quesito no que se refere à sua definição ou caracterização.

A prática, além de tudo, não é uma novidade. Ela decorre, em verdade, de uma construção jurisprudencial que se iniciou no direito norte-americano na década de 1960, mais precisamente nos casos Eastern Railroad Presidents Conference v. Noerr Motor Freight Inc, 365 U.S. 127 (1961) e United Mine Workers v. Pennington, 381 U.S. 657 (1965). Segundo a doutrina clássica conhecida como Noerr-Pennington, não seria possível reconhecer um abuso no direito de petição, uma vez que a todos seria concebido o direito de buscar uma tutela estatal indiscriminadamente.

Muito embora não tenha sido caracterizada a prática de sham litigation nos casos acima, foi ventilada, pela primeira vez na jurisprudência norte-americana, a possibilidade de se conceber uma exceção à inviolabilidade do direito de petição nos casos em que o escopo do jurisdicionado não seja o de obter uma tutela estatal para determinada contenda, mas criar empecilhos e dificuldades a um concorrente, o que configuraria uma ofensa às Seções 1 e 2 do Sherman Anti-Trust Act (1890).

Anos depois, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu, pela primeira vez, a prática de sham litigation no caso California Transport v. Trucking Unlimited, (1972). No referido caso, restou consignado que a prática reiterada de ações com ou sem causa provável de êxito (pattern litigation) poderia configurar, em conjunto, uma ofensa ao Sherman Anti-Trust Act (1890), em razão da configuração do abuso do processo judicial ou administrativo. 

Em 1993, no caso Professional Real Estate Investors, Inc. v. Columbia Pictures, Inc., a Suprema Corte dos Estados Unidos inovou o conceito do instituto e criou o então chamado Pre Test, ou ainda, Two-Part Test, segundo o qual a caracterização de sham litigation deveria obedecer a dois requisitos: (i) a ação suspeita de sham litigation deve ser totalmente desprovida de base objetiva, de modo que não houvesse razoabilidade em se esperar êxito nas alegações (critério objetivo); e, apenas na ocorrência do primeiro requisito, (ii) esconder uma tentativa de interferir diretamente nas relações comerciais do concorrente.

Com base no histórico jurisprudencial apresentado, percebe-se claramente a distinção de duas vertentes caracterizadoras da sham litigation: a vertente California, que compreende a sham litigation como um conjunto de ações visando a prejudicar determinados concorrentes (pattern litigation); e a vertente Columbia, ou ainda, two-part test, segundo a qual seria necessário avaliar a probabilidade de êxito da ação e a intenção anticoncorrencial imiscuída.

A aparente incompatibilidade das duas vertentes, por sua vez, foi tratada pelo Justice Kozinski, em seu voto revolucionário no caso Uss-Posco, no qual proferiu entendimento no sentido de que uma vertente não estaria em conflito com a outra, eis que seria necessário avaliar se a análise da conduta alegada como sham litigation teria um caráter retrospectivo ou prospectivo.

Em outras palavras, a vertente do two-part test teria caráter eminentemente retrospectivo, uma vez que a verificação da razoabilidade das alegações deve ser avaliada tomando como base a procedência da ação, ou seja, numa análise feita do final para o início. Caso ao final da ação os pleitos tenham sido procedentes na instância julgadora, significaria dizer que a conduta apresentou expectativas razoáveis o que, portanto, impediria a continuidade da aplicação do two-part test, uma vez que inexistiria o primeiro critério para a constatação da sham litigation.

Continuando sua análise, para o Justice Kozinski a vertente pattern litigation teria caráter prospectivo, uma vez que o conjunto de ações foi iniciado visando a prejudicar a concorrência. Ou seja, a análise da conduta se daria do início para o fim, fim este consubstanciado no intuito de interferir nos negócios dos concorrentes.

No Brasil, o primeiro julgado a reconhecer a ocorrência de sham litigation ocorreu no Processo Administrativo 08012.004484/2005-51, no qual a SEVA Engenharia Eletrônica representou contra a Siemens VDO Automotive. No caso em comento, foi reconhecida a prática de sham litigation uma vez que as inúmeras ações judiciais e administrativas patrocinadas pela Siemens criaram entraves à entrada e à permanência de empresas concorrentes no mercado de tacógrafos.

Acompanhando a evolução do instituto no Brasil, outro caso relevante foi a Averiguação Preliminar 08012.001952/2008-8922, na qual a Dry Color representou junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) contra a Colormatrix, para investigação da prática de abuso da posição econômica dominante detida por esta última no mercado de pigmentos líquidos para produtos de Politereftalato de Etileno. No caso em questão, restou consignado que as iniciativas da Colormatrix contra a Dry Color, em âmbito Judicial, embora julgadas improcedentes, não podem ser entendidas como abusivas uma vez que eram inteiramente fundadas.

Enquanto no caso Siemens o argumento para configuração de sham litigation se baseou na então vertente California, ou ainda, pattern litigation, no caso Colormatrix a decisão pela não caracterização de sham litigation se deu em razão do entendimento de que à luz da vertente Columbia, ou ainda, two-part test, os requisitos necessários para seu reconhecimento não foram verificados.

Independentemente da vertente acolhida para reconhecer a ocorrência de sham litigation, o art. 36 da lei 12.529/11 (“Lei Antitruste”) prevê expressamente a necessidade de caracterização de dano real ou potencial ao mercado relevante, ou à ordem econômica, danos estes verificados em condutas que ocasionem ou possam ocasionar, independente de culpa, as seguintes situações: limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; dominar mercado relevante de bens ou serviços; aumentar arbitrariamente os lucros; ou exercer de forma abusiva posição dominante.

Percebe-se, portanto, que, muito embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha importado a prática de sham litigation como uma conduta anticompetitiva, não o fez de forma integral. Explica-se. Enquanto na teoria clássica norte americana, independente da vertente adotada, é necessário demonstrar a intenção do agente de causar dano ao concorrente ou à livre concorrência, no Brasil, a culpa ou dolo do agente é desnecessária à caracterização da prática antitruste.

A par das discussões doutrinárias e jurisprudenciais que permeiam a temática, o fato é que o Projeto de Lei veio apenas como reforço a uma prática já reconhecida desde a década de 1970 nos Estados Unidos, e desde 2005 no Brasil. Espera-se, por óbvio, que o projeto seja aprovado e venha a ganhar força de lei, reforçando a importância e relevância da coibição de práticas anticompetitivas de forma ampla.

Bruna Leite Mattos
Sócia e advogada da área de Direito Empresarial de Martorelli Advogados.

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