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Motorista e entregador de aplicativo, o papel do Judiciário e uma possível regulamentação

A natureza jurídica da relação entre motoristas ou entregadores que trabalham por meio de aplicativos de transporte e entrega é um debate travado em muitos países, inclusive nos Estados Unidos e Europa.

23/2/2023

O direito do trabalho nasceu, surgiu e se expandiu no entorno do conceito de contrato ou relação de emprego.

É seu elemento fundamental, cuja caracterização perpassa pela subordinação jurídica de um trabalhador pessoa natural a um tomador que lhe dirige a prestação de serviços e o remunera por estar à sua disposição de forma não eventual.

Uma distinção clássica entre o trabalho autônomo e o subordinado é a de que, no primeiro “o risco do resultado permanece a cargo de quem se obriga a realizar certa obra (empreiteiro)”, na última, “recai sobre aquele que adquire o direito de dispor do trabalho alheio (empregador).”1

No contrato de emprego, portanto, é o empregador quem assume todos os riscos e custos da atividade e, por essa razão, também é quem ficará com os lucros e assumirá o poder diretivo do negócio.

O trabalhador, por seu turno, terá como garantias normas protetivas, sejam elas negociadas coletivamente por entidades sindicais a representá-lo, sejam oriundas do processo legislativo.

É esse emaranhado teórico que hoje sustenta um debate que, diferentemente do que vociferam os críticos de sempre da Justiça do Trabalho, se espalha pelo mundo afora: os trabalhadores de aplicativo são empregados ou são autônomos?

Se são autônomos, é uma autonomia comum às profissões liberais ou de empreitada com que nos deparamos ao longo do século XX, ou é uma autonomia distinta?

A verdade é que a Justiça do Trabalho está dividida quanto ao tema. Desde as Varas do Trabalho às Turmas do TST, a ponto de que a questão será decidida pelo Pleno do Tribunal, a fim de pacificar a questão.

Nas decisões que acolhem a tese de existência de vínculo, um argumento comum é a existência de uma “subordinação algorítmica”. Ela se distingue da subordinação convencional por se fazer sem a fiscalização direta de um superior humano, mas sim pelo enquadramento do trabalhador a certos requisitos averiguados automaticamente pelo algoritmo.

Com efeito, é difícil não enxergar algum tipo de subordinação entre os motoristas e os aplicativos de transporte ou entre os entregadores e os aplicativos de entrega.

Em ambos os casos, os trabalhadores devem se submeter aos padrões de comportamento, ao tipo de equipamento e aos valores de corrida ou entrega estipulados pelo algoritmo, podendo sofrer inclusive punições, como a suspensão da conta e até mesmo o desligamento definitivo.

Por outro lado, é também custoso não verificar amplo grau de autonomia desses trabalhadores, na medida em que os horários, jornada e local de trabalho são definidos pelo próprio trabalhador, que pode, inclusive, escolher por qual aplicativo manter-se ativo em certos horários e regiões e até mesmo declinar entregas ou corridas.

Deste caráter dúbio decorre a conclusão de que, sim, esses trabalhadores têm algum grau de subordinação, mas também preservam certo grau de autonomia, a ponto de encontrarem-se nalgum lugar intermediário entre uma relação de emprego e um contrato de prestação de serviços autônomo.

Se há uma lacuna normativa sobre tal relação jurídica, é natural que ela seja debatida pelo Judiciário e que, por conta de repetição de ações, diferentes visões de mundo colidam.

Embora o Código de Processo Civil preveja instrumentos capazes de estancar a divergência e implantar decisões vinculantes, o melhor caminho para solucionar o problema é uma regulamentação legal, amplamente discutida pela sociedade, inclusive pelos próprios interessados, sejam os trabalhadores e empresas.

É preciso chegar o mais próximo possível de uma solução adequada para estender certo manto protetor a trabalhadores que têm pouca proteção social, sem que inviabilize a atuação dos aplicativos, caso contrário a solução jurídica resultará em trabalhadores sem ocupação e ainda mais à margem de proteção social.

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1 MARANHÃO, Délio. Contrato de trabalho, in Süssekind, A. et alii. Instituições de Direito do Trabalho, V. I. 18 ed. São Paulo: LTr, 1999, p. 238.

Nicolas Basilio
Advogado trabalhista do escritório Nicolas Basilio Sociedade Individual de Advogados, bacharel em direito pela USP e especialista em direito material e processual do trabalho pela PUC/SP.

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