Aparenta ser corriqueiro, pelo menos no ambiente jurídico nacional, o costume das consultas quesitadas à juristas de renome1 - nas mais diversas disciplinas - por clientes ou pelos próprios colegas advogados e advogadas mandatários2 de clientes outros, para a obtenção de pareceres3 com perspectivas4 avançadas, observando as veredas e caminhos que exsurgem dos pontos profundamente controvertidos, aguerridos e disputados nas lides5 forenses6.
E no ambiente das contendas7 envolvendo predominantemente tanto a repressão cível (ou mesmo criminal) a infrações-contrafações que vilipendiam os sinais distintivos, as invenções/modelos de utilidade, a lealdade concorrencial, as obras etc., quanto a discussão em sede judicial, publicística8-privativista/privatista, do plano da validade (e da eficácia como consectário lógico) dos atos administrativos praticados pelo INPI relativos a concessão (outorga sui generis) ou denegação do título reconhecedor da conjuntura erga omnes propiciada pela dogmática do direito industrial, os pareceres dão as caras como inequívoca tentativa de (início ou transcurso de) prova documental.
Mas uma particularidade em especial singulariza tais pareceres9 em PI: não são somente os juristas que os exaram.
Por exemplo, a presença de profissionais das formações STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática) - muitas vezes10 professoras e professores sêniores, pesquisadoras e pesquisadores de ponta e garbo integrantes dos quadros de Universidades públicas ou privadas - na elaboração de pareceres11 (devido ao estilo, são também apelidados de opiniões/laudos) relativos a (im)patenteabilidade de uma invenção-tecnologia A ou a infração por terceiro atinente a reprodução, fábrico (i.e., “uso”) inconsentido de uma invenção-tecnologia patenteada12 B (em quase13 que uma “pré-perícia” – ressalte-se muito bem as aspas aqui – por um ‘técnico no assunto’)14, demonstra que a cognição15 judicial está sujeita a um ambiente de discussão envolto de ricas multidisciplinariedades.
Também é perceptível a presença de profissionais das formações humanísticas (outras para além do próprio Direito) na redação de pareceres, por exemplo, versando o mérito de uma obra (afeto a infração, a originalidade etc.) ou outras pontuações complexas e profundas de direito de autor; versando considerações de natureza semiótica sobre um dado sinal/signo distintivo (também afetas a infração ou as condições de (in)validade do registro marcário, e.g.) ou sobre um pluralmente sígnico conjunto-imagem, dentre outras perspectivas.
Não é difícil suscitar a característica fática material e jurídico-processual de imparcialidade e unilateralidade - que não são sinônimos de imprestabilidade - para tais provas documentais. Ilustrando a situação de pedido de antecipação de tutela inibitória, instruída pelo requerente com pareceres-opiniões-laudos logo quando da distribuição da inicial (e tal peça vestibular geralmente tem características de sua causa de pedir ancoradas na tessitura de argumentos do parecer)16 ou em momento/ato processual próximo, há uma porção de arestos em duas vertentes de entendimento: (i) que ressaltam que os pareceres, por mais relevantes, categóricos e exaurientes que se possam demonstrar em relação a seu conteúdo, não consubstanciam necessariamente o preenchimento dos requisitos autorizadores ab initio da medida pleiteada17; (ii) que ressaltam excepcionalmente ou não o contrário do (i), tendo em vista uma conjuntura fática peculiar18.
Entretanto, importa referir que um parecer exarado, seja por juristas, seja por profissionais das ciências exatas e humanas, pode transportar um efeito argumentativo relevante no entendimento da pretensão deduzida em juízo. Desde que tal parecer seja elaborado (i) de maneira independente e distante dos vezos da incorreção propositalmente insertada (dos subterfúgios argumentativos manipuladores, da conveniente ignorância....); (ii) de forma verdadeira (i.e., honesta e não falaciosa, a considerar de maneira imperativa a incidência do “meio moralmente legítimo” e do “dever de colaborar para o descobrimento da verdade”, enunciações dos Arts. 369 e 378 do CPC) (iii) e por metodologia compreensível.
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1 Nada incomum se deparar com o detalhe nos pareceres dos juristas docentes, de haver abaixo de seu nome algo como “Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade X”.
2 “Y. LTDA., por intermédio de sua ilustre advogada Dra. Ciclana, honra-nos com a presente consulta...”
3 Ou opiniões legais, opiniões doutrinárias, legal opinions, affidavits etc. Tem quem diferencie mais ou menos entre os termos.
4 Pois, a meu ver e crer, quem efetivamente propõe um caminho de solução possível (responsabilidade obrigacional de meio) ao desfecho da causa é sempre a advogada e o advogado efetivamente patrono e responsável. Se fosse para o parecerista “prestar uma solução” ao caso, por que raios você não contratou logo ele para ser o seu patrono?
5 Ou, para além das lides, no transcurso de processos administrativos (Atos de Concentração ou Inquéritos no CADE, PADOs na Anatel etc.).
6 Alguns juristas que se dispuseram a publicar parte de sua atividade advocatícia de pareceres em livros à comunidade acadêmica, revelam enunciados curiosos sobre esta atividade em específico. Colaciona-se, a seguir, com a vênia do comprimento desta nota de rodapé, alguns. Cfr.: (i) “Este livro trata dos principais capítulos de direito administrativo contemporâneo, em que estou intensamente envolvido não só como professor, pesquisador e consultor [...], mas também como parecerista independente, isto é, como árbitro acadêmico para situações difíceis. O advogado contencioso busca os melhores argumentos para um ponto de vista. O parecerista independente não. Ele é um misto de arquiteto, criando soluções, e guardião da consciência profunda do mundo jurídico. [...], meu dever de consistência tem de incluir a consideração dessa experiência real, junto as grandes categorias do Direito.” (Carlos Ari Sundfeld. Pareceres. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2013. [na abertura do Volume I]); (ii) “Em nossa definição, parecer é uma solução prática que a doutrina empresta aos Tribunais. Daí a alegria inenarrável em publicarmos nossa primeira coletânea de pareceres. Afinal, ao fazermos esse tipo de trabalho, unimos pesquisa e prática num único propósito: buscar a solução constitucionalmente mais adequada para a Consulta que nos é formulada. De nossa parte, nunca pactuamos com visão dos que excluem ou incompatibilizam a pesquisa teórica com a prática. Pelo contrário, um parecer é a prova concreta de que elas podem ser cooriginárias. Daí a epígrafe escolhida, do psicólogo alemão Kurt Lewin, que tão bem ilustra essa perspectiva de nada ser tão prático quanto uma boa teoria. [...]. É com todo o respeito por essa forma de produzir teoria, via prática, que entregamos ao público leitor uma parcela significativa do nosso trabalho jurídico. Assim, pelos novos olhares que aos nossos textos serão destinados, o nosso trabalho segue ecoando de maneira colaborativa.” (Georges Abboud. Pareceres. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2022. [na abertura]); (iii) “O interesse na divulgação de pareceres é revelador da realidade de que a teoria e prática se interpenetram constantemente no direito. A vida prática é indissociável do estudo, do conhecimento abrangente e profundo das matérias com que se lida. De fato, é surpreendente a distância que existe entre a imaginação do legislador e a riqueza do mundo real: são incontáveis os problemas que surgem no dia a dia dos processos sobre os quais o legislador nada dispõe, i. e., problemas que a lei não resolve.” (Teresa Arruda Alvim. Opiniões Doutrinárias. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2021. [na abertura]); (iv) “Os pareceres analisam o caso concreto a partir da fixação de premissas jurídicas abstratas, de sorte a propiciar ao leitor a visão jurídica stricto-sensu e a aplicação prática desses preceitos jurídicos. Não é uma coleção de casos concretos, mas de direito aplicado aos casos concretos.” (Nelson Nery Júnior. Soluções Práticas de Direito. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2010. [na abertura do Volume I]); (v) “O parecer, a meio caminho entre a peça forense e o trabalho de doutrina, revela com rara oportunidade esse caráter dialético da experiência jurídica, de permanente interação entre a teoria e a práxis. Daí a sua longa tradição. No Direito romano, os pareceres - os responsa prudentium - chegaram até a constituir fonte de Direito, e os seus autores, conditoris iuris. Hoje, reduzido ao seu tamanho ordinário, esse exercício intelectual almeja mostrar sempre quão estéril é a técnica jurídica quando não serve para revelar a experiência conjugando fato, norma e solução, numa equação lógica.” (Luiz Gastão Paes de Barros Leães. Novos Pareceres. São Paulo: Singular, 2020. [na abertura]); (vi) “No exercício da profissão, tenho respondido a numerosas consultas, sobre matéria pertinente a todos os ramos do direito. A atividade profissional, na emissão de pareceres, pela variedade que compreende, suscita a formulação de questões, que o dia a dia das atividades sociais, políticas ou econômicas levanta. E as soluções aventadas oferecem ensejo de focalizar problemas de ordem prática, posto que tratados em termos de pesquisa doutrinária.” (Caio Mario da Silva Pereira. Obrigações e contratos: pareceres. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2011. [na abertura]); (vii) “Com a publicação de pareceres jurídicos cujas teses foram acolhidas, alcança-se duplo objetivo. De um lado, lança-se luz, de forma indireta, sobre o efetivo posicionamento de órgãos julgadores, incluindo tribunais arbitrais, na resolução de disputas. De outro lado, aprende-se com a aplicação do Direito ao caso concreto, com todas as suas complexidades, por muitas das melhores mentes jurídicas de nosso país. Nada mais prático do que uma boa teoria, e nada mais teoricamente interessante do que um bom caso.” (Carlos Portugal Gouvêa/Mariana Pargendler (orgs.). Fusões e aquisições: pareceres. São Paulo: Almedina, 2021. [na abertura]). A visão crítica e atenta do atualmente Ministro da Corte Infraconstitucional Antônio Herman Benjamin (no prefácio à obra coordenada por Claudio Seefelder Filho/Rogério Campos. Constituição e Código Tributário Comentados. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2020. [ebook]) também é muito bem-vinda neste contexto: “Na esteira do respeito assegurado a esses juristas e teóricos magistrais, cresceu enormemente nos últimos anos uma subcategoria de ‘atividade doutrinária’ (entre aspas, porque, em seguida, melhor se explicará que de doutrina verdadeira não se trata) a cargo de grandes e pequenos especialistas – alguns deles dedicados quase que exclusivamente a oferecer opinião casuística remunerada. Nessa zona cinzenta entre teoria e prática, há aqueles que se arvoram, de fato e contra legem, por meio de seus pareceres sobre litígios concretos em andamento, poderes maiores do que os do legislador. Ilegitimamente, por apropriação indevida da soberania popular, expectativa consciente ou inconsciente de assumir posição de fonte do Direito. E fonte de Direito acima da lei e da própria Constituição, com o único objetivo imediato de convencer, não o público em geral acerca de uma dada tese ou opinião, mas o juiz do processo a decidir em favor da parte contratante do parecer”. Bem como a escorreita reflexão do Advogado Luciano de Souza Godoy (“Pareceres jurídicos e opiniões legais”, 2017): “Em nenhum lugar, está escrito o que é um parecer, o que é uma opinião, quem pode conceder um parecer ou emitir uma opinião legal. Os pareceristas vivem da sua reputação e do reconhecimento da comunidade jurídica sobre seu arcabouço técnico e compromisso com a seriedade científica.”
7 Acerta em cheio o experiente Jurista – contendor, parecerista, perito e docente - Pedro Marcos Nunes Barbosa (A obra audiovisual ‘Goliath’: um diálogo sobre a ética na Advocacia e nos Pareceres em Propriedade Intelectual. Revista Rede de Direito Digital, Intelectual & Sociedade, v. 1, n. 2, p. 308-309) ao narrar o cenário forense em PI: “Diferentemente de contos e romances, é raro que em lides versando [...] direitos de propriedade intelectual haja uma clareza solar sobre quem seria o anti-herói (ofensor) e quem figuraria no polo processual como mocinho. Se o autor da pretensão é aquele que primeiramente apresenta seu discurso, muitas das vezes exageradamente vitimista, o réu tem a oportunidade por apresentar sua versão dos fatos e igualmente persuadir o Juízo.”
8 [...], o direito de patentes e o direito de marcas formam uma interseção especial entre o direito privado, de um lado, e o direito público, de outro. [...]. A gênese [entstehung] e a continuidade [fortbestand] de uma patente ou marca estão sujeitas ao direito público.” (Eric Urzowski. Das Patent- und Markenrecht im System des Verwaltungsrechts. Wiesbaden: Springer, 2018. [ebook] [tradução livre])
9 Não é de se confundir aqui, obviamente, com os atos administrativos nominados “pareceres”, expedidos pelos examinadores e examinadoras do INPI.
10 Também se nota a presença de profissionais com tempo de experiência em seu metier técnico, mas sem pós-graduação, e até mesmo profissionais que eram em tempo pretérito vinculados ao INPI.
11 Percebe-se que alguns acadêmicos que elaboraram pareceres atinentes a PI mencionam tal prestação de serviço como produção técnica de assessoria e consultoria no perfil do Curriculum Lattes.
12 Análise de reivindicações da patente de invenção do ofendido e do “objeto” alegado contrafator do ofensor.
13 Diz-se “quase” levando-se em conta a comparação com o instituto de direito processual da perícia, que obrigatoriamente deve ocorrer em contraditório.
14 Parecer jurídico/técnico ofertado pelas partes nos autos não tem o condão de tornar desnecessária e despicienda a produção de prova pericial. O “salvo melhor juízo” rubricado ao final de pareceres por alguns experts que o diga. A impugnação ao laudo pericial (ou a ocorrência de problemas prévios a finalização do laudo) elaborado pelo perito do juízo, através de manifestação das partes e de seus assistentes técnicos (que podem ser aqueles mesmos que porventura exararam um parecer solicitado pela parte e que se faz presente nos autos, eis que assistente é indivíduo de confiança de tal parte), pode dar ensejo a imprestabilidade ou divergência capazes do estímulo a nova realização probatória.
15 “A percepção dos limites da matéria cognoscível é fundamental para a delimitação dos fatos controvertidos e, portanto, imprescindível para que o juiz possa imprimir rumo certo ao processo, dando exata dimensão à instrução probatória.” (Luiz Guilherme Marinoni/Sérgio Cruz Arenhard. Prova e Convicção. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2019. [ebook])
16 “a requerente solicitou a opinião técnica dos especialistas Dr. A e Dr. B..., Professores do Curso de Engenharia X da Escola Politécnica L, que elaboraram categórico Parecer que acompanha esta exordial...”; “para corroborar o alegado foi elaborado Parecer, cujo teor constitui parte integrante da presente ação, subscrito pelos especialistas Dr. W e Dr. Z...”. Um argumento que vi uma vez alguém afirmar numa peça de bloqueio, o qual concordo, é que se deve ter o zelo e o cuidado de evitar a mera “colagem de opiniões sob medida dos pareceristas” na petição.
17 A exemplo dos Acórdãos nos Agravos de Instrumento 0081946-91.2020.8.19.0000, 5043519-96.2020.8.24.0000, 0166333-59.2011.8.26.0000, 2145206-79.2021.8.26.0000, 2212207-81.2021.8.26.0000. A seguinte passagem ilustra o que estou a me referir: “Em um juízo de cognição sumária, típico da análise de medidas de urgência como a presente, não é possível extrair a probabilidade do direito alegado pela requerente, sobretudo a partir da análise dos pareceres técnicos, produzidos de forma unilateral por peritos de confiança tanto da parte requerente como da parte requerida, e que levam a conclusões diametralmente opostas, a confirmar que nesta análise preliminar não seja possível extrair o direito sustentado pela requerente.” (Decisão interlocutória. DJE TJSP 11/01/2022, p. 1387)
18 A exemplo dos Acórdãos nos Agravos de Instrumento 2158034-44.2020.8.26.0000, 2260180-42.2015.8.26.0000. A seguinte passagem ilustra o que estou a me referir: “Os pareceres de renomados especialistas juntados pela requerente demonstram [o alegado na causa de pedir] [...]. Mesmo sendo documentos produzidos sob o exclusivo interesse da requerente, em se tratando de dados técnicos, difícil acreditar que profissionais de alto renome, professores de universidades públicas, declarariam uma situação não correspondente à realidade.” (Decisão interlocutória. DJE TJSP 06/02/2020, p. 1187)