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A importância da regulação de sinistro no seguro agrícola

A boa-fé e o dever de cooperação das partes.

15/2/2023

O agronegócio1 brasileiro vem avançando muito fortemente e hoje representa 27,4% do PIB nacional2. Não por outra razão é visto como uma espécie de mola propulsora do desenvolvimento econômico, amparando o Brasil mesmo em tempo de crise como a que atualmente assola o mundo.

Mas, como toda atividade econômica, há os riscos a ela associados.

Com relação ao setor agrícola, esse risco está associado às eventuais perdas em razão de fenômenos climáticos adversos (Granizo, Seca, Geada, Ventos Fortes e Ventos Frios, Tromba d'água, Chuvas Excessivas, Raio, Incêndio etc.) e que podem, portanto, ensejar prejuízos aos produtores rurais, como, por exemplo, a perda completa de uma safra ou mesmo a colheita inferior àquela esperada.

É a partir desse cenário que surge um importante mecanismo de proteção, o seguro agrícola, cada vez mais presente na atividade rural, sobretudo diante do fortalecimento do Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural (“PSR”), que nada mais é do que um subsídio financeiro oferecido pelo MAPA ao produtor em relação ao prêmio do seguro, tornando com isso mais acessível sua contratação.

Nesse contexto, uma vez aperfeiçoada a contratação do seguro agrícola, a seguradora assume os prejuízos decorrentes de eventual materialização do risco, obviamente nos limites predeterminados no contrato de seguro.

Ocorrendo essa materialização, assim entendido como o sinistro, o segurado na prática é obrigado a informar à seguradora tão logo dele tome conhecimento para que esta inicie procedimento administrativo, dos mais importantes para o sistema de seguro, chamado de “regulação de sinistro”.

Como o seguro tem sua base no mutualismo3, quando a seguradora pagar a indenização, a verba é retirada da mutualidade, ou seja, do fundo administrado pela seguradora em razão do pagamento de prêmio por uma coletividade de pessoas.

Emergi daí a grande responsabilidade do gestor (o segurador) do fundo, no sentido de apurar as causas do evento, sua adequação ao contrato de seguro e fixar o efetivo prejuízo, afinal de contas, qualquer desvio pode comprometer e prejudicar o fundo mutual e todos os consumidores que estão por de trás dele.

Por isso a importância do procedimento de regulação do sinistro, justamente para que a indenização seja efetuada somente com a segurança quanto a cobertura securitária e nos limites do prejuízo concretamente identificado e balizado pela apólice.

 A propósito, preciosas são as lições traçadas pela doutrina:

"Dentro da sistemática da relação obrigacional do contrato de seguro, a regulação do sinistro é o instrumento e a condição para que a indenização seja paga ao segurado. Como é o segurador que tem de proceder à regulação, torna-se esta não só um poder, mas igualmente um dever, podendo-se falar que, dentro do esquema do contrato, a realização da regulação do sinistro é "parte integrante do cumprimento do contrato de que se cuida4. De fato, tão integrado à prestação indenizatória, o procedimento regulatório deve ser considerado como parte do objeto obrigacional, que, juridicamente corresponde “a toda atividade projetada para satisfação do credor”5. Em outras palavras: ocorrido o sinistro surge o direito do segurado à indenização, mas para exigir seu cumprimento, tem de ser superado o estágio da regulação, a ser praticado por provocação do segurado e mediante diligência do segurador. Eis porque, funcionalmente, o procedimento regulatório integra a "conduta a prestar", a cargo do segurador6[g.n.]

Note-se que para a regulação do sinistro, a seguradora não tem apenas o direito, mas sobretudo o dever de examinar todos os elementos que demonstre, de forma cabal, as causas do evento na qual se busca a cobertura.

É relevante destacar que o trabalho exercido pelo regulador de sinistro, muitas vezes amparados por técnicos especializados, não se restringe a realizar meros cálculos de valores, mas também de investigar e analisar tecnicamente os fatos e circunstâncias que envolveram o evento, inclusive, determinando as causas e responsabilidades.

A propósito:

“A regulação do sinistro integra a fase de execução do contrato de seguro. Constitui etapa contratual voltada ao adimplemento, que se desenvolve para que seja determinada a existência de cobertura para os fatos narrados no aviso de sinistro e sua extensão, com a mensuração do valor a indenizar ou do capital segurado a ser pago. Sua função precípua é preparar o cumprimento da prestação principal do segurador, definindo o an debeatur e o quantum debeatur (ainda que esta seja mais própria da liquidação do sinistro, se tomada em destaque, como fase subsequente). De forma imediata serve para apurar a ocorrência de sinistro indenizável e a extensão dos danos; de forma mediata visa promover a satisfação do interesse útil do segurado por intermédio do adimplemento da prestação principal do segurador7[g.n.]

Dito isso, especificamente em relação ao sinistro agrícola, a sistemática e os prazos da regulação, além de previsto nas condições gerais dos produtos existentes no mercado, igualmente tem suas diretrizes dispostas no art. 5º da Resolução 73, de 22 de junho de 2020, editada pelo Comitê Gestor Interministerial do Seguro Rural (“CGSR”)8.

No procedimento de regulação de sinistro agrícola, em linhas gerais, inicialmente é realizada vistoria preliminar, traduzida em documento escrito contendo parecer não conclusivo de um perito a respeito do por ele visualizado na área segurada após o aviso de sinistro. Porém, é num segundo momento, quando da efetiva colheita, que o perito acompanha todo o processo e então elabora o laudo de vistoria final a respeito do prejuízo real e efetivo da lavoura e, deste modo, servirá de base para calcular a indenização.

Por isso é fundamental que o segurado se atente para o seu dever de boa-fé e coopere para uma boa regulação do sinistro, não só acompanhando todo esse trabalho, mas, principalmente, franqueando à seguradora o acesso a área segurada e lhe garantindo, em tempo hábil, o direito de acompanhar todo o processo de colheita.

O dever de cooperar como um dever anexo ao da boa-fé é descrito pela doutrina justamente como um elemento fundamental na relação entre segurado e seguradora, com destaque na regulação do sinistro:

“Os contratantes, segurado e segurador, e os terceiros interessados na garantia, beneficiários ou vítimas do acidente (esses na condição de beneficiários por equiparação), tem o dever de cooperar para o adequado cumprimento da regulação do sinistro. Tanto para que ocorra em tempo razoável, sem demora injustificada que leve ao atraso no pagamento da indenização, quanto para que se desenvolva de modo adequado, permitindo a correta identificação dos fatos e sua repercussão na caracterização do sinistro.

[...]

Da mesma forma, o segurado e o terceiro interessado deverão cooperar para o adimplemento, atendendo às diligências inerentes ao procedimento de forma célere, facilitando as medidas de verificação dos fatos e apuração dos danos, sem criar impedimentos à atuação do regulador, do perito contratado ou do próprio segurador.

[...]

Do dever de cooperação reconhecido aos contratantes e aos terceiros, decorre o dever de lealdade e respeito às expectativas legítimas da contraparte. Da parte do segurado e do terceiro interessado, esse dever se manifesta pela exigência de comunicação imediata, de preservação do local do sinistro e seus elementos característicos, de fornecer todas as informações sobre as circunstâncias em que tenha ocorrido, entre outras condutas justificadas pela finalidade do vínculo obrigacional.

[...]

Da mesma forma, o dever de esclarecimento das circunstâncias em que tenha se realizado visa a correta apreensão dos fatos e sua qualificação como sinistro indenizável9[g.n.]

Quando se fala do princípio da boa-fé objetiva no direito do seguro (art. 765 do Código Civil), é dever das partes a adoção de postura transparente e que guarde conformidade com os padrões sociais de ética e correção, de modo a respeitar a legítima expectativa que uma parte deposita na outra. 

Sendo assim, caso o segurado não observe tal padrão de conduta e, por exemplo, realize a colheita de sua plantação sem avisar à seguradora terá prejudicada a cobertura caso venha alegar que a produtividade alcançada se deu em quantidade inferior àquela garantida pela apólice.

Isto porque, a seguradora não terá meios para se certificar que realmente a área segurada produziu quantidade inferior àquela garantia pela apólice.

Deste modo, a lealdade e a credibilidade no sentido de que uma parte deve propiciar a outra acesso a todas as informações que cercam determinado sinistro, deve ser a tônica dessa modalidade contratual que é o seguro agrícola, pois, se assim for, ao mesmo tempo que o segurado receberá a indenização a que efetivamente faz jus, o sistema de seguro se manterá equilibrado garantindo sua expansão e tornando cada vez mais acessível ao produtor rural.

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1 “o agronegócio pode ser definido, hoje, como um conjunto integrado de atividades econômicas, que vai desde a fabricação e o suprimento de insumos, a formação de lavouras e a cria e recria de animais, passando pelo processamento, o acondicionamento, o armazenamento, a logística e distribuição para o consumo final dos produtos de origem agrícola, pecuária, de reflorestamento e aquicultura”. BURANELLO, Renato. Agronegócio: conceito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Comercial. Fábio Ulhoa Coelho, Marcus Elidius Michelli de Almeida (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/208/edicao-1/agronegocio:-conceito Acessado em 13/02/2023

2 PIB-Agro/CEPEA: PIB do agro cresce 8,36% em 2021; participação no PIB brasileiro chega a 27,4% - Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada - CEPEA-Esalq/USP Acessado em 13/2/23

3 “operação pela qual um grupo de indivíduos com interesses semelhantes se cotiza para fazer frente aos custos destinados a atingir seus objetivos. No caso da operação de seguro, isto é feito através da constituição de um fundo específico, formado pela contribuição proporcional ao risco de cada participante, com o objetivo de repor as perdas decorrentes de eventos previamente determinados” http://www.sindsegsp.org.br/site/colunista-texto.aspx?id=1022 acessado em 13/2/23

4 “A regulação será instrumento para o cumprimento e, simultaneamente, parte integrante do cumprimento” (TZIRULNIK, Ernesto. Regulação de sinistro. 3.ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 35).

5 BUERES, Alberto J. Responsabilidad civil de las clínicas y establecinientos médicos, 2. ed., Buenos Aires: Abaco, 1981,p. 130 e 140; apud TZIRULNIK, Ernesto. Regulação de sinistro cit., p. 40.

6 AGOGLIA, Maria M. Responsabilidad por incumplimiento contractual, Buenos Aires: Hammurabi, 1993, p. 47 e seg.; TZIRULNIK, Ernesto. Regulação de sinistro cit., p. 44.

7 MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro. Revista dos Tribunal. vol. 1025. ano 110. p. 291-324. São Paulo: Ed. RT, março 2021. Pág. 3

8 RESOLUÇÃO Nº 73, DE 22 DE JUNHO DE 2020 - RESOLUÇÃO 73, DE 22 DE JUNHO DE 2020 - DOU - Imprensa Nacional (in.gov.br) Acessado em 13/02/2023

9 MIRAGEM, Bruno; PETERSEN, Luiza. Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro. Revista dos Tribunal. vol. 1025. ano 110. p. 291-324. São Paulo: Ed. RT, março 2021. Pág. 11/12

Victor Augusto Benes Senhora
Mestre em Direito (IDP/SP). Especialista em Direito do Seguro e Resseguro pela FGV-Law e Universidade Nova de Lisboa. Sócio do escritório J. Armando Batista e Benes Advogados.

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