Pais e mães zelosos preocupam-se, naturalmente, com os seus filhos. E, um questionamento muito comum que recebo como professora e como advogada é: “o que acontecerá com os meus filhos se eu falecer? Com quem ficará a guarda deles?”
Esse tema ganhou evidência após a triste notícia do falecimento da grande apresentadora Glória Maria que, após saber da irreversibilidade da sua condição de saúde, fez novo testamento estipulando quem seriamos tutores legais de suas duas filhas Maria e Laura, de 14 e 15 anos, respectivamente.
Essa mulher tão inspiradora nos ensina que é necessário cuidar de quem amamos, pois, um dia, poderemos vir a faltar antes do que imaginávamos. Medida muito inteligente nos mostra que a escolha dos tutores é um grande instrumento de planejamento sucessório e, também, de amor por suas filhas. Afinal, quem ama, cuida em vida e após a vida.
Todos nós podemos (e devemos) fazer o mesmo, uma vez que o falecimento e a falta dos pais pode ocorrer a qualquer momento (fatalidade que tem sido muito comum em acidentes de carro, em que os pais estão mais expostos por ocuparem os bancos dianteiros, mas que pode ocorrer pelas mais variadas razões).
De acordo com o Código Civil, com o falecimento dos pais, os filhos menores de 18 anos são postos em tutela (art. 1.728 do Código Civil)1, sendo um direito dos pais a nomeação de um tutor (art. 1.729 do Código Civil)2 que cuidará deles.
A tutela é entendida como um munus público, ou seja, uma atribuição imposta pelo Estado para atender a interesses públicos e sociais dos menores. Conforme afirma a doutrina, sem prejuízo do que consta do Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, lei 8.069/90) estabelece que a tutela é uma das formas de inserção da criança e do adolescente em família substituta3, (no seu art. 28).
Assim, a tutela é diferente do instituto da “guarda”, uma vez que se destina aos casos em que os pais não mais possuem o chamado “poder familiar” sobre os filhos (o que ocorre quando os pais estão falecidos e ausentes ou quando eles perderam esse poder/dever ou, ainda, quando estão com o poder familiar suspenso judicialmente, consoante art. 1.734 do Código Civil).
Dessa forma, os pais têm o direito de escolher quem serão os tutores dos filhos – assim como fez a apresentadora Glória Maria –, mas, caso faleçam sem terem feito essa nomeação, os filhos não ficarão desamparados, pois a Lei faz a escolha de forma supletiva à vontade dos pais, indicando, para tanto, os parentes mais próximos às crianças. O art. 1.731 do Código Civil4, estabelece que, diante da falta da tutela testamentária (ou seja, de tutores previamente escolhidos pelos pais) a tutela dos filhos caberá aos parentes consanguíneos das crianças, chamados de “tutores legítimos”, na seguinte ordem: aos ascendentes (como os avós e bisavós) e aos parentes colaterais (como os irmãos, tios e sobrinhos); havendo, ainda, a possibilidade da chamada “tutela dativa”5, que consiste na escolha de um tutor pelo juiz quando não existirem tutores escolhidos pelos pais (tutela testamentária) ou familiares (tutela legítima) vivos e disponíveis para serem tutores.
Acontece que, pelos mais variados motivos, muitos pais não desejam que a tutela dos seus filhos seja transmitida às pessoas previstas na Lei, principalmente em virtude de incompatibilidades entre os membros da família. Daí a importância da tutela testamentária, para que os pais possam nomear e escolher previamente os tutores responsáveis pelo cuidado dos filhos caso ocorra o seu falecimento, o que pode ser realizado por meio de testamento, admitindo-se, também, que sejam nomeados por qualquer outro documento autêntico, inclusive um documento particular (art. 1.729 do Código Civil).
Para essa autora, todavia, o instrumento mais seguro para instituir os tutores para os filhos é o testamento público, uma vez que esse testamento ficará registrado no Tabelionato de Notas em que foi realizado (lembrando que, embora o seu nome seja “testamento público”, ele não fica disponível ao conhecimento de todos, pelo contrário: o seu conteúdo só será disponibilizado com a morte do testador).
Dessa forma, os pais podem escolher os tutores dos seus filhos por meio de testamento, chamados, então de “tutores testamentários” (art. 1.729, parágrafo único e 1.732 do Código Civil). Esses tutores não precisam ser os seus familiares, podendo ser outras pessoas, como os padrinhos, por exemplo, ou pessoas que os pais e os próprios filhos mais confiam.
Importa salientar que o art. 1.733 permite que seja nomeado mais de um tutor para os filhos, possibilitando até a nomeação de um tutor principal e de um tutor substituto, caso o tutor principal também venha a falecer ou tenha qualquer outro impedimento.
No caso de Glória Maria, a apresentadora nomeou como tutores os padrinhos de suas filhas, Julia Azevedo, Bruno Astuto e Caio Nabuco; e, também, a atriz Regina Casé, grande amiga sua e das filhas. Eles são, então, os tutores de Maria e Laura. Nesse caso, ela estabeleceu em testamento uma tutela compartilhada ou conjunta, uma vez que ela percebeu que ter mais de um tutor atenderia melhor aos interesses das filhas.
Uma vez nomeados os tutores, quais são as suas responsabilidades? Com o falecimento dos pais, os menores são postos sob tutela, de modo que o tutor (ou os tutores), passam a ter o poder de administração sobre todo o patrimônio dos menores, incluindo a herança que eles receberam dos pais.
Segundo o art. 1.740 do Código Civil, o(s) tutor(es) têm o dever de dirigir a educação dos menores, bem como prestar-lhes alimentos e toda a forma de defesa e cuidado junto com os demais deveres que normalmente cabem aos pais, devendo ser ouvida a opinião dos menores, caso tenham mais de doze anos de idade.
Assim, a tutela está voltada para a administração geral dos interesses de menores, sejam eles absolutamente incapazes (as crianças, menores de 16 anos, conforme artigo 3º, caput, do Código Civil), ou relativamente incapazes (os adolescente entre 16 e 18 anos, conforme art. 4º, inciso I, do Código Civil). Os pais também poderão, em testamento, nomear um curador especial para os bens deixados aos filhos.
Em resumo, devemos lembrar que a tutela pode ser a “tutela testamentária”, instituída por testamento (ou também por outro documento, como legado ou codicilo), situação em que o tutor é nomeado segundo a vontade dos pais; sendo também possível existir a chamada “tutela legítima ou legal”, que é a tutela prevista na Lei quando os pais não escolheram previamente os tutores dos filhos, sendo exercida pelo familiar mais próximo das crianças; e, por fim, existe a possibilidade da chamada “tutela dativa”, que consiste na escolha de um tutor pelo juiz (prevista no artigo. 1.732 do Código Civil)6, quando não existirem tutores escolhidos pelos pais (tutela testamentária) ou familiares vivos e disponíveis para serem tutores (tutela legítima).
Compreendo, portanto, que a tutela é um essencial instrumento de planejamento sucessório, uma vez que os pais poderão definir quem serão as pessoas que passarão a ser responsáveis pelos seus filhos (quem passará a cuidar da educação, saúde e de tudo o que diz respeito às suas vidas, incluindo o seu patrimônio), razão pela qual devem ser pessoas escolhidas, literalmente, à dedo e, minuciosamente, pelos pais.
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1 Art. 1.728. Os filhos menores são postos em tutela:
I - com o falecimento dos pais, ou sendo estes julgados ausentes;
II - em caso de os pais decaírem do poder familiar.
2 Art. 1.729. O direito de nomear tutor compete aos pais, em conjunto.
Parágrafo único. A nomeação deve constar de testamento ou de qualquer outro documento autêntico.
3 SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José F.; AL, et. Código Civil Comentado - Doutrina e Jurisprudência. [Digite o Local da Editora]: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559640720.
4 Art. 1.731. Em falta de tutor nomeado pelos pais incumbe a tutela aos parentes consanguíneos do menor, por esta ordem:
I - aos ascendentes, preferindo o de grau mais próximo ao mais remoto;
II - aos colaterais até o terceiro grau, preferindo os mais próximos aos mais remotos, e, no mesmo grau, os mais velhos aos mais moços; em qualquer dos casos, o juiz escolherá entre eles o mais apto a exercer a tutela em benefício do menor.
5 Art. 1.732. O juiz nomeará tutor idôneo e residente no domicílio do menor:
I – na falta de tutor testamentário ou legítimo;
II – quando estes forem excluídos ou escusados da tutela;
III – quando removidos por não idôneos o tutor legítimo e o testamentário.
6 Art. 1.732. O juiz nomeará tutor idôneo e residente no domicílio do menor:
I – na falta de tutor testamentário ou legítimo;
II – quando estes forem excluídos ou escusados da tutela;
III – quando removidos por não idôneos o tutor legítimo e o testamentário.