O interesse da sociedade opera como bússola para a conduta tanto dos sócios controladores como dos administradores da sociedade, ao indicar a primazia da prossecução dos interesses da própria companhia, em detrimento de interesses pessoais dos sócios controladores ou dos administradores, ou mesmo interesses extrassociais, que transcendam os interesses da própria sociedade, como os interesses de partes relacionadas (ex., empregados da companhia, credores relevantes).
Pode-se asseverar, entretanto, que a falta de definição do conteúdo que compõe o conceito de interesse social não permite delinear com clareza quais objetivos devem ser perseguidos para atingi-lo; esta incerteza imediatamente prejudica qualquer tipo de avaliação da conduta de um acionista ou administrador frente a uma deliberação na qual eventualmente possua interesse diverso na companhia, posto que gera uma dúvida sobre quais atos podem ser considerados contrários ao interesse social1. Nesse aspecto, é razoável compreender que há um espaço considerável de definição do que efetivamente seja o interesse da companhia, a fim de aplicar a regra estabelecida na Lei das Sociedades por Ações (lei 6.404/76 ou LSA).
Aliás, especificamente quanto aos administradores, define a LSA, em seu art. 154, que estes devem exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.
Na falta de coercibilidade dos interesses extrassociais, o interesse social deve ser caracterizado como o interesse que motivou os acionistas a contratarem e constituírem a sociedade. Nestes termos, o interesse social é o interesse de um hipotético sócio médio, o interesse comum dos acionistas, enquanto acionistas, à eficiência da empresa e à distribuição de dividendos2. Nesse passo, o interesse social não é, pois, a somatória dos interesses de cada acionista, mas a transcendência desses mesmos interesses por interesse comum a todos, definido no objeto empresarial específico da companhia nos fins sociais que são comuns a todas elas, qual seja, a realização do lucro3.
Parece-nos, entretanto, que, à medida em que os tipos societários são elaborados pelo legislador para atender a determinadas demandas do fluxo comercial (e mesmo das exigências do bem comum), bem como a progressiva produção regulatória aplicada às sociedades comerciais (em específico, a determinados setores da economia, e.g., setor financeiro, setor áereo, etc.), os interesses subjetivos dos sócios reduzem-se no seu espaço operacional, ou mesmo de manifestação de vontade. Em outros termos, os interesses objetivos (derivados de normas heterônomas) avançam sobre o contratualismo, dando azo ao institucionalismo externo - mas não um interesse derivado da sociedade em si considerada.
Isso posto, na prossecução dos interesses da companhia, a LSA afasta a responsabilidade civil dos administradores quando estes tenha agido por meio de ato regular de gestão (art. 158). Trata-se da regra denominada de “business judgement rule”, que se configura como norma de proteção dos administradores contra os riscos inerentes ao insucesso inevitável de determinadas decisões, como forma de acautelar o risco da inovação e da atividade objeto da sociedade, beneficiando o administrador de uma margem de discricionariedade no exercício das suas competências4.
A assunção de riscos, que se associa à inovação e à criatividade, é um elemento natural e intrínseco das decisões empresariais, que favorecem o interesse social e beneficiam a sociedade e os sócios (as possibilidades de ganho derivadas de uma escolha arriscada são quase sempre mais consideráveis do que as derivadas de uma escolha menos arriscada). As decisões empresariais são peculiares porque, muitas vezes, são tomadas em situação de risco e debaixo de uma grande pressão temporal. Por isso, tomam-se frequentemente sem que seja possível ter em conta todos os fatores que importavam para o sucesso da decisão. Seria prejudicial para a própria sociedade que as decisões tomadas pelos administradores pudessem ser constantemente questionadas pelos sócios em tribunal, o que acabaria por transferir a autoridade decisória, típica dos administradores, do órgão de administração para os sócios5.
De origem norte-americana, consiste a regra do “business judgement rule” na insindicabilidade da decisão do administrador, excluindo a sua responsabilidade, sempre que se verificarem os seguintes requisitos: a) o administrador ter agido de boa-fé, b) não ter qualquer interesse pessoal na questão subjacente à decisão, c) ter-se informado convenientemente sobre a decisão a tomar e d) acreditar racionalmente que a decisão é a que melhor protege o interesse da sociedade (o interesse social).
Com efeito, o segmento “livre de qualquer interesse pessoal” configura-se como o mínimo denominador comum do núcleo de comportamentos que tem concretizado a violação dos deveres de lealdade. Já os segmentos referentes à “informação” e à “racionalidade empresarial” aproximam-se mais dos comportamentos positivos no domínio da competência técnica e do conhecimento da atividade da sociedade adequados às funções dos administradores para obstar à violação de deveres de cuidado6.
No campo dos quadros jurídicos anglo-saxônicos, o “business judgement rule” opera como uma causa de isenção de responsabilidade, não cabendo discutir se enquanto causa de justificação ou causa de excusa.
Vale registrar que a Comissão de Valores Mobiliários – CVM tem adotado posicionamento pela aplicação da “business judgement rule” no âmbito da regulação do mercado de capitais brasileiro, cabendo referir, inter alia, à Decisão no processo PAS CVM nº RJ2014/13977 (caso Forja Taurus S.A., em que a CVM entendeu pela absolvição de determinados administradores das imputações relacionadas à falta de diligência, sob a ótica do “business judgement rule”).
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1 VILELA, Renato. Conflito de interesses nas companhias: reflexões sobre as transações entre partes relacionadas pós IFRS. 1a ed. São Paulo: Almedina, 2017, p.76.
2 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Administradores de sociedades anônimas: relação jurídica entre o administrador e a sociedade. São Paulo: Almedina, 2014, p. 40.
3 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas - Volume 2. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 457
4 MAGALHÃES, Va^nia Patri'cia Filipe. A conduta dos administradores das sociedades ano'nimas: deveres gerais e interesse social. Revista do Direito das Sociedades, volume I, 2009, edição 2, p. 379-414.
5 COSTA, Ricardo. Estudos Dispersos. Coimbra: Almedina, 2020, p.10-11.
6 LEITÃO, Adelaide Menezes. Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais. Revista do Direito das Sociedades, volume I, 2009, edição 3, p. 647-679.