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A incompetência da justiça paulista para a busca e apreensão de e-mails requerida por um dos maiores credores da varejista Americanas

Ferida a competência do juízo recuperacional do Grupo Americanas, com a supervisão do juízo, administradores judiciais nomeados e demais credores.

8/2/2023

O caso Americanas, no último dia 02 de fevereiro, ganhou um novo desdobramento, com o proferimento de decisão do juiz de Direito Alexandre de Carvalho Mesquita, da 2ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, indeferindo o cumprimento de carta precatória expedida pela Justiça paulista, que determinava a busca e apreensão de e-mails a pedido do Banco Bradesco, um dos maiores credores da empresa, detentor de um crédito de aproximadamente R$ 4,7 bilhões.

Na decisão, o juiz pondera que “a medida deferida pelo juízo deprecante extrapola a sua competência”¸ consoante se verifica no trecho reproduzido a seguir:

“A medida deferida pelo juízo deprecante extrapola a sua competência, uma vez que o parágrafo 2º do art. 381 do NCPC estabelece textualmente que ‘a produção antecipada da prova é da competência do juízo do foro onde está deva ser produzida ou do foro de domicílio do réu.”

Importante se faz relembrar que no último dia 11 de janeiro, a Americanas divulgou fato relevante consistente na identificação de ‘inconsistências contábeis’, proveniente da operação risco sacado, de aproximadamente R$ 20 bilhões, em números preliminares.

Em 19 de janeiro, a varejista teve o pedido de deferimento do processamento de sua recuperação judicial concedido na Justiça carioca.

Na Justiça de São Paulo, o Bradesco ingressou com ação de produção antecipada de provas contra a Americanas, alegando ser um dos maiores credores da empresa.

A instituição financeira sustenta que, a despeito das justificativas apresentadas por representantes da varejista, os diretores, conselheiros, acionistas e auditores permitiram que a fraude contábil de gigantescas dimensões ocorresse em uma das maiores empresas do Brasil.

Assim sendo, o Bradesco alega ser necessário identificar e demandar os agentes individuais que contribuíram para a consumação da fraude, a saber, os administradores que participaram da elaboração das demonstrações financeiras adulteradas, e os acionistas, que aprovaram referidos documentos financeiros.

Inicialmente, a juíza de Direito Andréa Galhardo Palma, da 2ª Vara Empresarial de São Paulo, indeferiu requerimento formulado pelas Americanas que intentava a suspensão das investigações na empresa. Na decisão, a magistrada considerou que “o interesse público na apuração dos fatos em questão, que será beneficiado pelo incremento da transparência sobre as provas aptas a demonstrarem as alegadas fraudes e compartilhamento dos dados com a autoridade administrativa competente.”

A magistrada também reconheceu a competência da Justiça Estadual de São Paulo para processar e julgar a ação, ainda que a ação de recuperação judicial tramite na Justiça Estadual do Rio de Janeiro. Segundo a julgadora, o contrato firmado entre a Americanas e o Bradesco elege o foro da Comarca de Osasco/SP para solucionar controvérsias decorrentes do acordo.

Inconformada, a varejista recorreu da decisão no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Ato contínuo, o desembargador Ricardo Negrão, da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, manteve a decisão que determinou a busca e apreensão nas caixas de e-mails institucionais de diretores, membros do Conselho de Administração e do Comitê de Auditoria, funcionários das áreas de contabilidade e finanças das Lojas Americanas.

Todavia, conforme destacado alhures, o juízo responsável pela condução do processo de recuperação judicial, indeferiu o cumprimento da carta precatória expedida pela Justiça paulista, que determinava a adoção das providências necessárias para a busca e apreensão de mensagens eletrônicas.

Ao dispor sobre a competência para o ajuizamento da ação de produção antecipada de prova, o art. 381, parágrafo § 2º, do Código de Processo Civil prevê que “a produção antecipada da prova é da competência do juízo do foro onde está deva ser produzida ou do foro de domicílio do réu. Trata-se, portanto, de competência concorrente, mas restringida pela legislação: ou no local em que será produzida a prova, ou, então, no domicílio do réu.

Apesar dessa norma expressa, a Justiça paulista baseou-se na cláusula de eleição de foro prevista em contrato celebrado entre a varejista e a referida instituição financeira. Afirmou, então, que as partes “anuíram ainda que tacitamente, com a possibilidade de ajuizamento da presente demanda (e de outras sobre o objeto do contrato) perante este foro regional, reconhecendo portanto a conveniência da produção das provas requeridas no Estado de São Paulo”.

O argumento, com a devida venia, afigura-se equivocado.

Isso porque, não se aplica à hipótese a cláusula de eleição de foro ajustada contratualmente entre as partes. A eleição de foro se restringe, evidentemente, a abarcar controvérsias específicas que sejam relacionadas ao instrumento negocial em que está inserida. Ela não condão de atrair a competência para julgamento de controvérsias que não estejam abrangidas naquele negócio jurídico. Isto é, a circunstância de um dos ajustes encetados com o Bradesco ter previsão de eleição de foro não encerra uma autorização ilimitada para que toda e qualquer ação judicial ajuizada contra o Grupo Americanas tenha que observar a referida regra negocial.

No caso, no entanto, parece-nos que não se está a discutir, propriamente, qualquer controvérsia relativa ao negócio jurídico celebrado entre as partes. Embora possa vir a ter uma repercussão futura, o que se discute é a existência ou não do direito do Bradesco de produzir a prova requerida. Não há controvérsia contratual a ser dirimida e atrair a aplicabilidade da cláusula de foro de eleição. Tanto é assim, que o art. 381, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil estabelece que “a produção antecipada da prova não previne a competência do juízo para a ação que venha a ser proposta.” A esse respeito, o entendimento da jurisprudência do próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – Decisão que rejeita exceção de incompetência territorial – Contrato de transporte marítimo – Existência de cláusula de foro de eleição – Eleição que não prevalece em se tratando de simples produção antecipada de provas – Medida judicial que não encerra litígio ou disputa – Conveniência da realização de prova – Ação que não torna prevento o Juízo e em consequência torna inócua a cláusula de eleição de foro – Perícia que deve ser realizada no local em que se acha a carga – Respeito aos princípios da celeridade e menor onerosidade – Recurso provido para rejeitar a exceção. (TJSP, AI 2062511-78.2015.8.26.0000, Rel. Irineu Fava, 17ª Câmara de Direito Privado, DJ 16/5/15)

Agravo de instrumento. Prestação de Serviços. Exceção de incompetência. Cláusula de eleição de Foro. Ação cautelar de produção antecipada de provas. Natureza não constritiva, mas satisfativa e autônoma. Ausência de prevenção para eventual propositura de ação principal. O foro competente para apreciar a cautelar é aquele da Comarca onde a prova deve ser produzida. Recurso provido. (TJSP, AI 2269603-26.2015.8.26.0000, Rel. Paulo Camargo Magano, 26ª Câmara de Direito Privado, DJ 7/3/16)

De fato, nem mesmo se sabe, efetivamente, se alguma demanda será efetivamente ajuizada pelo Bradesco, tampouco se será direcionada contra o Grupo Americanas. Até porque, o próprio Bradesco asseverou que não busca, efetivamente, ajuizar uma demanda contra o grupo varejista, mas que pretende identificar os responsáveis que seriam “acionados com fundamento no art. 50 do Código Civil, mediante desconsideração da personalidade jurídica, ou mesmo diretamente, a depender do caso”, inclusive não-signatários da cláusula de eleição de foro.

Há muito se diz que para tudo há e deve haver um limite (modus in rebus). Se é inegável a importância do direito autônomo à prova, esse direito, assim como todo e qualquer direito, não se afigura ilimitado. Não pode, ainda, ser exercido abusivamente e de forma improdutiva.

A produção antecipada de provas serve, conforme definido na legislação processual, para apuração de um fato específico, que deve ser expressamente descrito. Não pode ser utilizado, então, para promover uma investigação profunda e ampla. Não serve, enfim, para investigar “culpados”.

De fato, como adverte Flávio Luiz Yarshell1, “é certo que a necessidade da prova – não apenas da antecipação – depende da exposição de um substrato fático mínimo e coerente com a medida que se quer produzir. A prova, independentemente do momento em que produzida, tem por objeto fatos. Eventual deficiência na narrativa dos fatos que se quer investigar interfere com a antecipação porque, na verdade, prejudica a admissibilidade da prova”.

Não é demais afirmar-se que a matéria deve ser apurada na recuperação judicial da varejista, em trâmite perante a Justiça carioca, até mesmo porque a instituição financeira não é a única credora do Grupo Americanas, nem, muito menos, a única interessada na apuração das circunstâncias que ocasionaram as inconsistências contábeis do fato relevante divulgado em 11 de janeiro de 2023.

De fato, todos os demais credores do Grupo Americanas, assim como as próprias recuperandas, têm inegável interesse na participação e no resultado de eventual prova pericial ou oral sobre os fatos discutidos na ação de produção antecipada de provas. Por isso, o mais razoável e adequado seria a centralização dessa prova no âmbito do processo recuperacional, com a instauração de um incidente processual.

O referido incidente processual possui amparo no art. 22 da lei 11.101/05, que disciplina as funções do administrador judicial. O inciso II do mencionado dispositivo, por sua vez, dispõe sobre as funções comuns dos administradores judiciais, que podem ser sintetizadas na fiscalização da recuperanda; apresentação de relatórios mensais e fiscalização da regularidade das negociações entre devedores e credores. Além disso, o art. 22, inciso I, alínea “d”, da lei 11.101/05 confere ao administrador judicial a prerrogativa de exigir dos credores, devedores e os administradores da recuperanda quaisquer informações para fiscalização das recuperandas.

Em outras palavras, no exercício do seu poder-dever de fiscalização da recuperação judicial, o administrador judicial possui a prerrogativa de solicitar quaisquer documentos necessários para os administradores, credores e devedores; de instaurar incidente para apuração de fraude na empresa recuperanda, inclusive de fatos ocorridos antes do pedido da recuperação judicial.

De acordo com o disposto no art. 381, parágrafo § 2º, do Código de Processo Civil, considerando que a sede da Americanas é no Estado do Rio de Janeiro e o local de produção da prova – seja da exibição de e-mails, seja da perícia – também seria na mesma localidade, não existindo qualquer norma que permitisse o ajuizamento da referida ação de produção antecipada de provas em São Paulo, concluindo-se por acertada a decisão proferida pelo juízo recuperacional, que indeferiu o cumprimento da carta precatória, que determinava a busca e apreensão nas caixas de e-mails institucionais de diretores, membros do Conselho de Administração e do Comitê de Auditoria, funcionários das áreas de contabilidade e finanças das Lojas Americanas.

Portanto, como medida de economia processual, de modo que seja resguardado o interesse de todos os credores do Grupo Americanas, o adequado se mostra a produção de todas as provas necessárias à apuração das inconsistências contábeis no âmbito do próprio processo recuperacional, com fiscalização do MM. Juízo da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro e dos administradores judiciais ali nomeados.

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1 (YARSHELL, Flávio Luiz. In Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 1.031)

Juliana Alconchel da Costa
Advogada e Membro Consultora da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da 39ª Subseção de São Bernardo do Campo – OAB/SP, presidida pelo Dr. Odair de Moraes Jr., sócio do escritório Moraes Jr. Advogados.

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