São de público e notório conhecimento as manifestações que ocorreram no país no dia 08 de janeiro de 2023 e que culminaram com centenas de prisões e a instauração de um sem número de processos civis, criminais e administrativos. Também é sabido que havia a presença de servidores públicos em tais manifestações, seja como meros participantes ou como agentes que deveriam evitar os danos que foram observados.
Em todos os casos, o que se viu foi a instauração e abertura massiva de processos administrativos disciplinares contra esses servidores pelos órgãos e entes federativos a que estavam vinculados. Contudo, para que haja a devida punição dos agentes públicos, é necessária a individualização da conduta praticada, bem como a verificação de que aquela conduta é passível de ser enquadrada em algum ilícito administrativo.
O Direito Administrativo Sancionador deve ser pautado pelos princípios do processo penal e pela individualização da conduta, bem como deve ser tratado com a cautela aplicada nestas situações, haja vista que se trata da expressão máxima do poder de punir da Administração Pública.
Assim, o primeiro passo para que se conceba uma punição administrativa é a
tipicidade da conduta, que se caracteriza pela descrição legal de uma conduta tida por ilícita.
Em seguida, é preciso observar se há uma conduta executada pelo servidor, caracterizada pela ação ou omissão juridicamente tipificada. Ato contínuo, é imperioso analisar se referida conduta é dolosa ou culposa.
A culpa, como regra geral, só é punível quando expressamente prevista em lei.
Quanto ao dolo, é tido como a manifestação comissiva ou omissa, voluntária, consciente e sob domínio do fato e de todas as circunstâncias que afetam a percepção da realidade do agente e que se materializa com o objetivo de alcançar o fim indicado pela norma proibitiva. Isto é, a conduta dolosa somente se caracteriza quando o agente tem o domínio do fato, conhece as circunstâncias e de modo consciente age para executar as elementares previstas na norma proibitiva.
Nesse ponto, é preciso evidenciar que a responsabilidade administrativa detém natureza subjetiva, isto é, só é possível responsabilizar alguém por ato de terceiro quando há expressa autorização legal.
Dentre os princípios que amparam o regime do Direito Administrativo Sancionador, destaca-se o princípio da culpabilidade. Sobre referido princípio, Fábio Medina Osório diz que:
“Para que alguém possa ser administrativamente sancionado ou punido, seja quando se trate de sanções aplicadas por autoridades judiciárias, seja quando se cogite de sanções impostas por autoridades administrativas, necessário que o agente se revele ‘culpável’”. (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 7. Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, p. 377.)
Alinhado a referido entendimento, temos as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, que traz que os entes públicos têm o dever:
[...] de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional, em sintonia com o senso normal de pessoas equilibradas e respeitosas das finalidades que presidiram a outorga da competência exercida [...] não serão apenas inconvenientes, mas também ilegítimas – e portanto, jurisdicionalmente invalidáveis –, as condutas desarrazoadas, incoerentes ou praticadas com desconsideração às situações e circunstâncias que seriam atendidas por quem tivesse atributos normais de prudência, sensatez e disposição de acatamento às finalidades da lei. (Curso de direito administrativo, 31ª ed., São Paulo: Malheiros, 2014, p. 111)
Os ensinamentos acima colacionados são importantes para evidenciar a grande diferença entre estar em um determinado lugar e praticar algum ato ilícito.
No caso das manifestações verificadas no dia 08/01/2023 em Brasília, não há autorização legal para a responsabilidade de terceiros. Portanto, é necessário separar os fatos: um, de que um agente público estivesse presente no local; outro, de uma imputação da prática de ato ilícito ou de uma omissão dolosa (quando a lei qualifica a inércia como ilícita).
Raciocínio contrário permitiria conclusões absolutamente esdrúxulas, como a responsabilização pessoal por danos ao patrimônio público praticados por terceiros. Entretanto, o Direito Administrativo Sancionador não permite este tipo de extensão de responsabilidade, cabendo a individualização das condutas a fim de separar aqueles que de fato praticaram fatos ilícitos daqueles que não tiveram qualquer responsabilidade pessoal.
Assim, a conduta correta é apurar quem, pessoalmente, agiu de forma ilegal para que se proceda à devida responsabilização pessoal e subjetiva, na medida da reprovabilidade de sua conduta.
Desta forma, é inviável juridicamente que se impute individualmente a responsabilidade legal por atos de terceiros, visto que tal conclusão levaria ao desrespeito das premissas básicas e fundamentais do sistema punitivo estabelecido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Ainda que haja premência da responsabilização pelos danos causados, tal premência não pode ser suprida ao atropelo de princípios e regras fundamentais que balizam o sistema punitivo, inclusive para evitar que os verdadeiros responsáveis sejam escudados por terceiros que podem ser indevidamente responsabilizados e gerarem uma sensação (falseada) de resposta à sociedade.