Migalhas de Peso

Supreme Court, Writ of Certiorari & Roberto Carlos

Justices, rule of four, opinions, petitions, writs of cert, respondents, affirmed decisions, reversed decisions... se você não conhece esses termos, dê uma pausa no seu dia para conhecer os trãmites para que um caso seja levado à Supreme Court of the United States. Se você não vem comigo nessa jornada, tudo isso vai ficar no horizonte distante.

2/2/2023

Como você já deve estar sabendo, a corte de última instância (‘court of last resort’) nos EUA é a ‘Supreme Court of the United States1’, ou, se preferir usar o acrônimo ‘SCOTUS’ vai demonstrar um pouco mais de intimidade. Uma instituição que para muitos é amor demais antigo; amor demais amigo2.

Vamos para a nossa primeira dica: não há ‘ministers’ na Supreme Court, mas sim ‘Justices’, ou melhor, ‘Supreme Court Justices’. A Supreme Court conta com 9 Justices3. Portanto, por tudo quanto é mais sagrado, resista à tentação de traduzir literalmente para ‘ministers’ (infelizmente como já foi feito por personalidades importantes do Brasil... por um acaso são membros do ‘Ministry of Magic4’? Por um acaso são Ministries of Golpel?).

Deixo aqui consignado a transferência linguística que teremos que exercer quando nos referirmos aos nossos Justices, utilizando a seguinte forma: Justice Rosa Weber, Justice Carmen Lúcia, Justice Alexandre de Morais... e assim por diante. É o que eu te proponho5 desde logo.

Para que um caso seja apreciado pela Supreme Court, é preciso que tenha recebido uma autorização especial, chamada ‘Writ of Certiorari’, que funciona como o nosso rito de admissibilidade dos ‘Recursos Extraordinários’. ‘Certiorari’ (tente pronunciar algo como /s?r.sh?.'rer.e/) é o nome do pedido formal que é feito pela admissão, que é o ‘writ’; portanto juntam-se os termos e temos ‘Writ of Certiorari’. Caso queira demonstrar traquejo com o termo, use a forma abreviada ‘Writ of Cert’. Você vai soar mais surrado pela vida e pelos ritos de admissibilidade.

Certiorari significa, literalmente, ‘para se ter mais certeza’. Como se a Supreme Court estivesse sendo provocada para que interprete as decisões das cortes do pais à luz da Constituição e decida se há ou não há subsunção. Para isso, precisamos incitar a Supreme Court com esse Writ a fim de que profiram (‘hold’) suas opinions, termo de uso para todas as decisões advindas dos Justices.

E aqui vai a nossa segunda dica: esqueça o termo ‘decision’ para a Supreme Court. Os Justices não produzem ‘decisions’ (apesar de ser um termo utilizado na grande mídia), mas sim ‘opinions’. Mais um exemplo clássico de inadequação da transferência linguística. Como você é um leitor assíduo dos nossos textos, nunca vai cair nessas enrascadas aparentam correção, mas que são tecnicamente inadequadas -  são coisas da vida6.

Pois bem, quase 100.000 pedidos (‘petitions’) pela admissibilidade são feitos todos os anos, mas apenas apenas 1% recebe (dizemos ‘is granted’) o ‘writ of cert’. Quem recebe os petitions é um sujeito bastante importante para o sistema: o ‘Solicitor General’ – na verdade é o 4º mais importante na hierarquia do Department of Justice (‘DOJ’), que é como se fosse o Ministério da Justiça deles.

Hoje em dia (ao momento da escrita desse artigo) a Solicitor General of the United States é Elizabeth Barchas Prelogar. Dentre as competências7 desse cargo, uma delas é a concessão (ou a mais frequente não concessão) do writ of cert. Ou seja, essa é a primeira ‘guardiã das admissibilidades’ (um ótimo apelido para usar em casa, veja só). 

Uma curiosidade especial desse cargo é que, ao longo dos anos, nomes importantes do judiciário norte americano foram Solicitor General, dentre eles Charles Fried (aquele senhor que nos ensina sobre contratos em Harvard), Thurgood Marshall (aquele do filme com o Chadwick Boseman), Archibald Cox (aquele que apareceu no filme ‘Nixon’, do Oliver Stone).

De toda a sorte, a atual é apenas a segunda mulher no cargo; ou seja, se existe um cargo menos progressista do que a da Solicitor General eu desconheço, o que se denota pela ideia de ‘guardião’ da imutabilidade dos julgados da Supreme Court, sua competência mais relevante.

Enfim, é o Solicitor General quem vai apreciar a matéria da ‘petition’ e vai avaliar se o caso compete a Supreme Court por matéria de direito (é o sujeito que bate no peito e diz ‘esse cara sou eu8’). É o próprio Solicitor General quem vai dizer, por exemplo, se o caso já possui ‘stare decisis’, ou se é de relevância transcendente (geralmente eu evito utilizar termos específicos nossos, mas eu acho lindo falar em transcendência e falo sempre que possível com um tom místico). É óbvio que o filtro aqui é incrivelmente denso e pedregoso.

Supondo que o seu petition consiga passar pelo Solicitor General (o que é um evento extremamente raro, portanto vá celebrar), então a próxima fase (mais um filtrinho) é o ‘Cert Pool’, que é quando os próprios Justices decidem quais são os casos que eles vão efetivamente conhecer.

Disso teremos uma ‘discussion list’. Por fim, para que o caso conhecido seja de fato levado ao apreço da Supreme Court, QUATRO dos NOVE Justices vão ter que anuir com a Petition, e assim ‘granting the Writ of Cert’. O nome desse último procedimento de admissibilidade é ‘the rule of four’ (percebe-se o porquê). 

Após, quando o seu caso passou pela rule of four e foi oficialmente admitido, é momento do contraditório. Você – o ‘petitioner’ - será intimado para apresentar ‘briefs’, que é um relatório justificando o conhecimento e importância da questão de direito constitucional que foi controvertida.

O mesmo ocorre com a parte contrária – o ‘respondent’ – também intimado a contrarrazoar seu brief com um outro brief. Ainda longe do fim, você será intimado a apresentar uma réplica ao brief do respondente, que nesse caso se chama ‘rebuttal’. Se você reparar bem, vai perceber que a etimologia de rebuttal remete a ‘rebate’, como se o respondent estivesse, de fato, rebatendo seus argumentos, afinal de contas ele não quer ver a interpretação alterada para ver seu caso desmoronar de cima para baixo.

Você deve estar imaginando “mas apenas as partes petitioner e respondent vão acostar briefs nesse momento?”. Lógico que você não estava imaginando isso, pois estava ainda lembrando se realmente assistiu ‘Nixon’ do Oliver Stone. Se não assistiu, anote aí para assistir porque vale a pena. 

De toda forma, importa deixar claro que, como todos os casos levados à SCOTUS terão impacto direto na vida dos Americanos (e no mundo todo, por que não?), então todos os entes que interessados ou que serão diretamente impactados pelo caso podem protocolar (dizemos ‘file’) os seus briefs como Amicus Curiae (atenção na pronúncia /’kjw.riae/), que se chama, obviamente, ‘Amicus brief’ (acho lindo isso de podermos sempre contar com nossos amigos de fé irmão camaradas nos casos mais cabeludos). Os Amicus briefs podem partir de quaisquer setores da sociedade, portanto o caso vai se recheando cada vez mais de detalhes9. 

Enquanto o petitioner quer receber o grant of cert, o respondent quer que a decisão da corte originária seja mantida. Em inglês jurídico, o termo ‘manter a decisão’ oriunda da corte a quo é ‘affirm the decision’ ou ‘uphold the decision’ (pelo amor da Themis, não vai traduzir como ‘maintain’). Nesse caso, nada mudou para você e é preciso saber viver10.

Quando o caso passa por esses filtros e finalmente é pautado para o ‘Argument Day’: o dia em que cada um dos Justices prolatará sua opinion sobre seu caso. No Argument Day os nove Justices se intimam todas as partes relevantes ao caso, the petitioner, the respondent, e ainda os Amici, e cada um tem cerca de 30 minutos para apresentar sua posição, o que geralmente é um tempo gasto respondendo perguntas dos Justices. Um dia de tantas emoções11 (ts ts ts), pois existe uma técnica própria para o Argument Day, inclusive é importante deixar claro que existem escritórios de advocacia nos EUA que são especializados nisso; é uma tarefa para pouquíssimos.

Chamamos todo esse procedimento de ‘Judicial Review’. Isso significa que pode ser que haja algo de ‘novo’, ou alguma interpretação inédita que pode brotar de seu caso; o que é uma coisa maravilhosa desde logo, porque cerca de apenas 100 casos por ano recebem o writ of cert (um outro motivo para celebração). Vai ser um dia épico para sua advocacia, e tem coisas que a gente não tira do coração12.

Ou seja, em números, o que eles fazem por ano nos EUA (com paciência, parcimônia, real ineditismo e solidez) é o que um Ministro do Supremo da Brasil faz em uma terça-feira calma (Nossa Senhora me dê a mão!). Como todos sabem, o nosso Supremo tem muito mais competências do que a SCOTUS (inclusive a penal) e o nosso filtro de relevância ainda está se refinando; de toda forma, percebe-se que há, comparativamente, no Brasil uma Corte Suprema abarrotada de processos. Não à toa é a corte suprema que mais aprecia casos no mundo.

Ao final de todo esse processo, pelo menos CINCO dos NOVE (ou seja, uma maioria) deve concordar pelo menos em parte com uma das partes; se a SCOTUS concorda com o petitioner, e altera a interpretação do caso à luz da Constituição, então é óbvio que vai reverter a decisão a quo. A isso chamamos ‘overturn the decision’; que é, por sua vez,  subsequentemente reenviada a origem para que se aplique a nova interpretação; a isso chamamos ‘remand the decision’. É por isso que se vê ‘the previous decision was overturned and remanded’. E sim, remand se parece com ‘remandar’ não por acaso. Assim, a nova decisão vai ter implicação além do horizonte13 do writ of cert original, porque vai se estabilizar em uma stare decisis e ter força de lei para casos semelhantes (princípio basilar da Common Law).

Por outro lado, se a SCOTUS concorda com o respondent, então, por óbvio, a decisão a quo não será alterada. A isso chamamos ‘affirm the decision’. É lógico que há outras formas de se falar o mesmo, mas vamos ficar por aqui com esses termos para passarmos para as opinions (que também podem ser chamadas de ‘holdings’).

O relator dos casos é geralmente o presidente do SCOTUS: ‘the chief Justice’. O nome desse ‘acórdão’ é ‘majority opinion’, justamente porque eles acórdão por maioria simples. Todas as opinions que foram prolatadas no caso são colecionadas em um documento único, disponível em .pdf no site do SCOTUS.

Quando você abre uma majority opinion você percebe que as vezes é uma ‘single majority opinion’, que nada mais é do que uma opinião unificada (unânime ou não, mas unificada de qualquer forma), com uma voz bastante enfática com relação a posição da SCOTUS. Isso acontece em casos de extrema relevância (como em Brown v. Board of Education14).

Caso um dos Justices seja voto vencido em uma majority opinion, o texto do seu holding será identificado como ‘discenting opinion’; ou seja, as decisões divergentes também são publicadas em conjunto. Quem concordou com a majority opinion em todos os seus termos não tem a necessidade de textualizá-lo em um holding, mas quem concordou por motivos diferentes pode redigir uma ‘concurring opinion’, que nada mais é do que o Justice dizendo que está ‘de acordo’ mas faz questão de explicar suas razões (incluindo razões divergentes em parte).

Ao ver uma concurring opinion, outros Justices podem concordar com ela e deixar de textualizar voto também. Enfim, é um jogo de ler quem concorda com quem, no que e em que tocante. 

Passando por um exemplo de uma opinion real (que está aqui15, por gentileza nos acompanhe), você percebe o seguinte: o documento que você acabou de abrir se chama, na íntegra, de ‘slip opinion’ (se não abriu, abra já, eita teimosia!). Repare que o caso é intitulado “NANCE v. WARD, COMMISSIONER, GEORGIA DEPARTMENT OF CORRECTIONS, ET AL.”, mas que para efeitos de citation, é referido apenas por ‘Nance v Ward’.

Repare também no seguinte “CERTIORARI TO THE UNITED STATES COURT OF APPEALS FOR THE ELEVENTH CIRCUIT”, o que significa que o certionari foi pedido à (é oriundo da) 11th Circuit Court, que é (como se fosse) um ‘TRF-11’ deles (o próximo artigo vai tratar especificamente disso, mas sem as referências ao Rei Roberto).

Após, há um breve resumo do caso em forma de texto, um ‘syllabus’. Ao final do syllabus você lê o seguinte:

981 F. 3d 1201, reversed and remanded.

KAGAN, J., delivered the opinion of the Court, in which ROBERTS, C. J.,

and BREYER, SOTOMAYOR, and KAVANAUGH, JJ., joined. BARRETT, J., filed

a dissenting opinion, in which THOMAS, ALITO, and GORSUCH, JJ., joined.

O que está te dizendo que a decisão da 11th Circuit Court foi cassada (‘reversed’) e a decisão da SCOTUS foi enviada para cumprimento lá na origem (‘remanded’). A egrégia Justice Elena Kagan foi quem proferiu a opinion geral da SCOTUS (‘delivered the opinion of the Court’), alguns Justices acompanharam a presidente (‘joined’); a Justice Amy Coney Barret teve um voto discrepante por suas razões, acompanhada pelos Justices Clarence Thomas, Samuel Alito e Neil Gorsuch. Minha sugestão é que ao menos passe os olhos nessa slip opinion e já vá se acostumando com os termos.

No mais, ficam aqui meus sinceros protestos de admiração ao Roberto Carlos, que, como uma corte suprema em sistema common law, cria novidades no nosso imaginário e permeia nossas vidas em todos os sentidos, nos inebriando com a sensação de que sempre existiu e que sempre existirá, arrastando hordas de entusiastas por onde passa, gerando novas fontes de inspiração ao mundo. O mais importante é que emoções vivemos ao longo da história jurídica dessa corte Suprema tão importante para o mundo.

And now, let’s get Legal!

______________

1 https://www.supremecourt.gov/ 

2 https://youtu.be/EVX_UgRxjtg 

3 https://www.supremecourt.gov/about/biographies.aspx 

4 https://harrypotter.fandom.com/wiki/Ministry_of_Magic 

5 https://youtu.be/dlBDVB3thrE 

6 https://youtu.be/_5iHCHSl3ic 

7 “Elizabeth Barchas Prelogar is the 48th Solicitor General of the United States and serves as the fourth-ranking individual at the Department of Justice.  As Solicitor General, she is responsible for conducting and supervising all Supreme Court litigation on behalf of the United States. The Solicitor General also determines whether appeals will be taken by the federal government to all appellate courts and whether the federal government will file an amicus curiae brief or intervene in any appellate court.  The Solicitor General additionally assists the Attorney General, the Deputy Attorney General, and the Associate Attorney General in the development of broad Department program policy”. Disponível em https://www.justice.gov/osg/staff-profile/meet-solicitor-general#:~:text=Elizabeth%20Barchas%20Prelogar%20is%20the,behalf%20of%20the%20United%20States. 

8 https://youtu.be/kEXvE90XsfE 

9 https://youtu.be/54xxnkXqltw 

10 https://youtu.be/xM4JFJYSkw4 

11 https://youtu.be/sS7dMnE30OM 

12 https://youtu.be/9RLvAfd9OcI 

13 https://youtu.be/IJjj68tzUYE 

14 Abra o documento aqui https://www.archives.gov/milestone-documents/brown-v-board-of-education#:~:text=In%20this%20milestone%20decision%2C%20the,Ferguson%20case. 

15 https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/21-439_bp7c.pdf 

Fabio Berthier da Cunha
Professor Especialista em Inglês Jurídico da 'Legal. English for Lawyers'. Graduado em Letras, Pós-graduado em Educação. Graduando em Direito pela UniCuritiba.

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