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A decisão preliminar do Tribunal de Contas como único fundamento para o ajuizamento da ação de improbidade

Muitas ações de improbidade foram ajuizadas tendo como fundamento único decisões preliminares do Tribunal de Contas.

27/1/2023

A lei 8.429, de 2 de junho de 1992, nasceu do PL 1.446/911, enviado pelo então Presidente Fernando Collor de Mello, com o objetivo principal de combater a corrupção, o mal uso do dinheiro público e os atos ímprobos de forma geral.

Em 2021 foi publicada a lei 14.230 que alterou diversos dispositivos da Lei de Improbidade (“LIA”). Nas justificativas do seu Projeto de Lei 2505/2021, consignou-se que a LIA carecia de revisão para sua adequação às mudanças ocorridas na sociedade, bem como na jurisprudência.

Ademais, a LIA foi reformada com inspirações derivadas de outros diplomas legislativos como a lei 13.105/15, que instituiu o Novo Código de Processo Civil, e a Lei nº 13.655/2018, pela qual foram incluídos novos artigos na Lei de Introdução às Normas do Direito – LINDB. Principalmente na perspectiva dos arts. 20, 21 e 22 da LINDB, os quais estabelecem que as decisões não devem ser baseadas em valores jurídicos abstratos, mas sim indicar de modo expresso as suas consequências jurídicas e administrativas, bem como considerar as dificuldades reais do gestor e as exigências políticas do seu cargo.

Anteriormente à reforma da LIA, diversos eram os casos de ações propostas sem o mínimo probatório necessário, sem especificação do suposto ato ímprobo na petição inicial e até mesmo sem qualquer demonstração da relação do ato com a atividade do agente, cenário que culminou no ajuizamento de ações de improbidade inconsistentes, instrumentalizadas para fins políticos.

Com a premência de trazer maior segurança jurídica para os bons gestores públicos, o legislador buscou afastar conceitos vagos que pudessem permitir arbitrariedades, bem como evitar a responsabilização de agentes públicos por meros atos corriqueiros no exercício da gestão administrativa.

Nesse sentido, diversas foram as alterações, mas algumas mudanças relevantes foram a exigência da caracterização do dolo para que haja punição pela lei e o maior rigor no que concerne aos requisitos de ajuizamento da ação, com a qualificação e devida demonstração dos atos ímprobos. De igual modo, a nova lei também alterou as modalidades de sanções previstas e os prazos prescricionais para ações de improbidade.

Em seu artigo 17, § 6º, a LIA passou a exigir que a ação de improbidade administrativa individualize a conduta do réu e aponte os elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência dos atos ímprobos, salvo impossibilidade devidamente fundamentada. Caso contrário, se a ação for proposta sem os mencionados elementos ou quando manifestamente inexistente o ato de improbidade, deverá ser rejeitada, conforme disposto no § 6º-B do artigo 17, da referida lei.

Nota-se que o artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa foi pensado com o objetivo de impedir a utilização indevida da ação, com falsa ou precária motivação de improbidade administrativa, devida a gravidade que é figurar no polo passivo de uma ação de improbidade.

Fato é que muitas ações de improbidade foram ajuizadas2 tendo como fundamento único decisões preliminares do Tribunal de Contas. Inclusive, em alguns casos, antes mesmo do investigado apresentar sua defesa no processo administrativo, o parecer preliminar de auditoria foi usado como única prova para fundamentar tal ação.

Como se sabe, a Corte de Contas pode realizar a sua atividade fiscalizatória, por meio de auditoria, para que se examine a economicidade, eficiência e efetividade de atos e contratos que envolvam receitas ou despesas públicas.

No âmbito do Tribunal de Contas da União é a lei 8.443, de 1992 que dispõe sobre a sua Lei Orgânica e o seu art. 10 estabelece que a decisão em processo de tomada ou prestação de contas pode ser preliminar, definitiva ou terminativa.

A decisão preliminar, por sua vez, é uma decisão inicial no processo, a qual não possui contraditório efetivo e não contém caráter conclusivo, apenas indícios de possíveis irregularidades, as quais ainda necessitam ser apuradas.

É a partir dessa decisão que os responsáveis são instados a apresentar eventuais justificativas ou defesas acerca dos achados de auditoria. Exatamente por ter essa natureza tão embrionária que a própria Corte de Contas entende não ser necessário o contraditório antes da decisão preliminar.

Esse é o entendimento do Tribunal de Contas da União manifestado em diversas decisões passadas:

A ausência de notificação dos responsáveis a respeito de apurações em curso no TCU antes da conversão do processo em tomada de contas especial não configura cerceamento de defesa. As etapas processuais anteriores têm natureza meramente preparatória e inquisitiva, com objetivo de apuração da irregularidade, quantificação do débito e identificação dos envolvidos, e, portanto, prescindem da participação dos responsáveis. (Acórdão: 1464/2013 – Plenário; Data da Sessão: 12/06/2013; Relator José Mucio Monteiro)

A deliberação que converte processo em tomada de contas especial, ou determina sua instauração, não faz coisa julgada nem fixa definitivamente a matéria litigiosa a ser desenvolvida no novo feito. As apurações desenvolvidas no âmbito da TCE poderão carrear aos autos evidências de novos e diferentes danos ao erário, que deverão ser objeto do devido contraditório antes da decisão de mérito a ser adotada. (Acórdão: 1721/2016 – Plenário; Data: 06/07/2016; Relator:  Benjamin Zymler)

Situação totalmente contrária ocorre quando a Corte de Contas profere decisão definitiva, na qual para sua formação é imprescindível que se tenha garantido o direito de defesa das partes, sob pena de nulidade do julgado.

Além da inegável importância do respeito à ampla defesa e contraditório para que uma decisão definitiva seja formada no processo administrativo, a busca da verdade material revela-se igualmente essencial, uma vez que, diferente do processo judicial, no âmbito administrativo, novos fatos podem ser revelados mesmo em fase adiantada do processo3, inclusive, alterando o que foi concluído em um parecer no início da fiscalização.  

Como se sabe, são comuns os casos em que o órgão de controle manifesta uma decisão preliminar que contém achados de auditoria com caráter de anormalidade4 e, após o contraditório, a Corte determina, em decisão definitiva, o arquivamento do processo, por não ter sido vislumbrada qualquer tipo de irregularidade.

Assim, a decisão preliminar no Tribunal de Contas pode ser – e muitas vezes é – totalmente modificada no curso do processo administrativo, uma vez que a defesa esclarece muitos aspectos que o grupo técnico não conseguiu vislumbrar.

Deste modo, questiona-se se a decisão preliminar do Tribunal de Contas, carente de densidade probatória, sem ter sido submetida ao contraditório e ampla defesa e com possíveis chances de ser alterada poderia ser considerada um indício suficiente da veracidade dos fatos e do dolo imputado para fundamentar a ação de improbidade, como demanda o art. 17, § 6º, inciso II, da LIA.

Ao realizar tal reflexão, é inevitável não vislumbrar a hipótese da Corte de Contas, em decisão definitiva, modificar a sua conclusão e decidir pelo arquivamento do processo administrativo, alterando o único fundamento em que se baseou a ação judicial.

Nesse cenário, mesmo tendo sido alterado o único fundamento em que se baseou a ação de improbidade, o réu continuará respondendo no âmbito judicial, e, como se não bastasse, diante de um sistema processual com tramitação extremamente lenta, sujeito a sanções gravíssimas.

Como se sabe, a apreciação por parte do Poder Judiciário não está condicionada à aprovação ou rejeição das contas pela respectiva Corte de Contas, uma vez que o art. 21, inciso II, da lei 8.429/925 estabelece tal impossibilidade.

Não é pelo fato de o Tribunal de Contas ter aprovado as contas de determinada obra que o Ministério Público ficará vinculado a esta decisão, impedido de ajuizar ação de improbidade que questione eventual dano ao erário e enriquecimento ilícito da empresa responsável, por exemplo. É evidente que tendo o Parquet evidências de que existe o ato de improbidade administrativa, deve atuar para sancionar os responsáveis e recuperar o dinheiro escamoteado.

Todavia, a problemática que ora se expõe é completamente diferente, pois se trata de uma ação de improbidade tendo como fundamento único uma decisão não submetida ao contraditório e com prováveis chances de alterações pelo Tribunal de Contas.

Pela gravidade das sanções estabelecidas na Lei de Improbidade Administrativa, eventual medida cautelar de indisponibilidade de bens que for deferida, pode trazer repercussões imediatas e irreparáveis, tanto para pessoa física como para pessoa jurídica, podendo prejudicar de forma definitiva a sua reputação comercial, inclusive causando grande número de desemprego no mercado.

Mesmo se o réu for inocentado ao término da morosa lide, o dano à sua imagem e a sua moral é difícil de ser superado no meio social, por ter figurado na injusta condição de réu em uma ação de tamanha gravidade.

Por outro lado, deve-se atentar para o princípio do in dubio pro societate – na dúvida se favorece a sociedade – e esse é o desafio da ponderação que deve ser feita pelo Parquet, ao ajuizar a ação, e pelo magistrado, ao receber a petição inicial.

Caso existam indícios concretos de autoria e materialidade dos fatos descritos, o Ministério Público deve ajuizar a ação de improbidade para que nela seja demonstrada a eventual inocência do réu.

Entretanto, em que se pese o in dubio pro societate, tendo atenção ao prazo prescricional, previsto no artigo 23 da lei 8.429/92, se revela necessário e prudente que o Ministério Público aguarde, até uma primeira oitiva dos interessados ou utilize instrumentos legais, como a sindicância e o inquérito civil público, para que consiga colher um indício mais robusto e verossímil do ato ímprobo, evitando uma futura ação natimorta.

Já tendo o próprio Tribunal de Contas reconhecido que os apontamentos iniciais feitos por sua equipe técnica estão suscetíveis à mudança, caso o Ministério Público se aproprie desses achados, que sequer foram contestados, e utilize-os como danos já estabelecidos para fundamentar uma ação de improbidade, a instituição poderá agir contra o próprio princípio in dubio pro societate.

Atuando dessa forma, o dever do Ministério Público em tutelar os interesses da sociedade pode ficar prejudicado, uma vez que a chance do insucesso da ação é maior.

Dessa forma, antes da alteração da LIA, já existiam julgados que, em situações semelhantes, entendiam pelo prejuízo da ação de improbidade, caso fosse ajuizada tendo como fundamento único decisão do Tribunal de Contas que viesse a ser modificada. Esse foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:

Ora, se a inicial estava baseada, inteiramente, no primeiro acórdão do Tribunal de Contas da União, não se pode deixar de considerar o segundo acórdão, que reconheceu, sobretudo, a ausência de dolo da ré. Esse raciocínio, na minha compreensão, não fere a norma do art. 21, inciso II, da lei 8.429/92, com o seguinte teor:

“Art. 21. A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:

[...]

II – da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle 

interno ou pelo Tribunal ou Conselho de Contas.”

[...]

Com efeito, diante desse quadro, reitero que o provimento do recurso interposto pela ora recorrente no TCU, o qual reconheceu a ausência de dolo, acarreta a improcedência da presente ação de improbidade em decorrência da falta do elemento subjetivo, descaracterizando-se a tipicidade dos fatos.

(RE 1.124.577, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, data de julgamento: 10.04.2012, Segunda Turma)

Da mesma maneira entendeu o Tribunal Regional Federal, da 1ª Região, na decisão proferida pelo Desembargador Federal Tourinho Neto:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DECISÃO. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. RECURSO DE RECONSIDERAÇÃO. EFEITOS. 1. A Lei 8.429/92 da Ação de Improbidade Administrativa, que regulamentou o disposto no art. 37, § 4º da Constituição Federal de 1988, tem como finalidade impor sanções aos agentes públicos incursos em atos de improbidade nos casos em que: a) importem em enriquecimento ilícito (art. 9º); b) que causem prejuízo ao erário (art. 10); c) que atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11). 2. Se a ação é ajuizada com base em decisão do TCU, que, em sede de recurso de reconsideração ou de revisão, vem a ser modificada após exaustivo exame, considerando regulares e boas as contas, não se pode ter como configurada a improbidade administrativa. 4. Apelação não provida (TRF-1 – AC: 21376 DF 1998.01.00.021376-2, Rel. Desembargador Federal Tourinho Neto, data de julgamento: 21.09.2004, Terceira Turma, data de publicação: 08.10.2004 DJ p.19)

Com a reforma da LIA, acredita-se que esse entendimento será ainda mais reforçado, uma vez que os requisitos para o ajuizamento da ação de improbidade se tornaram mais rígidos no sentido da necessidade de se demonstrar documentos que contenham indícios de veracidade do fato e do dolo imputado.

Registra-se que os atos de improbidade devem ser punidos com a devida seriedade. Todavia, a decisão preliminar da Corte de Contas possui natureza transitória, sem caráter conclusivo e demonstra-se insuficiente, principalmente após a alteração da LIA, a constituir, por si só, os elementos necessários para fundamentar uma ação tão gravosa como a ação de improbidade.

Em conclusão, objetivando o sucesso da ação, revela-se mais eficaz que o Ministério Público, em situações semelhantes, aguarde – sempre tendo atenção ao prazo prescricional da ação – até reunir carga valorativa mais robusta para propor a ação de improbidade e assim cumprir o seu dever na salvaguarda do erário público.

____________

1 MATTOS, 2010, p. 27.

2 Vide Processo n. 0005857-80.2010.8.19.0031; Processo n. 0160912-91.2017.4.02.5105; Processo n. 2009.34.00.006669-6.

3 Art. 160, § 2º, do Regimento Interno do TCU.

4 Ocorre o caráter de anormalidade em um achado de auditoria quando se observa fuga aos preceitos técnicos e legais aplicáveis aos fatos e atos inerentes à gestão de recursos públicos.

5 “Art. 21 A aplicação das sanções previstas nesta Lei independe: I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento; II – da aprovação ou rejeição das contas pelo órgão de controle interno ou pelo Tribunal ou Conselho de Contas.”

____________

BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências 

______. Lei n. 8.443, de 16 de julho de 1992. Dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União e dá outras providências. 

______. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Ext. 633/CH. Rel. Min. Celso de Mello, j. 28.08.1996, DJ 06.04.2001. 

______. ______. RE 1.124.577, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, data de julgamento: 10.04.2012, Segunda Turma. 

______. ______. ADI 4.190/DF, Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 10.02.2010. 

______. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.558.038/PE. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, DJe 09.11.2015. 

______. ______. REsp 407075/MG. Rel. Min. Luiz Fux, 1ª T., DJ 23.09.2002. 

______. ______. REsp 1108010-SC 2008/0276511-4. Rel. Min. Herman Benjamin, data de julgamento 21.05.2009, Segunda Turma, DJe 21.08.2009. 

______. TJRO. Rel. Des. Adilson Alencar. AI 98.001.012-8, Câmara Cível, julgado em 8.9.1998.

______. TJSC, Des. César Abreu, AI n. 2001.013380-6, 3 a Câmara de Direito Público, julgado em 25.04.2003. 

______. TRF – 1ª Região. Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro, AI 01000071692/AM, 3ª T., DJ de 04.06.2004. 

______. TRF-1 – AC: 21376 DF 1998.01.00.021376-2, Rel. Desembargador Federal Tourinho Neto, data de julgamento: 21.09.2004, Terceira Turma, DJ 08.10.2004. 

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 

DUARTE JR., Ricardo. Improbidade administraiva: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. 

GARCIA, Emerson; ALVES, Rogerio Pacheco. Improbidade administrativa. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. 

______; ______. Improbidade administrativa. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 

MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. 1962 – O limite da improbidade administrativa: comentários à Lei n. 8.429/29. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 

RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Contas. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro,Rio de Janeiro: O Tribunal,  v. 2, n. 7, p. 61-101, jan./jun. 2014.  

______. Tribunal de Contas. Manual de auditoria governamental do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. 2010. 

SALLES, Alexandre Aroeira, O processo nos Tribunais de Contas: contraditório, ampla defesa e a necessária reforma da Lei Orgânica do TCU. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 

Julia do Espírito Santo Oliveira Ribeiro
Advogada e membro da Comissão de Obras, Concessões e Controle da Administração Pública da OAB do Rio de Janeiro.

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