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Injúria racial, o PL 4.566/21 e a “fase de revisões legislativas” no combate ao racismo

Evidenciou-se a importância da legislação penal no combate às práticas racistas, mas, também, que ela não é suficiente para resolver a questão da desigualdade racial.

26/1/2023

Sancionada no dia 11/1/23, pelo Presidente Luis Inácio Lula da Silva, na ocasião da posse das ministras da Igualdade Racial, Anielle Franco, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, no Palácio do Planalto.  Uma vez mais a ação estatal privilegiou o campo penal no combate ao racismo, atendendo as vozes que ecoam da comunidade negra, mas não únicas, outras são as que reivindicam maiores resultados nas ações de responsabilidade civil por danos sofridos pelas vítimas do racismo. Isto com certeza merecerá atenção destacada por parte dos civilistas e privatistas. Essa arquitetura de direitos humanos de cunho racial formará um adensamento jurídico legal com repercutindo nas ações no campo socioeconômico.

A produção legislativa nacional sobre o enfrentamento ao racismo inovada pela lei 14.532, de 11 de Janeiro de 2023 altera a lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, preve pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística , prevê pena para o racismo religioso , recreativo e para o praticado por funcionário público.

Fruto de um esforço de renomados juristas negros após dez meses de funcionamento, a comissão de juristas criada pela Câmara dos Deputados denominada COMISSÃO DE JURISTAS DESTINADA A AVALIAR E PROPOR ESTRATÉGIAS NORMATIVAS COM VISTAS AO APERFEIÇOAMENTO DA LEGISLAÇÃO DE COMBATE AO RACISMO ESTRUTURAL E INSTITUCIONAL NO PAÍS. para propor mudanças na legislação de combate ao racismo estrutural entregou o seu relatório final, nesta terça-feira (30/11), em sessão solene no plenário da instituição parlamentar. Instalado em janeiro deste ano, o grupo foi presidido pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça.

Ao todo, houve 16 reuniões entre os 19 integrantes da comissão, que trabalhou com o objetivo de dotar o sistema jurídico de instrumentos para combater problemas históricos, como a desigualdade entre negros e brancos no acesso à educação e no mercado de trabalho, o encarceramento em massa da população negra e a violência das abordagens policiais contra essa parcela da sociedade.

Benedito Gonçalves ministro do STJ e Corregedor da Justiça Eleitoral , afirmou que "A luta contra o racismo e a discriminação racial deve ser diária, constante e permanente. Este relatório final é o nosso convite ao parlamento e ao povo brasileiro para lutarmos juntos, a fim de que tenhamos uma sociedade livre, justa e solidária”

O relatório final da comissão de juristas sugere alterações legais para além da esfera punitiva, com proposições divididas em cinco eixos: sistema de Justiça criminal; direito econômico, tributário e financeiro; direitos sociais; medidas de combate ao racismo institucional no setor público, e medidas de combate ao racismo institucional no setor privado.

Com mais de 500 páginas, o documento tem como denominador comum das diferentes propostas de aperfeiçoamento da legislação antirracista o propósito de tornar a promoção da igualdade racial uma política perene de Estado.

Entre as principais novidades legais recomendadas pelo relatório, estão a renovação da política de cotas raciais nas universidades, a criação de um fundo para a igualdade racial, a definição de parâmetros para as abordagens policiais contra pessoas negras e a implementação de programas de compliance em direitos humanos para superar a discriminação racial no setor privado.

Racismo, preconceito, discriminação e injúria raciais – uma brevíssima revisão

A fim de combater a prática do racismo, o Estado brasileiro, ante o clamor da comunidade negra, inicialmente editou leis que desconsideravam a gravidade do racismo, a exemplo da lei 1.390/51 - Lei Afonso Arinos - que definiu o racismo como sendo mera contravenção penal. Depois, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o art. 1º, inciso III e o art. 5º reconheceram, respectivamente, a dignidade humana e a igualdade como princípio e direito fundamentais e, em inédita previsão na ordem jurídica, a prática do racismo foi alçada ao status de crime imprescritível e inafiançável.

Pari passu, foi editada a lei 7.716/89 - Lei Caó - e suas alterações, para complementar o dispositivo Constitucional. Finalmente, ainda no campo penal, foi sancionada a lei 9.459/97 que, ao alterar o art. 140, do decreto-lei 2.848/40, introduziu no parágrafo terceiro a controversa prática da injúria racial, que acomodou a resistência social e judicial contra a aplicação da Lei Caó, quase a esvaziando de existência e de sentido.

Não bastasse tudo isso, diversas alterações posteriores e julgados do Supremo Tribunal Federal – STF - incluíram na seara da Lei Caó a repressão de outras práticas discriminatórias, como as de origem nacional, religião, contra a pessoa idosa, pessoa com deficiência e à homofobia, trazendo maior complexidade na aplicabilidade jurídica do tema.

Uma análise da lei 7.716/91 (Lei Caó) permite entender o quanto de avanço representou para a construção de um direito racial, em um contexto pós-Constituinte ainda contaminado por bancadas conservadoras no Congresso Nacional. Para isso, é necessário entender o contexto político, que, embora mudancista - por força dos movimentos sociais a pleitear demandas políticas reprimidas – ainda se mostrava incapaz de maiores conquistas.

A conceituação das categorias racismo, preconceito e discriminação racial deve evitar imprecisões, para além das terminológicas com consequências embaraçosas, sobretudo no campo do direito penal.

Na obra “O papel do direito penal no enfrentamento da discriminação” de Kátia Elenise Oliveira da Silva define que o primeiro, racismo, é uma ideologia; o segundo, preconceito, uma atitude interna, psicológica; e o terceiro, discriminação uma prática ofensiva ao direito à igualdade.

Assim, apenas a discriminação pode ser coibida criminalmente – “por se manifestar em uma conduta, ou na vontade exteriorizada do homem, projetada no mundo, pode ser regulada pelo direito, desde que seja injusta e limite direitos constitucionalmente consagrados do indivíduo discriminado”, diz a autora.

Dessa maneira, os arts. 3º a 14 da lei Federal 7.716/89, por versarem sobre condutas discriminatórias – impedimento ou restrição de acesso a serviços, locais ou oportunidades educacionais e empregatícias – não são, de qualquer modo, ineficazes ou inconstitucionais. Pelo contrário, tais preceitos de preservação ao princípio constitucional da igualdade devem ser aplicados e exigidos pelas autoridades públicas. As discriminações penalmente relevantes descritas no art. 1º da referida lei se relacionam a fatores de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O preconceito contra mulheres e homossexuais, entre outros, passou a ser proibido mediante incriminação. Tal inovação traz aspectos positivos, na medida em que se aplica às condutas discriminatórias inscritas nos dispositivos legais inicialmente mencionados.

Quanto ao impróprio art. 20 da Lei Caó, que versa sobre três condutas diferentes - praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional - contudo, verifica-se que pretende reprimir as práticas de preconceito, o que é penalmente impossível, dado que se tem por alvo uma predisposição psíquica, interna do sujeito ativo.

O direito penal não pode pretender coibir pensamentos ou visões de mundo, senão, condutas praticadas no plano social. Em relação aos dois últimos núcleos do tipo legal de crime – induzir e incitar - percebe-se notavelmente o equívoco da lei 7.716/89. O discurso crítico a determinadas minorias pode ser interpretado, e geralmente o é, como incitação à discriminação. Desde a divulgação da ideologia racista do nacional-socialismo até à divulgação de doutrinas religiosas, diversas manifestações do pensamento podem ser lidas como incentivos à prática da discriminação. Visível, nos exemplos, a ausência de proporcionalidade na tutela penal.

Evidentemente que a discriminação racial promove danos de ordem psicológica. Não é por menos que embora não esteja inserido em diretrizes como da Associação Americana de Psiquiatria, é importante que tenhamos uma compreensão do que é o trauma racial.

Em termos psicológicos, trauma é uma resposta emocional a um evento perturbador, como um desastre natural ou um crime violento, por exemplo. Seguindo esse raciocínio, o trauma racial é uma reação a experiências de discriminação racial, incluindo violências ou humilhações, e que também pode ser chamado de trauma ou estresse traumático baseado na raça.

Todos os tipos de trauma, incluindo o racial, podem contribuir para o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático, uma condição marcada por uma série de efeitos mentais e físicos e que pode ser desafiadora do ponto de vista do tratamento.

As experiências traumáticas ativam as respostas corporais de luta, fuga ou paralisia do corpo, desencadeando a liberação de hormônios do estresse - cortisol e adrenalina - que causam uma série de mudanças fisiológicas, incluindo aumento da frequência cardíaca e alerta mental elevado. Em condições normais, assim que a experiência termina, o corpo retorna gradualmente ao seu estado de equilíbrio.

Portanto, tais danos transbordam a esfera criminal, sendo reparáveis no campo da responsabilidade civil por danos morais e psicológicos.

Outro aspecto é que, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 154.248, a partir da lavra do voto do eminente Ministro Edson Fachin, disse, sobre as diferenças entre racismo e injúria racial, que:

“Vários dos crimes previstos na mencionada lei extravagante são, até mesmo, apenados com sanção privativa de liberdade idêntica à do Código Penal. A diferença, desse modo, é meramente topológica, logo, insuficiente para sustentar a equivocada conclusão de que injúria racial não configura racismo. Conforme sustenta Guilherme de Souza Nucci (op. cit., p. 726), o rol daquele diploma não é exaustivo, devendo-se considerar a conduta prevista no art. 140, § 3º, do CP “mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão”. Observe-se, nesse contexto, que o crime em análise, por ser sujeito à pena de reclusão, não destoa do tratamento dado pela Constituição ao que ali se prevê como crime de racismo. Acrescento ainda que o legislador, na esteira de aproximar os tipos penais de racismo e injúria, inclusive no que se refere ao prazo para o exercício da pretensão punitiva estatal, aprovou a lei 12.033/09, que alterou a redação do parágrafo único do art. 145 do Código Penal, para tornar pública condicionada, antes privada, a ação penal para o processar e julgar os crimes de injúria racial. Assim, o crime de injúria racial, porquanto espécie do gênero racismo, é imprescritível. Por conseguinte, não há como se reconhecer a extinção da punibilidade que pleiteiam a impetração. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus.”

Tal entendimento foi seguido dos votos dos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux e Alexandre de Morais, tendo como voto vencido o do Ministro Cássio Nunes. O ministro Gilmar Mendes não participou do julgamento.

A decisão mereceu elogios do hoje ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, em entrevista ao site Consultor Jurídico.

Conforme Almeida, "apesar de o Direito Penal ser um instrumento bastante limitado para o enfrentamento do racismo, a decisão do STF foi acertada e com isso será possível que as ofensas de cunho racista tenham o tratamento adequado por parte do sistema de Justiça do Brasil" e, em complemento disse que:

"A decisão do STF reafirma a posição do STJ que firmou o entendimento de que a injúria racial é uma modalidade do crime de racismo e portanto não pode estar sujeito aos prazos decadenciais que incidem sobre os crimes contra honra, subordinando-se ao inciso XLII do art. 5º da Constituição Federal que estabelece que 'a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível'. A decisão é acertada, sobretudo porque em muitos casos havia a desclassificação do delito de racismo para injúria racial e, neste caso, invariavelmente era reconhecida o decurso de prazo decadencial, o que resultava, na prática, na impunidade do ofensor, uma vez que não poderia haver condenação neste caso".

O projeto de lei 4.566/21 e quando apenas o aumento de penas não basta

A criação de leis penais que visam coibir a prática de racismo se torna a última instância possível, quando os mecanismos morais e éticos não são suficientes para a inibição do agir individual, coletivo ou institucional racista. Tal compreensão movimentou a militância social especializada, o Movimento Negro, para reivindicar o aperfeiçoamento e aplicação dessa legislação e, também, exigir a criação de legislação de natureza civil visando a igualdade de direitos e de oportunidades, a exemplo das políticas de ação afirmativa e de seus mecanismos, como as cotas raciais no campo do ensino, do trabalho e na saúde pública.

Mas, mesmo com a vigência de todas essas medidas legislativas que almejam atingir a abolição social dos negros, nos vemos hoje numa etapa de produção legislativa que poderemos denominar de “Fase de Revisão”, que merece o mesmo nível de rejeição da Lei Áurea de 1888 e pela mesma razão: o desejo de querer demarcar, com e por leis, o fim da prática do racismo e de seus efeitos deletérios, sem as transformações profundas exigidas pelo momento histórico.

Evidenciou-se a importância da legislação penal no combate às práticas racistas, mas, também, que ela não é suficiente para resolver a questão da desigualdade racial, sem profundas transformações no campo socioeconômico no seio da comunidade negra.

O recrudescimento da legislação penal, no sentido positivo de melhor especificar as práticas racistas e, ainda, agravar as penas existentes, como pretende o projeto de lei 4.566/21 - a incidir nas atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público - resta ingênua e não melhorará a desejável eficácia social da norma, ante a persistência da ideologia racista no agir individual, coletivo e institucional, bem como ante a própria doutrina do direito penal, como é o caso da teoria do direito penal mínimo.

Concluindo, além do que foi acima analisado, espera-se que os membros dos novos governos estaduais e federal, especialmente o agora empossado Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, bem assim, os novos membros do Poder Legislativo Federal, mantenham os compromissos assumidos nas suas plataformas de governo e de campanha eleitoral para com a promoção da igualdade racial, sem olvidar a continuada cobrança e ação política da comunidade negra e do Movimento Negro junto a eles.

Luiz Fernando Martins da Silva
Advogado, professor, doutrinador, Mestre em Direito Político pelo PPGR do IMBennett; Doutorado em Ciências Políticas Incompleto pelo antigo IUPERJ e Doutor Honoris Causa pela FATEF, atuou como defensor das Cotas Raciais da UERJ, e contra discriminação religiosa junto ao STF, foi Ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Raciais da Presidência da República - SEPPIR - PR, Sub-Secretário de Arrecadação Tributária do Município de Duque de Caxias, Diretor Jurídico do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras - IPCN e do Centro Brasileiro de Documentação e Identificação do Artista Negro - CIDAN. Recebeu a Medalha Luiz Gama do IAB em 2022.

Sérgio Luiz da Silva de Abreu
Advogado, Mestre em Direito do Estado e Direito Constitucional da Puc/Rio, autor de Descaminhos da Tolerância – o afro-brasileiro e o princípio da igualdade e da isonomia no Direito Constitucional . Ed. Lúmen Iuris, autor de “Desarquivando Direitos”, obra em quatro volumes. Agraciado com a Medalha Jubileu de Roma conferida pela Casa Delle Letterature Piazza Dell"Orologio, a Medalha Luís Gama, conferida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, Medalha Zumbi dos Palmares pela conferida pela 57ª Subseção (Barra da Tijuca) da OAB/RJ.

Ilzver de Matos Oliveira
Advogado, Doutor em Direito, advogado, professor, ativista do movimento negro e de povos de terreiro em Sergipe, recebeu o Prêmio Direitos Humanos 2018, do Ministério dos Direitos Humanos, e o Prêmio do Programa Ancestralidades de Valorização à Pesquisa 2022, da Fundação Tide Setúbal e Itaú Cultural

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