Um bom sistema de insolvência é um relevante fator de atração de investidores e um forte aliado ao desenvolvimento de qualquer país. A adoção de diretrizes e boas práticas sobre a resolução da insolvência empresarial foi impulsionada globalmente por organismos internacionais que influenciam diversos sistemas legislativos concursais, incluindo-se aí o Brasil.
Contudo, a edição de uma legislação alinhada com as práticas e diretrizes internacionais não significa necessariamente alcançar os resultados economicamente desejados pela sociedade na realidade local. No Brasil, há uma forte tendência de acreditar ser a Lei (strictu sensu) suficiente para provocar na realidade o poder transformador de uma realidade.
Passado mais de 15 (quinze) anos da vigência da LREF (Lei de recuperação de empresa e Falência), os conflitos sistêmicos foram absolutamente relevantes para a nossa economia. Tivemos pedido de recuperação judicial de sociedade empresária que era concessionária de energia elétrica a relevantes players dos setores de Telecomunicação, Mineração, Engenharia e Petroquímica.
Em 11/1/23, uma gigante Companhia do varejo comunicou ao mercado em geral que ocorreram “inconsistências em lançamentos contábeis redutores da conta fornecedores realizados em exercício anteriores”, tal como constou em seu Fato Relevante. As tais inconsistências, na estimativa interna da própria Cia, teriam uma dimensão de R$ 20 bilhões de reais!
De lá para cá, o que se viu, está se vendo e ainda se verá é uma grande corrida de sucessão de fatos com vistas a proteger os respectivos patrimônios das partes diretamente interessadas nessa hecatombe que desabou no mercado, culminando com o pedido de recuperação judicial formalizada na data de 20/1/23 tendo sido deferido o seu processamento horas depois pelo Poder Judiciário, em uma celeridade que deve ser aplaudida, porém, infelizmente, pouco frequente.
A recuperação judicial das Americanas é a quarta maior recuperação judicial da história do Brasil.
A recuperação judicial é o instituto previsto no sistema brasileiro de leis que permite ao devedor-empresário renegociar com seus credores num ambiente extraordinário, o que não seria possível se em recuperação judicial não estivesse. Nesse cenário, o devedor tem a seu favor a suspensão da adoção de atos de constrição do seu patrimônio.
Com esse período de suspiro e sem risco de ser frequentemente surpreendido com penhoras e sequestros de dinheiro e bens, o devedor em situação econômico-financeira grave pode discutir um plano de recuperação para preservação da atividade econômica (fonte produtora de bens e serviços), dos empregos dos trabalhadores e também para o bem do interesse dos credores que, em tese, terão seus créditos satisfeitos ao invés da hipótese da execução concursal de credores (falência).
Mas, o Poder Judiciário tem condições de ser o protagonista capaz e adequado de converter esses progressos e avanços alvissareiros da legislação concursal?
Qualquer que seja o regime da insolvência, seja concursal ou não, irá reverter em custos de transação para pagar a conta das “inconsistências contábeis” da vez, seja os credores com a concessão de deságios e prazos, sejam os trabalhadores com negociação de direitos trabalhistas, sejam os consumidores que verão os empresários, naturalmente, precificando o custo da recuperação e repassando-os ao mercado, acarretando, por consequência, redução de eficiência qualitativa, quantitativa e de tempo.
Em que medida o Poder Judiciário deve ser complacente? Ou em que extensão caberia ao Poder Judiciário um olhar mais rigoroso à pretensão de recuperação judicial que vise a suavizar a derrocada financeira de uma sociedade empresária que, eventualmente, pudesse encontrar uma outra solução dentro das hipóteses do capitalismo de mercado?
As transações de mercado, inerentes ao desenvolvimento social econômico, serão sempre mais eficientes se for possível atribuir uma realocação ótima aos ativos disponíveis de sorte que a opção estatal só seja a escolha, caso haja um valor significativo de continuidade da operação ao arranjo social como um todo, o que, considerando o grande número de players do varejo deve ser levado em consideração.
A recuperação judicial, desenvolvida com as suas características de pluralidade de interesses e objetos variados, deve ser célere, exigindo, por vezes, uma conduta ativa da jurisdição em detrimento da postura passiva, reativa e indiferente do magistrado na condução do processo de conhecimento ordinário. Com a consciência da tutela diferenciada da recuperação judicial, nasce também um “Juiz Gerente” ou “Juiz Gestor”, que não é nem aquele Juiz da fase de conhecimento tampouco o Juiz da fase de execução do processo civil ordinário.
Não só o legislador é um arquiteto de escolhas, como também o Juiz, assessores, analistas financeiros, advogados, empresas de intermediação de interessados, devem ser concebidos nesse processo de criação de um mercado de compra e venda de ativos de empresas em dificuldades financeiras para se alcançar os comportamentos socialmente benéficos e desestimular ações socialmente indesejadas.
Basicamente e, em resumo, impõe-se a reflexão sobre os resultados identificados na realidade pratica brasileira. A utilização reiterada, ao longo dos anos, de recuperações judiciais consideradas não exitosas aos objetivos definidos pela lei, pode servir de incentivo à utilização dessa ferramenta para alcançar proveitos e vantagens ocultas, tais como dar sobrevida a uma empresa inviável para mitigar os direitos dos trabalhadores e os interesses dos credores, através do alongamento, deságio e redução da taxa de juros e correção monetária da dívida. E isso vindo a ocorrer, é justamente o contrário do que se pretendeu com a lei 11.101/05.