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Americanas: é chegada a hora de encararmos a recuperação judicial de frente

Talvez seja chegada a hora de encaramos a recuperação judicial de frente; a hora de percebermos que, se um olho nos faz pecar, melhor o arrancarmos e ficarmos inteiramente cegos – como a justiça deveria ser desde o princípio.

23/1/2023

Marco Túlio Cícero (106 a.c. – 43 a.c.), indiscutivelmente uma das personalidades que mais influenciaram o pensamento ocidental, recomendava como instrumento certeiro para a compreensão radical de certos problemas “a máxima de Cássio”.

Mas a máxima de Cássio, ao contrário do que se possa pensar de imediato, não era uma afirmação - era, é, uma pergunta: “cui bono?” (“a quem interessa?”).

É curioso (porque ao mesmo tempo em que escapa à lógica, intui-se pelo espírito) que algumas perguntas sejam mais reveladoras que muitas respostas. Talvez isso se deva ao fato de que, como já estão imediatamente disponíveis (alguém já as obteve antes de nós), as respostas têm o poder de, muitas vezes, fazer cessar a nossa busca pela verdade enquanto ainda estamos no meio do caminho - especialmente se tais respostas tiverem autoridade, e sobretudo se a autoridade for a de um dogma, e mais ainda se esse dogma for elevado a lei. 

O problema é que, no meio do caminho, só pode haver respostas contendo meias-verdades; e meias-verdades, já o disse um outro grande sábio, admitem tantas interpretações que se as pode qualificar como... mentiras1.

Uma dessas meias-verdades encontradas no meio do caminho, que tem causado muito mal ao país (principalmente porque tem aparente autoridade na lei - mais especificamente, no artigo 47 da lei 11.101/05), é a de que a preservação da empresa em recuperação judicial possa ser um objetivo antieconômico - ou, em outras palavras, cego de um olho.

Com efeito, tem-se admitido muitas vezes que o Judiciário se deixe atormentar por uma visão monocular que, impeditiva da observação da existência de um entorno, faz da importância relativa da empresa que se quer preservar por meio da recuperação judicial uma importância absoluta. E uma vez assim atormentado, o Estado-juiz não poderá deixar de ver diante de si um ente em flagrante estado de necessidade, e, por conseguinte, não hesitará em desconsiderar tantas outras normas jurídicas seja necessário desconsiderar a fim de salvar o moribundo.

Nesse frenesi salvacionista, cego dos elementos periféricos, não verá o Judiciário que as empresas credoras poderão se afogar pelo próprio esforço de resgate daquele devedor (uma antieconomia microeconômica), e que tantas outras, que sequer estão enredadas naquela recuperação judicial, poderão acabar em perigo atual ou iminente em razão do risco sistêmico invariavelmente causado por decisões que dilaceram o ordenamento jurídico (uma antieconomia macroeconômica).

No último dia 19, as Americanas pediram recuperação judicial. Fizeram-no, aliás, com fundamento em duas outras meias-verdades: a primeira, a de que a empresa foi jogada numa crise por seus credores; a segunda, que decorre da fundamental meia-verdade da preservação da empresa a qualquer custo, a de que a imposição dos ônus decorrentes da (e por meio da) recuperação judicial a credores e à sociedade seria sempre legítima. 

Essa ideia de uma legitimidade presumida da recuperação judicial em razão da crise é uma meia-verdade porque, se aplicarmos, por acaso - apenas porque já a mencionamos -, a máxima de Cássio, veremos que há verdades mais completas ao fim do caminho.

Vejamos: cui bono, a quem interessa, a recuperação judicial das Americanas?

Bom, é claro que interessa à companhia em si; e aos empregados; e à sociedade – consumidores e contribuintes –; e, até mesmo, aos credores, no longo prazo.

Mas sigamos mais além, por meio do instrumento certeiro que é a tal pergunta cassiana: haveria, por acaso, alguém a quem a recuperação judicial interessaria mais ainda – talvez, duas vezes mais?

O leitor, certamente, já chegou ao fim do caminho: aos acionistas.

Fato público e notório, os acionistas das Americanas usufruíram nos últimos anos, e em detrimento de seus credores, de lucros e dividendos (aliás recordes) gerados por uma anomalia contábil que, tenho dito, é inescusável - no sentido mais jurídico da palavra. Também fato público e notório (aliás, mais que isso, confessado na petição inicial da recuperação judicial), foi exclusivamente a publicização dessa anomalia que jogou a companhia na crise que fundamenta o pedido de recuperação judicial.

E, agora, os acionistas ganharão uma segunda vez: o prejuízo gerado pela produção artificial de lucros e dividendos será transferido exclusivamente, por meio da recuperação judicial, para os ombros de seus credores e da sociedade - os quais, aliás e por definição (afinal, quando alguém ganha, alguém necessariamente perde), perderão uma segunda vez.

Precisamos nos lembrar, então, de que o Direito não admite bônus (ou ônus) sem ônus (ou bônus) correspondentes – tudo que se o faça com esse resultado é antijurídico porque, antes, é imoral. E é por isso que é uma meia-verdade a legitimidade presumida da imposição de ônus aos credores e à sociedade por meio de um processo de recuperação judicial diante de uma crise empresarial. O caso Americanas é a prova por excelência: os ônus já foram suportados pelos credores, enquanto os acionistas só conheceram os bônus (no sentido mais amplo da palavra), e essa dinâmica apenas se repetirá com a recuperação judicial. De modo que, admitir que as Americanas tenham acesso à recuperação judicial é necessariamente fazer da preservação da empresa uma destruição de outras empresas – e, repito, tanto das que estão envolvidas no processo quanto de outras que lhe passam ao largo, e enquanto os verdadeiros responsáveis pela crise que se quer debelar ficam imunes aos sacrifícios.

E é precisamente por isso que as Americanas simplesmente não fazem jus à recuperação judicial. Não se trata de punitivismo; trata-se de preservar a legitimidade do Direito, que passa, necessariamente, pela percepção social de que o Direito é justo, o que se pode traduzir como um Direito não-ilógico -- como seria um direito microeconômico que fosse também micro e macroeconomicamente antieconômico.

Por isso, por razões exclusivamente jurídicas, só haveria uma salvação legítima para as Americanas: a capitalização pelos próprios acionistas (ou por terceiros não-credores), isto é, o restabelecimento do equilíbrio jurídico entre bônus ônus. Tudo o mais que se pretenda impor aos credores, inclusive a recuperação judicial, seria qualquer coisa, menos lícito e, se alguém ainda se preocupa com isso, moral.

Nada obstante, como em terra de cegos, caolho é rei, o Judiciário fluminense deferiu o processamento da recuperação judicial das Americanas no mesmo dia em que requerida. Não podemos deixar de achar curioso que isso se tenha dado às vésperas do aniversário de 18 anos da Lei de Recuperação de Empresas.

Na alvorada da maioridade da lei, talvez o caso Americanas seja o rito de passagem perfeito. Talvez seja chegada a hora de encaramos a recuperação judicial de frente; a hora de percebermos que, se um olho nos faz pecar, melhor o arrancarmos e ficarmos inteiramente cegos – como a justiça deveria ser desde o princípio. A hora de percebermos que, antes de reformarmos as leis, precisamos reformar as pessoas e instituições para devolver a razão, o justo, ao centro das coisas. Do contrário, continuaremos a empurrar a recuperação judicial – e tantos outros institutos jurídicos do Brasil, como já temos visto – rumo ao precipício da ilegitimidade. 

A hora, enfim, de abandonarmos as meias-verdades encontradas no meio do caminho, que são tão boas quanto mentiras, para buscar as verdades completas.

Cui bono? A todos nós, e àqueles que virão depois de nós.

_______________

1 BALAGUER, Josemaria Escrivá de. Sulco. 4ª ed. São Paulo: Editora Quadrante, 2016, n. 602.

Gustavo Rossetto Mendes Batista
Advogado e membro da Comissão Permanente de Direito Falimentar e Recuperacional do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP)

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